PANDEMIA
Enquanto as CPIs empacam
e os pobres senadores correm
atrás das lebres invisíveis,
as coisas seguem impossíveis,
e os brasileiros morrem, morrem.
As vacinas, ainda minguadas,
é de esperar que um dia jorrem
como chuvas que nem sonhamos.
E, enquanto com o clima contamos,
os brasileiros morrem, morrem.
Da bocarra presidencial
só falsas instruções escorrem,
conforme a moda. Mas é fato
que, enquanto viça o espalhafato,
os brasileiros morrem, morrem.
Uns esperam pelo milagre,
outros à ciência se socorrem.
E, entre o médico e o general,
desde o cerrado ao litoral,
os brasileiros morrem, morrem.
O guarda, o juiz, o promotor
é bem possível que se borrem
frente às iras do capitão.
E, enquanto isso, sem uma opção,
os brasileiros morrem, morrem.
Os mortos desta geração
talvez um dia se desforrem
de quem sua sorte não guarda.
Mas, enquanto esse dia tarda,
os brasileiros morrem, morrem.
8-6-2021
IMPASSE
Não sei por onde agora
recomece,
a que outras portas vá bater, perdidas
todas as chaves, vãs as investidas
e um caminho na mente que me esquece.
Não sei que outros desertos atravesse,
que outras sendas percorra, divididas
as intenções, e as sombras já surgidas
no horizonte de outubro, que anoitece.
Devo ir até o limite onde, num sonho,
supus houvesse um porto e uma razão
para insistir, no afã do que suponho? —
Ignoro a senha; e o lema que me guia
não tem sentido de continuação
para o erro que me invoca e me desvia.
SUAVE
MANHÃ
Manhã de hoje, suave manhã,
de amplos caminhos, de mil sendas
e encantos mornos de paisagem
(que nem a luz do inverno, mesquinha,
torna menos dóceis, menos suaves,
menos propícios, menos caroáveis) —
manhã de agora, branca manhã,
manhã do dia que bate à porta,
que se abre — a flor verdadeira —,
a nos dizer que a ansiedade é vã.
Manhã de hoje, clara manhã:
manhã de julho que vem trazendo,
que surge, abrindo caminho
entre os receios da noite negra
(tão pontiaguda a sua regra,
em que o desejo se descompassa:
que o tecido da vida esgarça) —
manhã de agora, branca manhã
do imenso dia que faz lá fora,
a nos dizer que a ansiedade é vã.
O
DESERDADO
Se o barulho da noite
não te deixa dormir,
se o gemido do vento
te proíbe repousar,
se a corneta da chuva
te força a desistir —
pede a Deus que os convença
a silenciar.
Se o farfalho das folhas
dói em tua cabeça
e os passos do fantasma
fazem reverberar
um oco de distância
que não podes medir —
pede a Deus que os convença
a silenciar.
Se há um motor no teu sangue
e outro no teu ouvido
roendo um naco da sombra
que não há remendar,
se há uma faca no vento
e um malho no trovão —
pede a Deus que os convença
a silenciar.
Se há uma trompa na chuva
e um tarol no telhado
açulando no escuro
a fanfarra do azar,
se uma engrenagem perra
range em cada beiral —
pede a Deus que os convença
a silenciar.
Se a goteira é um cachorro
ladrando em teu quintal
e o escândalo do vento
te impede de avançar,
ganindo no teu sangue
como um gonzo emperrado —
pede a Deus que os convença
a silenciar.
PASSAR
Passar.
Anonimamente passar.
Não prender como num galho
o próprio nome,
para que os outros o vejam
quando passarem também.
Não ter compromissos com a aragem,
não estabelecer acordos
com as imprecisões da chuva.
Mas passar, simplesmente,
como passam as horas e as estações,
e sem nenhuma expectativa
de retornar, sem esperança nenhuma
de que um novo acontecimento
venha engendrar um novo início.
Passar, simplesmente, completamente,
como quem passa por uma estrada
e dela não leva a não ser
uma recordação distraída
(ou nenhuma recordação,
porque não vale a pena levar).
