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Poemas de Renato Suttana

 


Pandemia

Os porcos

Impasse

Suave manhã

O deserdado

Passar

Demolição

Estrada de erro

Empório

Cotidiano

Perspectiva

Se eu desistir

Se me desdobro

Até o fim

No azul

A resposta

Perplexidade

Em agosto

Soneto

Troféu

Canção

Canção serena

Asas

O afogado

Antecipação

Segredo

Por último

Canção

Esta noite

Intimação

Elegia brevíssima

Ao nível do chão

Ao príncipe de todos os leitões

Tudo era sonho

Apropriado para um dia de chuva

Somente o que é irreal

Abro este livro

O vento geme lá fora

Um olho

Quintal

Busco

Consciência

 

Leia também, de Renato Suttana:

O olho nada diz ao sol que nasce

"I think, I exist less" and other poems of Renato Suttana (tradução de Otoniel Knipper Costa)

Indigestos e purgativos (primeira série, à venda)
Fauna & Cia. (e-book, formato pdf)

Outros poemas inéditos (esparsos)

A festa de Tartufo (poemas satíricos e políticos) (ebook, formato epub)

A lógica do dia (e-book, formato pdf)

4 poemas (esparsos)

Lâmina (e outros poemas) e-book, formato pdf)

Soneto costurado

Sete canções maldosas

"Quando o incêndio..." e outros poemas

Canção do exílio na realidade

Bicicletas (e-book, formato pdf 1,1 mb)

Num círculo do sol (e-book formato pdf 166 kb)

O anjo de amanhã (e-book, formato pdf 131 kb)

Passeio no parque (haicais) (e-book, também em formato pdf)

Frutos

Musa eletrônica (em parceria com Wladimir Saldanha)

 

Poemas de Renato Suttana no site gripe das aves

 



PANDEMIA


Enquanto as CPIs empacam
e os pobres senadores correm
atrás das lebres invisíveis,
as coisas seguem impossíveis,
e os brasileiros morrem, morrem.

As vacinas, ainda minguadas,
é de esperar que um dia jorrem
como chuvas que nem sonhamos.
E, enquanto com o clima contamos,
os brasileiros morrem, morrem.

Da bocarra presidencial
só falsas instruções escorrem,
conforme a moda. Mas é fato
que, enquanto viça o espalhafato,
os brasileiros morrem, morrem.

Uns esperam pelo milagre,
outros à ciência se socorrem.
E, entre o médico e o general,
desde o cerrado ao litoral,
os brasileiros morrem, morrem.

O guarda, o juiz, o promotor
é bem possível que se borrem
frente às iras do capitão.
E, enquanto isso, sem uma opção,
os brasileiros morrem, morrem.

Os mortos desta geração
talvez um dia se desforrem
de quem sua sorte não guarda.
Mas, enquanto esse dia tarda,
os brasileiros morrem, morrem.

8-6-2021




IMPASSE


Não sei por onde agora recomece,
a que outras portas vá bater, perdidas
todas as chaves, vãs as investidas
e um caminho na mente que me esquece.

Não sei que outros desertos atravesse,
que outras sendas percorra, divididas
as intenções, e as sombras já surgidas
no horizonte de outubro, que anoitece.

Devo ir até o limite onde, num sonho,
supus houvesse um porto e uma razão
para insistir, no afã do que suponho? —

Ignoro a senha; e o lema que me guia
não tem sentido de continuação
para o erro que me invoca e me desvia.




SUAVE MANHÃ


Manhã de hoje, suave manhã,
de amplos caminhos, de mil sendas
e encantos mornos de paisagem
(que nem a luz do inverno, mesquinha,
torna menos dóceis, menos suaves,
menos propícios, menos caroáveis) —
manhã de agora, branca manhã,
manhã do dia que bate à porta,
que se abre — a flor verdadeira —,
a nos dizer que a ansiedade é vã.

Manhã de hoje, clara manhã:
manhã de julho que vem trazendo,
que surge, abrindo caminho
entre os receios da noite negra
(tão pontiaguda a sua regra,
em que o desejo se descompassa:
que o tecido da vida esgarça) —
manhã de agora, branca manhã
do imenso dia que faz lá fora,
a nos dizer que a ansiedade é vã.




O DESERDADO


Se o barulho da noite
não te deixa dormir,
se o gemido do vento
te proíbe repousar,
se a corneta da chuva
te força a desistir —
pede a Deus que os convença
a silenciar.

