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Bem-vindo à homepage de Renato Suttana.

Nicolau Saião, A tartaruga (arte digital, ilustração de BICHOS)

 

QUINTAL? ZOOLÓGICO? POESIA

 

(Wladimir Saldanha)

 

A escolha do título, afora uma vocação mais “poética” da palavra, em comparação com “animais” – que espantaria o leitor! – já nos aproxima do âmbito estrito em que seu objeto será tratado: os seres de asa ou pêlos por quem temos algo além do interesse científico, que povoam nossa imaginação e que nos fizeram instar com os pais para levarem-nos a um zoológico, ou à casa com quintal de uma tia (se se tratava de um menino de cidade...)

 

“Bichos”, com efeito, são diferentes de nós: nós podemos até ser animais, mas só seremos bichos numa gíria que, como todas, por dizer muito, não diz nada. São ferozes, ou dóceis – os bichos; grandes, ou pequenos; despertam nossa ternura, ou aversão.

 

E é precisamente nesse ponto – nos caracteres dos “bichos” – que vai trabalhar o poeta Renato Suttana (“Bichos”, 2005, edição do autor) com acréscimos que são subtrações (mais que um pecado/ a serpente/ nos ensina a simplicidade) ou, em outros momentos, o contrário: subtrações, ou limitações – mais propriamente – que são acréscimos (a cigarra/ é só/ um// pequeno estardalhaço/ na imensidão/de março). Para isso se vale da linguagem peculiar da poesia, utilizando-se de recursos antiqüíssimos, os quais entretanto revifica, provando que, onde parece haver cansaço ou esgotamento, o que há, na verdade, é mau uso.

 

O que estamos tentando dizer é que a onomatopéia em s, quando cicio, faz crescer a cigarra, dominando o mês inteiro, o poema inteiro; enquanto que, feita silvo (serpente – ensina – simplicidade) subtrai do ser ofídico seu bíblico papel de emissário do mal, descomplicando-o, diminuindo-lhe da carga cultural e histórica, para dar-lhe nova (ou real) compleição. O que encanta, porém, é o ajuste perfeito entre o recurso, a técnica, e a idéia do poema – o(s) significado(s). Não há maneirismo, não há gratuidade. Os poemas da serpente e da cigarra – e, de resto, todos os outros: o elefante, a carriça, o macaco etc. – são textos de apreensão fácil, lúdicos, quase infantis – o que, a nosso ver, só confirma o talento com que foram escritos.

 

Nicolau Saião, que assina as ilustrações do livro, deseja no prefácio que seus netos e a filha do poeta leiam “Bichos” “quando forem grandes”. Sim, porque a linguagem de Renato, e as próprias ilustrações de Saião, têm alguma coisa de naïf, da simplicidade buscada pela arte adulta, simplicidade de formas, mas, ao mesmo tempo, verdadeira caixa-preta de interpretações. O que, se não permite aos pequenos avantajarem-se em grandes, até porque lhes seria inútil, se não humilhante, permite aos grandes diminuírem sua estatura – suas complicações: cultura, religião etc. – para freqüentar, na rápida leitura do livro, o jardim proibido da infância.

 

Pelo que fico achando que Renato Suttana, tendo-nos prometido zoológico ou quintal de tia, com seu título – “Bichos” –, levou-nos, na verdade, a um parque de diversões; mais precisamente: à sala dos espelhos.

 

E nem só diminui ou aumenta, mas também alarga – para minguar. Que pensar do elefante, ali pachorrento, quando o mesmo “s” da cigarra e da serpente agora melancoliza?

 

Passeia

 

de instante a

instante

em pleno dia

 

seu peso

e sua (imensa)

melancolia.

 

 

Diminui, aumenta, alarga. E contrasta:

 

De repente

na parede branca

a barata preta.

 

Ou, em “O leopardo”:

 

Ele tem de matar

 

para que exista a pele dourada

onde se estampam

manchas pretas.