Como um pássaro para o longe,
anonimamente, translucidamente.
Irrepetivelmente.
(In Fora de alcance)
DEMOLIÇÃO
Cortejei o mistério — e fui
vencido
no silêncio da noite
rigorosa.
Desci daquela altura
perigosa,
porque subir deixou de ter
sentido.
Com passo moderado e bem
medido,
da borda me afastei
vertiginosa,
aonde a esperança havia,
artificiosa,
guiado o fraco penhor do meu
gemido.
Tornei-me, embaixo, aquele
que de arder
não tinha mais senão uma
memória,
acrescentada ao pasmo de
descer. —
Numa estupefação da alma
prolixa,
fui demolindo os marcos da
vitória,
já sem qualquer valor na
sombra fixa.
(In Quando me abriram portas)
ESTRADA DE
ERRO
Por esta
estrada de erro
que
atravessa o deserto
e as
regiões do desterro —
conduzindo
a um longe
que
talvez não baste,
que
talvez nem importe —
vou mais
devagar.
Por este
caminho de erro
que me
trouxe até aqui
e me fez
chegar, exausto
de
tropeços e tentativas
e por
incapaz de acerto
(porque
era apenas de ir) —
vou mais
devagar.
Por esta
estrada que vai
e leva
para mais longe,
e leva
para muito longe,
através
do deserto,
atravessando
por erro
os
desertos de sempre
e as
regiões do desterro
(que
quero eu achar
nas
regiões do desterro,
que tenho
a ver
com os
desertos do erro
que estão
em toda parte
e a que
se chega sempre
por
estradas que dão
em
qualquer lugar?) —
vou bem
mais devagar.
(In O
esquecimento necessário)
EMPÓRIO
“Timbre:
rompante, a megalomania...”
(Camilo
Pessanha)
Fui ao
vento pedir uma riqueza
de que o
vento, já velho e despossuído,
não se
lembrava mais, tendo-a perdido
entre as
monções do engano e da beleza.
Curvado
ao peso da delicadeza
que a tal
ponto me havia conduzido
(sem meta
que eu tivesse pretendido),
nada
achei que me desse uma surpresa,
senão o
labirinto, já ruinoso,
e os
vidros, e os vitrais despedaçados,
e o
projeto do salto, desastroso,
e a
coleção dos uivos, e o cansaço,
saudade,
grito, a pretensão de espaço,
asas de
grifo — megalomania.
(In Quando
me abriram portas)
COTIDIANO
O mar em
que me afogo
é
cotidiano.
(Correnteza
em que desço,
chuva que
não revogo —
altura
que não alcanço.)
A
enchente em que sucumbo
é de
todos os dias.
(Águas de
cada dia,
tropeços,
pedras, nuvens,
ventanias.)
O rio em
que me desço.
A
escuridão em que não vejo
é
cotidiana:
o mar, a
enchente, o poço,
a mão que
me acena de longe,
o ar que
me dana —
aquilo
que não sei.
(A queda
que é só poço.)
O oceano
em que naufrago,
o rio em
que me afogo,
o vento
em que sufoco.
(In O
esquecimento necessário)
PERSPECTIVA
Tudo é
perspectiva.
Entre as
colunas da tarde,
calcinadas
de tédio,
entre as
paredes brancas
que um
sol entediado
recresta
do alto —
tudo é
dispersão
e tédio
igual ao tédio:
pensamentos
de areia
escorrendo
secos
sobre
superfícies secas.
Entre os
devassados
esconderijos
da tarde
(onde
ninguém pode estar seguro,
onde
ninguém alcança
proteger-se
dos dardos) —
tudo é
superfície,
tudo é
terreno abrasado,
e
paredes, e branco,
e tédio
igual ao tédio
entre
pensamentos de areia.
Tudo é
perspectiva.