Se o farfalho das folhas
dói em tua cabeça
e os passos do fantasma
fazem reverberar
um oco de distância
que não podes medir —
pede a Deus que os convença
a silenciar.

Se há um motor no teu sangue
e outro no teu ouvido
roendo um naco da sombra
que não há remendar,
se há uma faca no vento
e um malho no trovão —
pede a Deus que os convença
a silenciar.

Se há uma trompa na chuva
e um tarol no telhado
açulando no escuro
a fanfarra do azar,
se uma engrenagem perra
range em cada beiral —
pede a Deus que os convença
a silenciar.

Se a goteira é um cachorro
ladrando em teu quintal
e o escândalo do vento
te impede de avançar,
ganindo no teu sangue
como um gonzo emperrado —
pede a Deus que os convença
a silenciar.



PASSAR

Passar.
Anonimamente passar.
Não prender como num galho
o próprio nome,
para que os outros o vejam
quando passarem também.

Não ter compromissos com a aragem,
não estabelecer acordos
com as imprecisões da chuva.
Mas passar, simplesmente,
como passam as horas e as estações,
e sem nenhuma expectativa
de retornar, sem esperança nenhuma
de que um novo acontecimento
venha engendrar um novo início.

Passar, simplesmente, completamente,
como quem passa por uma estrada
e dela não leva a não ser
uma recordação distraída
(ou nenhuma recordação,
porque não vale a pena levar).

Como um pássaro para o longe,
anonimamente, translucidamente.
Irrepetivelmente.


(In Fora de alcance)



 

DEMOLIÇÃO

 

Cortejei o mistério — e fui vencido

no silêncio da noite rigorosa.

Desci daquela altura perigosa,

porque subir deixou de ter sentido.

 

Com passo moderado e bem medido,

da borda me afastei vertiginosa,

aonde a esperança havia, artificiosa,

guiado o fraco penhor do meu gemido.

 

Tornei-me, embaixo, aquele que de arder

não tinha mais senão uma memória,

acrescentada ao pasmo de descer. —

 

Numa estupefação da alma prolixa,

fui demolindo os marcos da vitória,

já sem qualquer valor na sombra fixa.


(In Quando me abriram portas)

 

 

 

ESTRADA DE ERRO

 

Por esta estrada de erro

que atravessa o deserto

e as regiões do desterro —

conduzindo a um longe

que talvez não baste,

que talvez nem importe —

vou mais devagar.

 

Por este caminho de erro

que me trouxe até aqui

e me fez chegar, exausto

de tropeços e tentativas

e por incapaz de acerto

(porque era apenas de ir) —

vou mais devagar.

 

Por esta estrada que vai

e leva para mais longe,

e leva para muito longe,

através do deserto,

atravessando por erro

os desertos de sempre

e as regiões do desterro

 

(que quero eu achar

nas regiões do desterro,

que tenho a ver

com os desertos do erro

que estão em toda parte

e a que se chega sempre

por estradas que dão

 

em qualquer lugar?) —

vou bem mais devagar.


(In O esquecimento necessário)

 

 

 

 

EMPÓRIO

 

Timbre: rompante, a megalomania...

(Camilo Pessanha)

 

Fui ao vento pedir uma riqueza

de que o vento, já velho e despossuído,

não se lembrava mais, tendo-a perdido

entre as monções do engano e da beleza.

 

Curvado ao peso da delicadeza

que a tal ponto me havia conduzido

(sem meta que eu tivesse pretendido),

nada achei que me desse uma surpresa,

 

senão o labirinto, já ruinoso,

e os vidros, e os vitrais despedaçados,

e o projeto do salto, desastroso,

 

e a coleção dos uivos, e o cansaço,

saudade, grito, a pretensão de espaço,

asas de grifo — megalomania.


(In Quando me abriram portas)

 

 

 

 

COTIDIANO

 

O mar em que me afogo

é cotidiano.

(Correnteza em que desço,

chuva que não revogo —

altura que não alcanço.)

 

A enchente em que sucumbo

é de todos os dias.

(Águas de cada dia,

tropeços, pedras, nuvens,

ventanias.)

O rio em que me desço.

 

A escuridão em que não vejo

é cotidiana:

o mar, a enchente, o poço,

a mão que me acena de longe,

o ar que me dana —

aquilo que não sei.

