QUINTAL? ZOOLÓGICO? POESIA
(Wladimir
Saldanha)
A escolha do
título, afora uma vocação mais “poética” da palavra, em comparação
com “animais” – que espantaria o leitor! – já nos aproxima do âmbito
estrito em que seu objeto será tratado: os seres de asa ou pêlos por
quem temos algo além do interesse científico, que povoam nossa
imaginação e que nos fizeram instar com os pais para levarem-nos a
um zoológico, ou à casa com quintal de uma tia (se se tratava de um
menino de cidade...)
“Bichos”, com
efeito, são diferentes de nós: nós podemos até ser animais,
mas só seremos bichos numa gíria que, como todas, por dizer
muito, não diz nada. São ferozes, ou dóceis – os bichos;
grandes, ou pequenos; despertam nossa ternura, ou aversão.
E é precisamente
nesse ponto – nos caracteres dos “bichos” – que vai trabalhar o
poeta Renato Suttana (“Bichos”, 2005, edição do autor) com
acréscimos que são subtrações (mais que um pecado/ a serpente/
nos ensina a simplicidade) ou, em outros momentos, o contrário:
subtrações, ou limitações – mais propriamente – que são acréscimos (a
cigarra/ é só/ um// pequeno estardalhaço/ na imensidão/de março).
Para isso se vale da linguagem peculiar da poesia, utilizando-se de
recursos antiqüíssimos, os quais entretanto revifica, provando que,
onde parece haver cansaço ou esgotamento, o que há, na verdade, é
mau uso.
O que estamos
tentando dizer é que a onomatopéia em s, quando cicio, faz
crescer a cigarra, dominando o mês inteiro, o poema inteiro;
enquanto que, feita silvo (serpente – ensina – simplicidade)
subtrai do ser ofídico seu bíblico papel de emissário do mal,
descomplicando-o, diminuindo-lhe da carga cultural e histórica, para
dar-lhe nova (ou real) compleição. O que encanta, porém, é o ajuste
perfeito entre o recurso, a técnica, e a idéia do poema – o(s)
significado(s). Não há maneirismo, não há gratuidade. Os poemas da
serpente e da cigarra – e, de resto, todos os outros:
o elefante, a carriça, o macaco etc. – são
textos de apreensão fácil, lúdicos, quase infantis – o que, a nosso
ver, só confirma o talento com que foram escritos.
Nicolau Saião,
que assina as ilustrações do livro, deseja no prefácio que seus
netos e a filha do poeta leiam “Bichos” “quando forem grandes”.
Sim, porque a linguagem de Renato, e as próprias ilustrações de
Saião, têm alguma coisa de naïf, da simplicidade buscada pela
arte adulta, simplicidade de formas, mas, ao mesmo tempo, verdadeira
caixa-preta de interpretações. O que, se não permite aos pequenos
avantajarem-se em grandes, até porque lhes seria inútil, se não
humilhante, permite aos grandes diminuírem sua estatura – suas
complicações: cultura, religião etc. – para freqüentar, na rápida
leitura do livro, o jardim proibido da infância.
Pelo que fico
achando que Renato Suttana, tendo-nos prometido zoológico ou quintal
de tia, com seu título – “Bichos” –, levou-nos, na verdade, a um
parque de diversões; mais precisamente: à sala dos espelhos.
E nem só diminui
ou aumenta, mas também alarga – para minguar. Que pensar do
elefante, ali pachorrento, quando o mesmo “s” da cigarra e da
serpente agora melancoliza?
Passeia
de instante a
instante
em pleno dia
seu peso
e sua (imensa)
melancolia.
Diminui, aumenta,
alarga. E contrasta:
De repente
na parede
branca
a barata
preta.
Ou, em “O
leopardo”:
Ele tem de
matar
para que
exista a pele dourada
onde se
estampam
manchas
pretas.
Sim, estamos numa
sala de espelhos. O livro é de uma visualidade marcante, até
determinante: as “razões” dos bichos – como o caráter assassino do
leopardo – se “justificam” pelo visual. Porque um bicho, podemos
distorcê-lo, aumentá-lo ou diminuí-lo – mas ele é o que é.
Rege-o o instinto, essa palavra cada vez mais distante do homo
sapiens.
Daí ser inútil,
para nós, buscarmos uma lição que ultrapasse o contemplativo.
Podemos, como no poema “A galinha (I)”, admirar “o modo/ como se
equilibram/ sobre duas patas”; mas, num parêntesis, o poeta já
adverte:
(E não nos
lembramos de que
já o faziam
muito antes de
nos ocorrer
a trivial
pergunta
acerca de
terem sido
precedidas
pelos seus
próprios ovos.)
Ou podemos, “inutilmente”
– como diz Suttana – buscar uma lição nas abelhas. Mas...
Quem explica
uma abelha
senão
pela mistura
de mel e
ferrão?
Entretanto, eles
– os bichos – vão, como faz a galinha, esta com “bicadas
certeiras” apanhar o “invisível”. Como o lagarto, que “aguarda/
para lançar-se/ ao que lhe convém”. A águia, que “captura o
exato”; ou este exemplar rinoceronte, que “avança/ cego e
surdo/ em direção ao que pensou”.
Essa
determinação, infantil e sábia, será talvez o que inveje o poeta
Renato Suttana – sua imagem refletida. Inveje, mas não busque –
porque se sabe humano, e porque conhece as limitações da linguagem
póetica. Seria o “lance santo ou raro,/ tiro nas lebres de vidro/
do invisível” – que Cabral parece condenar na “Psicologia da
Composição”, preferindo, o pernambucano, um outro bicho – a aranha –
que, mais próximo do poeta, desenrolaria lentamente a ponta de um
novelo frágil...
Mas Suttana não
faz metapoesia. Não se sabe, na verdade, o que prefere: não postula.
Ou, melhor: se prefere alguma coisa, é precisamente a poesia.
Observar o mundo – no caso, o dos bichos – e retirar deles a lição
que não se aprende, ou que já não se pode mais aprender. Admira a
pequena carriça –
Pequenina e
sozinha
mínima
sabe como
abordar o
ar,
o que
não se pode
abordar.
Não, não somos
tão competentes – tão pequenos, nem tão grandes. Mas nos resta ler,
ou fazer poesia. Por isso, penso especialmente, a águia de Renato
Suttana vem a ser, na sala de espelhos de seu livro, o único animal
com medida precisa:
Vive de ser a
medida
que vai da
ponta da asa
à ponta da
garra
Explica-se: este
bicho, como nos confessa o poeta, só o viu “em livros” -
estes espelhos confiáveis, que nos permitem saber os bichos até onde
podemos, confessar em papel nossa ignorância e fazer o real de meta
– única determinação possível.
E, aqui, voltamos
à onomatopéia, às figuras de linguagem todas, à técnica poética. Num
só “besouro”, algo como uma paronomásia (“janela”/ “estraleja”)
e uma elipse – a da forma verbal “vem” – fazem uma poesia
imitativa do vôo do pequeno coleóptero; mas, se a imitação parece
dizer-nos de um bicho desajeitado, o poeta a ultrapassa, com susto
do seu leitor, que talvez já estivesse a rir... Um besouro, ele diz,
“vai/ para onde/ cai”. Preciso, determinado: fatal. E
sobretudo mais honesto, como “franca” (Suttana) é a
ansiedade de uma galinha.
Mas, ¿que le voy a hacer? – como diria um tango de Gardel...
A poesia é isso, “Bichos”
finalmente não é sala de espelhos, zoológico ou quintal de tia, e
Renato Suttana... – não passa de um poeta.
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