(in Fora
de alcance)
SE EU DESISTIR
Se eu
desistir, se eu disser
a mim
mesmo que não posso;
se eu não
tentar ir mais longe,
ousar
mais ou ir mais alto;
se eu só,
parado, comigo
me
contentar, me bastar
e não
pedir ao destino
e não
rezar a algum deus,
mas em
minha própria casa,
mas em
meu próprio castelo
(que não
é castelo algum);
se eu não
me deixar levar
pela
ideia sedutora,
pela
ilusão sedutora
do mais
amplo e do mais vasto,
pela
visão do mais rico;
se eu,
mesmo que insatisfeito
e falho
de asa e valor,
e neutro
de ouro e ambição,
a mim
mesmo me disser
que basta
não ter chegado,
que basta
não ter ousado,
que não
ter chegado foi
o mais
longe que pude ir,
que não
havia mais longe,
que não
havia horizonte
e que por
isso bastou
ter ido
até onde fui
(que sei
eu?); se eu me disser
que estar
em casa é o bastante,
que me
convém não ousar
e que é
melhor não ousar,
não ir
tão longe, não ser
o que
tentou ir tão longe,
que basta
apenas ficar,
permanecer,
demorar,
que a mim
me basta ficar;
se eu me
disser a mim mesmo,
se eu não
tentar ir mais longe,
se eu não
fizer a besteira
de tentar
me ultrapassar,
de ir
aonde não posso ir,
de ser
quem tenta ir mais longe,
de ser
quem tenta ir mais alto.
(In Fora
de alcance)
SE ME DESDOBRO
Se me
desdobro, vão, na noite escura
dos
passos em que — cego — me desdobro,
se após
haver tombado me recobro,
recuperando
o fogo que em mim dura,
no qual
forjo, sem medo ou amargura
(se me
disperso em duplo, se me dobro,
se me
triplico e, ao fim da conta, sobro),
o
ricto-esgar da máscara futura,
caio
sempre em mim mesmo, novamente
convertido
naquele de que tenho
notícia a
cada instante diferente:
e que é
como uma treva em que me embrenho
(eu, que
da manhã clara não desisto)
e em que
não sei quem sou, se sou, se existo.
(In
Quando me abriram portas)
NO AZUL
Asas no
azul — melhor não merecê-las,
melhor
não açular tal confusão,
nem
desejar a fímbria das estrelas,
nem
querer as vertigens da amplidão.
Melhor
ficar em casa sem sofrê-las,
longe da
mágoa em que redundarão
as
angústias exaustas de perdê-las
quando
estourar a fúria do tufão.
Asas na
luz — melhor não cultivá-las,
nem o
prazer senil de cobiçá-las,
havendo
sempre inverno após o outono:
e
desistir do voo e da afoiteza,
e
aniquilar os sonhos de grandeza
num
círculo de pasmo, queda e sono.
A RESPOSTA
Eu, que
tenho a noção, eu, que compreendo;
eu, que
de cada coisa estou seguro
(a não
ser de mim mesmo, que me apreendo
num
limiar inerte do futuro);
eu, que
vou me supondo e me sustendo
como um
pássaro cego sobre um muro
e do que
não conheço ou não entendo
tiro um
saber esplêndido e maduro;
eu — que
já não procuro — encontro às vezes
no início
do que sou uma resposta
à
pergunta que faço em minha aposta:
que não
preenche o vazio que a suscita,
mas
permanece lá, constante e aflita,
sujeita a
mil senões e a mil reveses.
PERPLEXIDADE
Não é a
coisa —
é a
ideia da coisa
que te
estarrece: a coisa
permanece
lá, perfeitamente
equilibrada
no seu centro.
(Por
fora dela circulam os ventos,
a voz,
o sonho, a ansiedade do visto,
esse
desejo de segurá-la
que te
inquieta
e de
retê-la entre os teus dedos
por um
instante.)
Não é a
coisa (o que ela é)
que te
deixa estupefato:
é a
ideia que fazes dela,
assim
de pé
sobre
uma curva do teu caminho
ou
sobre alguma pedra
que
resiste à correnteza do rio.
A coisa
— em si mesma —
(um
ovo, por exemplo, uma luva, um chapéu)
permanece
lá,
perfeitamente
equilibrada
e posta
para sempre além do toque
e para
sempre além da perplexidade.
EM AGOSTO
Acomodar-se
às coisas: aceitar
o formato
de agosto — o vir do vento,
esta
chuva que cai sem se cansar
e a
experiência opressiva do ar cinzento.