(A queda que é só poço.)

 

O oceano em que naufrago,

o rio em que me afogo,

o vento em que sufoco.


(In O esquecimento necessário)

 

 

 

PERSPECTIVA

 

Tudo é perspectiva.

 

Entre as colunas da tarde,

calcinadas de tédio,

entre as paredes brancas

que um sol entediado

recresta do alto —

 

tudo é dispersão

e tédio igual ao tédio:

pensamentos de areia

escorrendo secos

sobre superfícies secas.

 

Entre os devassados

esconderijos da tarde

(onde ninguém pode estar seguro,

onde ninguém alcança

proteger-se dos dardos) —

 

tudo é superfície,

tudo é terreno abrasado,

e paredes, e branco,

e tédio igual ao tédio

entre pensamentos de areia.

 

Tudo é perspectiva.


(in Fora de alcance)

 

 

 

 

SE EU DESISTIR

 

Se eu desistir, se eu disser

a mim mesmo que não posso;

se eu não tentar ir mais longe,

ousar mais ou ir mais alto;

se eu só, parado, comigo

me contentar, me bastar

e não pedir ao destino

e não rezar a algum deus,

mas em minha própria casa,

mas em meu próprio castelo

(que não é castelo algum);

se eu não me deixar levar

pela ideia sedutora,

pela ilusão sedutora

do mais amplo e do mais vasto,

pela visão do mais rico;

se eu, mesmo que insatisfeito

e falho de asa e valor,

e neutro de ouro e ambição,

a mim mesmo me disser

que basta não ter chegado,

que basta não ter ousado,

que não ter chegado foi

o mais longe que pude ir,

que não havia mais longe,

que não havia horizonte

e que por isso bastou

ter ido até onde fui

(que sei eu?); se eu me disser

que estar em casa é o bastante,

que me convém não ousar

e que é melhor não ousar,

não ir tão longe, não ser

o que tentou ir tão longe,

que basta apenas ficar,

permanecer, demorar,

que a mim me basta ficar;

se eu me disser a mim mesmo,

se eu não tentar ir mais longe,

se eu não fizer a besteira

de tentar me ultrapassar,

de ir aonde não posso ir,

de ser quem tenta ir mais longe,

de ser quem tenta ir mais alto.


(In Fora de alcance)

 

 

 

SE ME DESDOBRO

 

Se me desdobro, vão, na noite escura

dos passos em que — cego — me desdobro,

se após haver tombado me recobro,

recuperando o fogo que em mim dura,

 

no qual forjo, sem medo ou amargura

(se me disperso em duplo, se me dobro,

se me triplico e, ao fim da conta, sobro),

o ricto-esgar da máscara futura,

 

caio sempre em mim mesmo, novamente

convertido naquele de que tenho

notícia a cada instante diferente:

 

e que é como uma treva em que me embrenho

(eu, que da manhã clara não desisto)

e em que não sei quem sou, se sou, se existo.


(In Quando me abriram portas)

 

 

 

 

NO AZUL

 

Asas no azul — melhor não merecê-las,

melhor não açular tal confusão,

nem desejar a fímbria das estrelas,

nem querer as vertigens da amplidão.

 

Melhor ficar em casa sem sofrê-las,

longe da mágoa em que redundarão

as angústias exaustas de perdê-las

quando estourar a fúria do tufão.

 

Asas na luz — melhor não cultivá-las,

nem o prazer senil de cobiçá-las,

havendo sempre inverno após o outono:

 

e desistir do voo e da afoiteza,

e aniquilar os sonhos de grandeza

num círculo de pasmo, queda e sono.

 


 

A RESPOSTA

 

Eu, que tenho a noção, eu, que compreendo;

eu, que de cada coisa estou seguro

(a não ser de mim mesmo, que me apreendo

num limiar inerte do futuro);

 

eu, que vou me supondo e me sustendo

como um pássaro cego sobre um muro

e do que não conheço ou não entendo

tiro um saber esplêndido e maduro;

 

eu — que já não procuro — encontro às vezes

no início do que sou uma resposta

à pergunta que faço em minha aposta:

 

que não preenche o vazio que a suscita,

mas permanece lá, constante e aflita,

sujeita a mil senões e a mil reveses.