 

 

Sim, estamos numa sala de espelhos. O livro é de uma visualidade marcante, até determinante: as “razões” dos bichos – como o caráter assassino do leopardo – se “justificam” pelo visual. Porque um bicho, podemos distorcê-lo, aumentá-lo ou diminuí-lo – mas ele é o que é. Rege-o o instinto, essa palavra cada vez mais distante do homo sapiens.

 

Daí ser inútil, para nós, buscarmos uma lição que ultrapasse o contemplativo. Podemos, como no poema “A galinha (I)”, admirar “o modo/ como se equilibram/ sobre duas patas”; mas, num parêntesis, o poeta já adverte:

 

(E não nos lembramos de que

já o faziam

muito antes de nos ocorrer

 

a trivial pergunta

acerca de terem sido

precedidas

 

pelos seus próprios ovos.)

 

Ou podemos, “inutilmente” – como diz Suttana – buscar uma lição nas abelhas. Mas...

 

Quem explica uma abelha

senão

pela mistura

 

de mel e ferrão?

 

Entretanto, eles – os bichos – vão, como faz a galinha, esta com “bicadas certeiras” apanhar o “invisível”. Como o lagarto, que “aguarda/ para lançar-se/ ao que lhe convém”. A águia, que “captura o exato”; ou este exemplar rinoceronte, que “avança/ cego e surdo/ em direção ao que pensou”.

Essa determinação, infantil e sábia, será talvez o que inveje o poeta Renato Suttana – sua imagem refletida. Inveje, mas não busque – porque se sabe humano, e porque conhece as limitações da linguagem póetica. Seria o “lance santo ou raro,/ tiro nas lebres de vidro/ do invisível” – que Cabral parece condenar na “Psicologia da Composição”, preferindo, o pernambucano, um outro bicho – a aranha – que, mais próximo do poeta, desenrolaria lentamente a ponta de um novelo frágil...

Mas Suttana não faz metapoesia. Não se sabe, na verdade, o que prefere: não postula. Ou, melhor: se prefere alguma coisa, é precisamente a poesia. Observar o mundo – no caso, o dos bichos – e retirar deles a lição que não se aprende, ou que já não se pode mais aprender. Admira a pequena carriça –

 

Pequenina e

sozinha

mínima

 

sabe como

abordar o

ar,

 

o que

não se pode

abordar.

 

 

Não, não somos tão competentes – tão pequenos, nem tão grandes. Mas nos resta ler, ou fazer poesia. Por isso, penso especialmente, a águia de Renato Suttana vem a ser, na sala de espelhos de seu livro, o único animal com medida precisa:

 

Vive de ser a medida

que vai da ponta da asa

à ponta da garra

 

Explica-se: este bicho, como nos confessa o poeta, só o viu “em livros” - estes espelhos confiáveis, que nos permitem saber os bichos até onde podemos, confessar em papel nossa ignorância e fazer o real de meta – única determinação possível.

 

E, aqui, voltamos à onomatopéia, às figuras de linguagem todas, à técnica poética. Num só “besouro”, algo como uma paronomásia (“janela”/ “estraleja”) e uma elipse – a da forma verbal “vem” – fazem uma poesia imitativa do vôo do pequeno coleóptero; mas, se a imitação parece dizer-nos de um bicho desajeitado, o poeta a ultrapassa, com susto do seu leitor, que talvez já estivesse a rir... Um besouro, ele diz, “vai/ para onde/ cai”. Preciso, determinado: fatal. E sobretudo mais honesto, como “franca” (Suttana) é a ansiedade de uma galinha.

 

Mas, ¿que le voy a hacer? – como diria um tango de Gardel... A poesia é isso, “Bichos” finalmente não é sala de espelhos, zoológico ou quintal de tia, e Renato Suttana... – não passa de um poeta.

 

 

 

 

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