Não
forçar os limites, não tentar
ultrapassar
a curva do momento;
não
querer outra cor, outro lugar,
outro
céu, outra fome, outro tormento. —
Ficar
aqui, somente, esclarecido
pela
justiça simples do possível,
que torna
suave a rosa antes do olvido:
cumprindo
uma tarefa que convém
e
suportando o gume do sensível,
que arde
em promessas sob a luz-ninguém.
(In Fora
de alcance)
SONETO
A mim que
me preocupam borboletas,
que me
dão pena as pedras e as asinhas,
que me
tiram o sono as avezinhas
de
plumagens escassas, incompletas;
a mim que
me perturbam as discretas
oscilações
das águas mais sozinhas
quando as
afagam brisas, e as florinhas
que
esmagaram as rodas das carretas;
a mim me
sobressalta este esquisito
estar
desperto à beira do infinito,
tendo o
céu por consolo, e a luz por fardo.
Chega-me
ao pensamento, e em minha insônia
cresce e
tem o sabor de uma acrimônia,
de um
fogo que me esfria e em que não ardo.
(In O
anjo de amanhã)
TROFÉU
Foi ao chão meu troféu,
mal conquistado
à resistência insípida dos
dias.
Varreram-no tufões e
ventanias,
até deitá-lo ao solo,
destroçado.
Era de vidro e brisa,
marchetado
de delícias, e tédios, e
agonias,
a que, somando-se outras
pedrarias,
se acrescentava a luz do
meu passado.
Quando o vento o venceu
sem grande esforço,
pensei que de mim mesmo eu
me afastava,
como um peso alijado do
meu dorso.
Porém em cada esquina eu
deparava
com a recordação do que
não veio,
acesa numa chama em que
não creio.
(In Altiplano)
CANÇÃO
Coração
magoado,
é justo
que esperes.
Se foi
bom o dia
e te
trouxe o fruto
(ou se
deu errado) —
não te
desesperes.
Coração
aflito,
que a
noite gelou.
Se é
espessa de sol,
a manhã,
e morna
(e o
sonho é finito) —
prepara o
teu voo.
Coração
aceso
de uma
estranha chama.
Bate
compassado,
pois o
vento é breve;
se,
intenso e surpreso,
o esforço
te chama,
não te
desesperes:
bate
decidido. —
Na manhã
tão lúcida,
tão de
primavera,
é justo
que esperes,
que
faças sentido.
(In
Altiplano)
CANÇÃO SERENA
De
longe, meu pai me acena,
da
bruma que mal o oculta.
A sua
face é serena,
e o seu
aceno me indulta.
O
esforço pertence ao dia,
que a
noite cerra e modera.
(Meu
pai tão bem o sabia,
como se
o dia o dissera.)
Há no
seu gesto uma calma
que o
vento estende e acrescenta,
roçando
à flor da minha alma
numa
carícia nevoenta.
De pé
na margem, escuto
um som
que a noite anuncia
e
espero só, de olho enxuto,
como
meu pai o faria.
Quem
sou agora? Não sei.
E
é noite apenas lá fora. —
E esta
canção que inventei
percute
em meu sonho agora:
parado,
sem meta e escopo,
à
espera de um ser profundo
que
venha encher com seu sopro
toda a
ausência que há no mundo.
(In
Altiplano)
Que fazer desta cera,
destas asas,
deste desejo de
multiplicar
que me leva ao perigo, a
me lançar
num voo temerário sobre as
casas?
Devo esquecer o prêmio,
devo arder
para aquém das feridas da
ambição,
saciado só de que haja o
baixo e o chão,
onde é mais fácil desistir
de ser?
Devo me contentar com o
que me chega
do dia como tal — azul e
duro,
sem vertigens do sol para
quem nega;
para quem não procura
senão isto,
uma nesga de incerto e de
imprevisto
que se oculte nas dobras
do futuro?
(In Altiplano)
Um afogado quer
agarrar-se a uma palavra
para não submergir.
Como pode
uma palavra — osso do nada
—
salvar alguém?