 

 

 

 

PERPLEXIDADE

 

Não é a coisa —

é a ideia da coisa

que te estarrece: a coisa

permanece lá, perfeitamente

equilibrada no seu centro.

 

(Por fora dela circulam os ventos,

a voz, o sonho, a ansiedade do visto,

esse desejo de segurá-la

que te inquieta

e de retê-la entre os teus dedos

por um instante.)

 

Não é a coisa (o que ela é)

que te deixa estupefato:

é a ideia que fazes dela,

assim de pé

sobre uma curva do teu caminho

ou sobre alguma pedra

que resiste à correnteza do rio.

 

A coisa — em si mesma —

(um ovo, por exemplo, uma luva, um chapéu)

permanece lá,

perfeitamente equilibrada

e posta para sempre além do toque

e para sempre além da perplexidade.

 

 

 

EM AGOSTO

 

Acomodar-se às coisas: aceitar

o formato de agosto — o vir do vento,

esta chuva que cai sem se cansar

e a experiência opressiva do ar cinzento.

 

Não forçar os limites, não tentar

ultrapassar a curva do momento;

não querer outra cor, outro lugar,

outro céu, outra fome, outro tormento.

 

Ficar aqui, somente, esclarecido

pela justiça simples do possível,

que torna suave a rosa antes do olvido:

 

cumprindo uma tarefa que convém

e suportando o gume do sensível,

que arde em promessas sob a luz-ninguém.


(In Fora de alcance)

 

 

 

SONETO

 

A mim que me preocupam borboletas,

que me dão pena as pedras e as asinhas,

que me tiram o sono as avezinhas

de plumagens escassas, incompletas;

 

a mim que me perturbam as discretas

oscilações das águas mais sozinhas

quando as afagam brisas, e as florinhas

que esmagaram as rodas das carretas;

 

a mim me sobressalta este esquisito

estar desperto à beira do infinito,

tendo o céu por consolo, e a luz por fardo.

 

Chega-me ao pensamento, e em minha insônia

cresce e tem o sabor de uma acrimônia,

de um fogo que me esfria e em que não ardo.

 

(In O anjo de amanhã)

 

 

TROFÉU

 

Foi ao chão meu troféu, mal conquistado

à resistência insípida dos dias.

Varreram-no tufões e ventanias,

até deitá-lo ao solo, destroçado.

 

Era de vidro e brisa, marchetado

de delícias, e tédios, e agonias,

a que, somando-se outras pedrarias,

se acrescentava a luz do meu passado.

 

Quando o vento o venceu sem grande esforço,

pensei que de mim mesmo eu me afastava,

como um peso alijado do meu dorso.

 

Porém em cada esquina eu deparava

com a recordação do que não veio,

acesa numa chama em que não creio.


(In Altiplano)

 

 

CANÇÃO

 

Coração magoado,

é justo que esperes.

Se foi bom o dia

e te trouxe o fruto

(ou se deu errado) —

não te desesperes.

 

Coração aflito,

que a noite gelou.

Se é espessa de sol,

a manhã, e morna

(e o sonho é finito) —

prepara o teu voo.

 

Coração aceso

de uma estranha chama.

Bate compassado,

pois o vento é breve;

se, intenso e surpreso,

o esforço te chama,

 

não te desesperes:

bate decidido. —

Na manhã tão lúcida,

tão de primavera,

é justo que esperes,

que faças sentido.


(In Altiplano)

 

 

CANÇÃO SERENA

 

De longe, meu pai me acena,

da bruma que mal o oculta.

A sua face é serena,

e o seu aceno me indulta.

 

O esforço pertence ao dia,

que a noite cerra e modera.

(Meu pai tão bem o sabia,

como se o dia o dissera.)

 

Há no seu gesto uma calma

que o vento estende e acrescenta,

roçando à flor da minha alma

numa carícia nevoenta.

 

De pé na margem, escuto

um som que a noite anuncia

e espero só, de olho enxuto,

como meu pai o faria.

 

Quem sou agora? Não sei.

E é noite apenas lá fora. —

E esta canção que inventei

percute em meu sonho agora:

 

parado, sem meta e escopo,

à espera de um ser profundo

que venha encher com seu sopro

toda a ausência que há no mundo.


(In Altiplano)

 

 

ASAS

 

Que fazer desta cera, destas asas,

deste desejo de multiplicar

que me leva ao perigo, a me lançar

num voo temerário sobre as casas?

 

Devo esquecer o prêmio, devo arder

para aquém das feridas da ambição,

saciado só de que haja o baixo e o chão,

onde é mais fácil desistir de ser?

 

Devo me contentar com o que me chega

do dia como tal — azul e duro,

sem vertigens do sol para quem nega;

 

para quem não procura senão isto,

uma nesga de incerto e de imprevisto

que se oculte nas dobras do futuro?


(In Altiplano)

 


 

O AFOGADO

 

Um afogado quer

agarrar-se a uma palavra

para não submergir.

 

Como pode

uma palavra — osso do nada —

salvar alguém?

 

Um afogado quer

nadar por cima dos dias,

nadar por cima

 

de suas esperanças

(nadar por cima do silêncio)

agarrando-se a uma palavra

 

para não afundar (?).

..................................................

E no entanto afundar o envolve

por todos os lados.


(In Altiplano)

 

 

ANTECIPAÇÃO

 

Amas-me fora do sonho,

amas-me antes de eu chegar,

como quem tem um motivo,

como quem quer começar.

 

Amas-me no adiantamento

que em todo amar se contém:

como quem observa ao longe

um veleiro que ainda vem —

 

como quem salta no escuro

à espera de que haja um chão

onde o seu salto repouse

depois do risco e da ação

 

(depois da inútil vertigem

em que todo risco vai

roçando o corpo de um neutro

vazio de ar em que cai).

 

Se me amas como quem bebe

uma anterior água vã

que a noite traz, mas não mata

a sede que há na manhã,

 

é porque tudo antecipas

num lance por ocorrer,

certa da glória e do prêmio

que os dados hão de prover.


(In Altiplano)

 

 

 

SEGREDO

 

A vida é apenas segredo.

Não há muito que saber.

Ninguém precisa saber

o que contém teu segredo.

 

É só um dizer de menos,

um nada mostrar de teu,

pois no que mostras de teu

já o mostras pálido e menos.

 

(É só um não revelar

do enigma que jaz no fundo,

e nunca atingir o fundo

no esforço de revelar.)

 

A vida é coisa e segredo

para o teu pouco saber:

ser o bastante saber

que há vida, coisa e segredo.


(In Altiplano)

 

 

 

POR ÚLTIMO

 

Por último, este fantasma,

com que eu não tinha contado:

seu vulto esquerdo, parado

(tal mecanismo me pasma!)

 

à porta do que intentei,

do que pensei começar

e se dissolveu no mar

daquilo que já não sei,

 

daquilo que o pensamento

perde por fora e o persegue

como uma obsessão do vento,

um dia que nunca chegue.

 

Por último, este profundo

nada saber a respeito;

ser só um gesso imperfeito,

um tonto inseto sem mundo

 

a esvoaçar em torno a um centro

(qualquer centro, desde que o haja) —

esta comédia, por dentro,

esta lama que me ultraja,

 

este estar só, num caminho

(não haver outro), este rosto

que me surgiu num agosto,

este ferrão, este espinho.

 

 

 

CANÇÃO

 

Meu poema fracassado,

minha mente vazia.

E chega a noite agreste,

atropelando o dia.

 

Muito fiz e tentei,

sem nada terminar:

o ouro que persegui

não era de encontrar.

 

Meu tédio, meu trabalho,

minha ambição de coisa;

meu tropeço, meu grito,

meu rubi, minha rosa —

 

meu pensamento enorme

de atingir a fronteira,

que o dia alimentava,

sem corpo e sem maneira;

 

tudo isso se desmente,

quando, chegado o escuro,

desce o manto do sono

sobre esforço e futuro:

 

e dormir se entrelaça

às promessas da ação,

consumindo em seu fogo

(branco!) a exausta intenção.

 

.........................................

 

 

Meu poema fracassado,

minha mente vazia.

Vem a noite e devasta

a plantação do dia.

 

(In Conversa de espantalhos)

 

 

 

ESTA NOITE

 

Esta noite, em meu sonho (a multidão

ovacionava o rei; um voo de ave

em movimento esdrúxulo; o conclave

dos cardeais de abril e seu jargão),

 

eu estava desperto, e minha mão

procurava no escuro a obscura chave

que abrisse a porta, resolvesse o enclave

(mesmo que não houvesse solução) —

 

e eu era outro, sem sê-lo, nem melhor,

nem eu mesmo, mas outro, mas Alguém,

num janeiro, entre os hunos — e uma flor

 

na lapela do equívoco (que importa?). —

Esta noite, em meu sonho, como quem

se esquiva ou atravessa alguma porta.