Um afogado quer
nadar por cima dos dias,
nadar por cima
de suas esperanças
(nadar por cima do
silêncio)
agarrando-se a uma
palavra
para não afundar (?).
..................................................
E no entanto afundar o
envolve
por todos os lados.
(In Altiplano)
Amas-me fora do sonho,
amas-me antes de eu
chegar,
como quem tem um motivo,
como quem quer começar.
Amas-me no adiantamento
que em todo amar se
contém:
como quem observa ao longe
um veleiro que ainda vem —
como quem salta no escuro
à espera de que haja um
chão
onde o seu salto repouse
depois do risco e da ação
(depois da inútil
vertigem
em que todo risco vai
roçando o corpo de um
neutro
vazio de ar em que cai).
Se me amas como quem bebe
uma anterior água vã
que a noite traz, mas não
mata
a sede que há na manhã,
é porque tudo antecipas
num lance por ocorrer,
certa da glória e do
prêmio
que os dados hão de
prover.
(In Altiplano)
SEGREDO
A vida é apenas segredo.
Não há muito que saber.
Ninguém precisa saber
o que contém teu segredo.
É só um dizer de menos,
um nada mostrar de teu,
pois no que mostras de teu
já o mostras pálido e
menos.
(É só um não revelar
do enigma que jaz no
fundo,
e nunca atingir o fundo
no esforço de revelar.)
A vida é coisa e segredo
para o teu pouco saber:
ser o bastante saber
que há vida, coisa
e segredo.
(In Altiplano)
Por último, este fantasma,
com que eu não tinha
contado:
seu vulto esquerdo, parado
(tal mecanismo me pasma!)
à porta do que intentei,
do que pensei começar
e se dissolveu no mar
daquilo que já não sei,
daquilo que o pensamento
perde por fora e o
persegue
como uma obsessão do
vento,
um dia que nunca chegue.
Por último, este profundo
nada saber a respeito;
ser só um gesso
imperfeito,
um tonto inseto sem mundo
a esvoaçar em torno a um
centro
(qualquer centro, desde
que o haja) —
esta comédia, por dentro,
esta lama que me ultraja,
este estar só, num caminho
(não haver outro), este
rosto
que me surgiu num agosto,
este ferrão, este espinho.
CANÇÃO
Meu
poema fracassado,
minha
mente vazia.
E
chega a noite agreste,
atropelando
o dia.
Muito
fiz e tentei,
sem
nada terminar:
o
ouro que persegui
não
era de encontrar.
Meu
tédio, meu trabalho,
minha
ambição de coisa;
meu
tropeço, meu grito,
meu
rubi, minha rosa —
meu
pensamento enorme
de
atingir a fronteira,
que
o dia alimentava,
sem
corpo e sem maneira;
tudo
isso se desmente,
quando,
chegado o escuro,
desce
o manto do sono
sobre
esforço e futuro:
e
dormir se entrelaça
às
promessas da ação,
consumindo
em seu fogo
(branco!)
a exausta intenção.
.........................................
Meu
poema fracassado,
minha
mente vazia.
Vem
a noite e devasta
a
plantação do dia.
(In Conversa de espantalhos)
ESTA NOITE
Esta
noite, em meu sonho (a multidão
ovacionava
o rei; um voo de ave
em
movimento esdrúxulo; o conclave
dos
cardeais de abril e seu jargão),
eu estava
desperto, e minha mão
procurava
no escuro a obscura chave
que
abrisse a porta, resolvesse o enclave
(mesmo
que não houvesse solução) —
e eu era
outro, sem sê-lo, nem melhor,
nem eu
mesmo, mas outro, mas Alguém,
num
janeiro, entre os hunos — e uma flor
na lapela
do equívoco (que importa?). —
Esta
noite, em meu sonho, como quem
se
esquiva ou atravessa alguma porta.
(In
Conversa de espantalhos)
INTIMAÇÃO
De girar
e oscilar entre penhascos
de não
saber o instante de parar,
de buscar
solução na chuva e no ar,
e não
haver um sol para os teus ascos;
de
procurar Jerusaléns, Damascos,
uma velha
Bizâncio à beira-mar,
e o que
mais haja para procurar:
uma
pista, um rumor, rastros de cascos;
de ter
diante de ti teu duplo cego —
teu
irmão, teu igual, teu inimigo,
e
mendigar um trapo de sossego
onde só
existe confusão, perigo
(e essa
raiva do esforço que te invade) —
tu
te tornas amargo por bondade.
(In
Qualquer um)
ELEGIA BREVÍSSIMA
Uma vez
traído
outubro
entregue
aos ventos da
derrelição.
In
Lâmina (e outros poemas) - 83 kb
AO NÍVEL DO CHÃO
Sempre
retornamos
ao nível
do chão
Não
importa a extensão do voo
não
importa a altura atingida
se
comparada com a precariedade das asas
Não
importa que se tenha ultrapassado um limite
Sempre
retornamos
ao nível
do chão
ao nível
do chão do que é o chão
por entre
as pedras e os galhos secos e as folhas secas
do chão
no chão
que dá a
medida (ponto de partida
ponto de
chegada) de tudo quanto
somos
capazes de arder:
que dá a
medida da ultrapassagem
do fogo
que somos capazes de arder
Sempre
retornamos
ao nível
do chão.
In
Lâmina (e outros poemas) - 83 kb
AO
PRÍNCIPE DE TODOS OS LEITÕES
O que é a
morte
para ti,
cavaleiro,
senão
um motivo
a mais,
um
trapézio a mais
para ti
que vais
de
poleiro
em
poleiro?
O que é,
senão
um
trapézio a mais
para ti
que tens
alma de
artista,
corpo de
trapezista?
Senão
um salto
a
mais
no ar
onde toda
a graça,
toda a
beleza
está
em apenas
saltar?
(In Qualquer
um)
TUDO ERA SONHO
Tudo era
sonho no começo...
Tudo era
sonho?
(A sombra
do sonho se estendeu
sobre o
deserto.)
Tudo era
duplicação
no espaço
da claridade: a própria claridade
uma
ilusão da luz a jorrar
sobre
a nitidez inútil das horas.
APROPRIADO
PARA UM DIA DE CHUVA
Com um
olho
de quem
não dormiu o suficiente
e há de
se sentir insuficiente
(e há de
se sentir estrangeiro
até mesmo
na casa
do ser) —
penso: a
questão do ser
não pode
ser solucionada
com
barbitúricos.
Não pode
ser sequer mencionada,
nem mesmo
depois
de uma
boa noite de sono:
porque,
depois de uma boa noite
de sono,
tudo o que vem,
tudo o
que a manhã nos devolve
é o dia
que se nos devolve:
suas
asas, seu anjo,
suas
agonias domésticas
(seu
inverossímil enredo).
Não pode
ser, porque
é a
questão do ser:
e a
questão do ser
não é
senão a própria questão do ser —
este
estar aqui, a dizer
isto, a
girar
e a
responder a uma pergunta
que não
sei sequer formular.
(In Qualquer
um)
SOMENTE O QUE
É IRREAL
Somente o
que é irreal devia interessar-nos,
o que não
tem poder de conformar o dia:
o que não
tem contorno e cor na luz vazia —
e existe
apenas no indeciso, a dissipar-nos.
Somente o
que não vem do sol que nos esfria,
que,
exato, nos impõe seu jugo, a dispersar-nos,
devia —
na intenção — ter o dom de elevar-nos
àquele
céu que não existe, mas nos guia.
O que não
tem sabor de ser na claridade
e à noite
nos assalta, entre as sombras que vêm
brincar
ao nosso lado — ermas de imensidade:
o que na
confusão do dia é só desdém,
só
pensamento que se gasta e que se evade,
como uma
porta que se fecha e nos retém.
(In Qualquer
um)
ABRO ESTE LIVRO
Abro este
livro, que leio,
pouco
profundo na tarde.
Há nele
uma chama que arde,
um fogo
impulsivo (creio)
que, por
um nada (pudesse
incendiar
o pensamento),
incendiaria
— portento —
qualquer
ideia que houvesse.