 

(In Conversa de espantalhos)

 

 

 

INTIMAÇÃO

 

De girar e oscilar entre penhascos

de não saber o instante de parar,

de buscar solução na chuva e no ar,

e não haver um sol para os teus ascos;

 

de procurar Jerusaléns, Damascos,

uma velha Bizâncio à beira-mar,

e o que mais haja para procurar:

uma pista, um rumor, rastros de cascos;

 

de ter diante de ti teu duplo cego —

teu irmão, teu igual, teu inimigo,

e mendigar um trapo de sossego

 

onde só existe confusão, perigo

(e essa raiva do esforço que te invade) —

tu te tornas amargo por bondade.

 

(In Qualquer um)

 

 

 

ELEGIA BREVÍSSIMA

 

Uma vez traído

outubro

entregue aos ventos da

derrelição.

 

In Lâmina (e outros poemas) - 83 kb

 

 

 

AO NÍVEL DO CHÃO

 

Sempre retornamos

ao nível do chão

 

Não importa a extensão do voo

não importa a altura atingida

se comparada com a precariedade das asas

Não importa que se tenha ultrapassado um limite

 

Sempre retornamos

ao nível do chão

ao nível do chão do que é o chão

por entre as pedras e os galhos secos e as folhas secas

do chão

no chão

que dá a medida (ponto de partida

ponto de chegada) de tudo quanto

somos capazes de arder:

 

que dá a medida da ultrapassagem

do fogo que somos capazes de arder

 

Sempre retornamos

ao nível do chão.

 

In Lâmina (e outros poemas) - 83 kb

 

 

 

 

AO PRÍNCIPE DE TODOS OS LEITÕES

 

O que é a morte

para ti,

cavaleiro,

senão

um motivo a mais,

um trapézio a mais

para ti

que vais

de poleiro

em poleiro?

 

O que é, senão

um trapézio a mais

para ti

que tens

alma de artista,

corpo de

trapezista?

Senão

um salto a

mais

no ar

onde toda a graça,

toda a beleza

está

em apenas

saltar?

 

(In Qualquer um)

 

 

 

TUDO ERA SONHO

 

Tudo era sonho no começo...

Tudo era sonho?

(A sombra do sonho se estendeu

sobre o deserto.)

Tudo era duplicação

no espaço da claridade: a própria claridade

uma ilusão da luz a jorrar

sobre a nitidez inútil das horas.

 

 

 

APROPRIADO PARA UM DIA DE CHUVA

 

Com um olho

de quem não dormiu o suficiente

e há de se sentir insuficiente

 

(e há de se sentir estrangeiro

até mesmo

na casa do ser) —

 

penso: a questão do ser

não pode ser solucionada

com barbitúricos.

 

Não pode ser sequer mencionada,

nem mesmo depois

de uma boa noite de sono:

 

porque, depois de uma boa noite

de sono, tudo o que vem,

tudo o que a manhã nos devolve

 

é o dia que se nos devolve:

suas asas, seu anjo,

suas agonias domésticas

 

(seu inverossímil enredo).

Não pode ser, porque

é a questão do ser:

 

e a questão do ser

não é senão a própria questão do ser —

este estar aqui, a dizer

 

isto, a girar

e a responder a uma pergunta

que não sei sequer formular.

 

(In Qualquer um)

 

 

 

SOMENTE O QUE É IRREAL

 

Somente o que é irreal devia interessar-nos,

o que não tem poder de conformar o dia:

o que não tem contorno e cor na luz vazia —

e existe apenas no indeciso, a dissipar-nos.

 

Somente o que não vem do sol que nos esfria,

que, exato, nos impõe seu jugo, a dispersar-nos,

devia — na intenção — ter o dom de elevar-nos

àquele céu que não existe, mas nos guia.

 

O que não tem sabor de ser na claridade

e à noite nos assalta, entre as sombras que vêm

brincar ao nosso lado — ermas de imensidade:

 

o que na confusão do dia é só desdém,

só pensamento que se gasta e que se evade,

como uma porta que se fecha e nos retém.

 

(In Qualquer um)

 

 

 

ABRO ESTE LIVRO

 

Abro este livro, que leio,

pouco profundo na tarde.