(Mas não
há ideia nenhuma,
e por
isso é que abro o livro:
entre
seus sóis me equilibro,
obtuso, à
procura de uma.)
Abro este
livro, que estuda
o meu
olhar distraído
no rastro
de algum sentido,
de alguma
senda que o iluda.
Mas pouco
nele repousa
meu olho
e logo se esquiva:
que ler é
esboço e deriva,
e
a vida é sempre outra coisa.
(In
Conversa de espantalhos)
O VENTO GEME LÁ
FORA
O vento
geme lá fora
com um
sotaque europeu.
Por
dentro a sombra demora,
e há na
alma um órfão que chora:
nada é
próprio, nada é meu.
A noite
passa, rangendo
sobre o
que é casa e lugar.
E aos
poucos vou me esquecendo,
vou como
uma água descendo,
até o
sono chegar.
Na
confusão que, no escuro,
o
pensamento contém
(a arder,
impreciso e obscuro),
confio-me
— ermo — ao futuro,
espero a
paz de Ninguém.
O vento
geme lá fora,
a se
esgarçar nos beirais.
Pesa uma
angústia sobre a hora,
e agora é
como se outrora —
e eu
mesmo já não sou mais.
(In Qualquer
um)
UM OLHO
I
Um olho
baço,
cego,
e nenhum
pensamento
na noite
opaca.
E estar
girando
como uma
folha
seca
no vento:
o vento
não é
nenhum
pensamento.
Não é
senão
o que
sopra
lá fora.
(Seu
assobio
nos
beirais.)
Um olho
neutro,
nulo —
porém
cego,
na noite
fria.
II
Vasto
é o
círculo
que a
noite traça
ao redor
do olho:
e negro
e lento
e
impenetrável
por
dentro
como um
caroço
na treva
—
como uma
pedra.
E espesso
mais que
o
pensamento
que tenta
atravessá-lo
na
escuridão.
QUINTAL
Que eu penso nuns ocasos esbraseados,
nuns loureiros acesos no quintal –
e mais, e mais: em pássaros migrados,
de vozes rubras, como num coral,
sobre o meu sonho neutro e musical
que uns arcanjos senis, equivocados,
quiseram consolar, como enviados
de um rei que era senhor de bem e mal –
encontrando estes tons do meu pomar,
aromas e sabores tão suaves
que não souberam como melhorar:
em cores tão acesas, a fremir
entre estações, verões e vôos de aves
que nem arcanjos podem corrigir.
BUSCO
Busco na noite esquisita
algum sentido de estar
no qual minha alma finita
possa absorver-se, parar.
Busco no olho do tornado
que a cada instante me expulsa
(como um mendigo estropiado)
qualquer coisa que não pulsa:
uma ilha de erro e sossego,
um nada de ser assim –
onde haja paz e aconchego,
mesmo que não para mim:
onde pensar seja excesso,
querer não tenha intenção,
e a flecha inclua o arremesso
partida, estanque, no chão.
(In Altiplano)
CONSCIÊNCIA
Dormem
bem (é o que dizem)
os que
têm a consciência limpa.
Também
já tive a consciência limpa,
agora a
tenho vazia —
o que
não impede que, a cada noite,
eu
continue a chafurdar na insônia.
Têm um
sono de pedra (é o que dizem)
os que
respeitam os ditames
da moral
e vivem segundo as conveniências
da
razão. Mas isso não impede...
Por ora
só tenho esta consciência vazia
e, em
todas as noites, a insônia.
(O dia
lá fora é frio e cinzento
e
enfarruscado de norte a sul,
com
ameaça de chuva:
é
inverno, e inverno
em todos
os quadrantes.)
Dormem
como dormem os peixes,
porque
têm a consciência tranquila.
Também
já a tive tranquila,
agora a
tenho vazia,
o que
não é nenhuma vantagem.
(O que
não impede que, a cada noite, eu me afunde na
insônia
e role
de encontro
a
grandes massas de pensamentos imprestáveis.)
Dormem
como dormem as pedras,
mas isso
nada tem a ver com consciência.
(In Qualquer
um)
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