Há nele uma chama que arde,

um fogo impulsivo (creio)

 

que, por um nada (pudesse

incendiar o pensamento),

incendiaria — portento —

qualquer ideia que houvesse.

 

(Mas não há ideia nenhuma,

e por isso é que abro o livro:

entre seus sóis me equilibro,

obtuso, à procura de uma.)

 

Abro este livro, que estuda

o meu olhar distraído

no rastro de algum sentido,

de alguma senda que o iluda.

 

Mas pouco nele repousa

meu olho e logo se esquiva:

que ler é esboço e deriva,

e a vida é sempre outra coisa.

 

(In Conversa de espantalhos)

 

 

 

O VENTO GEME LÁ FORA

 

O vento geme lá fora

com um sotaque europeu.

Por dentro a sombra demora,

e há na alma um órfão que chora:

nada é próprio, nada é meu.

 

A noite passa, rangendo

sobre o que é casa e lugar.

E aos poucos vou me esquecendo,

vou como uma água descendo,

até o sono chegar.

 

Na confusão que, no escuro,

o pensamento contém

(a arder, impreciso e obscuro),

confio-me — ermo — ao futuro,

espero a paz de Ninguém.

 

O vento geme lá fora,

a se esgarçar nos beirais.

Pesa uma angústia sobre a hora,

e agora é como se outrora —

e eu mesmo já não sou mais.

 

(In Qualquer um)

 

 

 

UM OLHO

 

I

 

Um olho

baço,

cego,

e nenhum

pensamento

 

na noite opaca.

E estar girando

como uma

folha

seca

 

no vento:

o vento

não é nenhum

pensamento.

Não é

 

senão

o que sopra

lá fora.

(Seu assobio

nos beirais.)

 

Um olho

neutro, nulo —

porém cego,

na noite

fria.

 

 

II

 

Vasto

é o círculo

que a noite traça

ao redor

do olho:

 

e negro

e lento

e impenetrável

por dentro

como um caroço

 

na treva —

como uma

pedra.

E espesso

mais que o

 

pensamento

que tenta

atravessá-lo

na

escuridão.

 

 

 

QUINTAL

Que eu penso nuns ocasos esbraseados,
nuns loureiros acesos no quintal –
e mais, e mais: em pássaros migrados,
de vozes rubras, como num coral,

sobre o meu sonho neutro e musical
que uns arcanjos senis, equivocados,
quiseram consolar, como enviados
de um rei que era senhor de bem e mal –

encontrando estes tons do meu pomar,
aromas e sabores tão suaves
que não souberam como melhorar:

em cores tão acesas, a fremir
entre estações, verões e vôos de aves
que nem arcanjos podem corrigir.




BUSCO

Busco na noite esquisita
algum sentido de estar
no qual minha alma finita
possa absorver-se, parar.

Busco no olho do tornado
que a cada instante me expulsa
(como um mendigo estropiado)
qualquer coisa que não pulsa:

uma ilha de erro e sossego,
um nada de ser assim –
onde haja paz e aconchego,
mesmo que não para mim:

onde pensar seja excesso,
querer não tenha intenção,
e a flecha inclua o arremesso
partida, estanque, no chão.


(In Altiplano)

 

 

 

CONSCIÊNCIA

 

Dormem bem (é o que dizem)

os que têm a consciência limpa.

Também já tive a consciência limpa,

agora a tenho vazia —

o que não impede que, a cada noite,

eu continue a chafurdar na insônia.

 

Têm um sono de pedra (é o que dizem)

os que respeitam os ditames

da moral e vivem segundo as conveniências

da razão. Mas isso não impede...

Por ora só tenho esta consciência vazia

e, em todas as noites, a insônia.

 

(O dia lá fora é frio e cinzento

e enfarruscado de norte a sul,

com ameaça de chuva:

é inverno, e inverno

em todos os quadrantes.)

 

Dormem como dormem os peixes,

porque têm a consciência tranquila.

Também já a tive tranquila,

agora a tenho vazia,

o que não é nenhuma vantagem.

(O que não impede que, a cada noite, eu me afunde na insônia

e role de encontro

a grandes massas de pensamentos imprestáveis.)

 

Dormem como dormem as pedras,

 

mas isso nada tem a ver com consciência.

 

(In Qualquer um)

 

 

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