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Nicolau Saião, Portalegre 2

 

SOBRE «ABSTRAÇÃO»

 

(Sephi Alter)

 

Nota introdutória: Trata-se do texto de três cartas contendo um comentário sobre o conto "Abstração", de Renato Suttana, e enviadas por email a este último, em julho de 2007.

 

Renato,

 

Estou a demorar a responder porque a sua carta e, depois, a leitura do seu conto me puseram a pensar. E como isto pode não ter fim, nem sei se proveito algum, o melhor é começar, confessando desde já a sensação de falar imaturo em relação ao que me ocorre dizer.

 

Gostei imenso do seu texto (que não conhecia). E concordo, em parte, com o seu amigo no que toca a um diálogo com Descartes, sobretudo com as Meditações Metafísicas. Concordo em parte, só, porque o diálogo já existe no texto e não creio que lhe falte, ali, ser mais aberto, o que se arriscaria a pura e simplesmente destruir o texto no seu movimento próprio, que não será o de um texto filosófico (no sentido mais usual e sistemático do termo). Neste ponto reside a principal diferença: «Abstração» e as Meditações cartesianas, se bem que toquem em temas comuns, como que viajam em sentido contrário. Quer dizer, a personagem, o «eu» de «Abstração», assumindo-se perante as trevas do conhecimento, não tem, ao contrário de Descartes, nenhuma intenção de edificar um sistema filosófico, uma ciência das ciências sobre bases indubitáveis. Mas, viajando em sentido contrário, os textos cruzam-se. Descartes enfrenta igualmente as trevas e confessa-se em grandes apuros cognitivos, donde a luz ameaça a certa altura estar definitivamente ausente. Relembro, por exemplo o final da primeira meditação:

 

« Et tout de même qu’un esclave qui jouissait dans le sommeil d’une liberté imaginaire, lorsqu’il commence à soupçonner que sa liberté n’est q’un songe, craint d’être réveillé, et conspire avec ces illusions agréables pour en être plus longuement abusé, ainsi je retombe insensiblement de moi-même dans mes anciennes opinions, et j’appréhende de me réveiller de cet assoupissement, de peur que les veilles laborieuses qui succéderaient à la tranquillité de ce repos, au lieu de m’apporter quelque jour et quelque lumière dans la connaissance de la vérité, ne fussent pas suffisantes pour éclaircir les ténèbres des difficultés qui viennent d’être agitées. »

 

A luz da razão, a dúvida, instaura as trevas. Há aqui um paradoxo onde a angústia não deixa de espreitar.

 

 

 

*

 

 

 

Embora talvez não parecendo, o Descartes das Meditações e a sua personagem enfrentam dificuldades comuns, e terríveis.

 

Antes de me arriscar em mais comparações, um pequeno esclarecimento. Descartes estaria completamente de acordo em que o pensamento precede a dúvida; ele próprio identifica a certa altura a dúvida como uma das modalidades do pensar «sou uma coisa que pensa, ou seja, que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina e que sente». Ao contrário de que lhe pareceu (ou me pareceu que lhe pareceu, a si, Renato), para Descartes a dúvida, enquanto prospecção, não descobre o pensamento que, logicamente, a tem de preceder; o que a dúvida pretende descobrir é um limite para si própria, e quando o encontra fá-lo graças a si, dúvida, enquanto modo do pensamento. Sendo o pensamento algo que, assumidamente, erra, a certeza surge então quanto ao pensador: cogito. E esta designação, resumida e confusa de «cogito», esconde que, na expressão subentendida ego cogito, o mais importante é, para Descartes, o ego, a coisa que pensa. É o ego que, ao duvidar e duvidando, impõe o limite à dúvida. Nas Meditações, curiosamente, não aparece a fórmula cogito ergo sum do Discurso do Método. Estive a vasculhar a versão latina das Meditações (seria incapaz de compreender directamente em latim, mas com a ajuda da tradução lá persigo qualquer coisa) e encontrei a pergunta «Nunquid ergo saltem aliquid sum?», então não serei eu ao menos algo? Esta pergunta surge, na segunda meditação, na altura em que o mundo inteiro foi, por assim dizer, destruído pela dúvida hiperbólica, em que tudo vacila na falsidade, inclusive o próprio corpo de quem fala, já que, por hipótese, «tudo» pode não passar de ilusão criada por um poderoso génio enganador. E é então que surge a certeza do «eu»: Descartes diz: (parafraseando) por muito que eu seja enganado (pelo tal génio) em todos os meus pensamentos, nunca poderá acontecer que eu deixe de ser algo enquanto, precisamente, enganado, e a frase «eu sou, eu existo» será sempre verdadeira de cada vez que a pronuncio.

 

Agora, a interromper o curso, já de si vagueante, dos meus pensamentos, vem-me a seguinte ideia: o Descartes corporal deixou de poder pronunciar a frase, mas o texto continua a pronunciá-la como a voz de um fantasma, como um espírito, e a frase «eu sou», em geral, independente de qualquer corpo concreto que a pronuncie, claramente remete para um ser indubitável; tão indubitável quanto vazio. Um pensamento vazio, uma coisa que pensa. E esta ideia encoraja um pouco a minha intenção de comparar a situação deste ego cartesiano com a da personagem de «Abstração». Neste ponto de certeza, o que foi alcançado está longe de ser terra firme; tão só um espaço vazio, habitado por aparências duvidosas (e, por hipótese, falsas). O ego é, no começo da certeza de si mesmo, um ego perdido, naufragado em águas profundas. Não é abusiva a metáfora aquática, visto que o próprio Descartes a utiliza. Eu sou, certamente, mas sou o quê? sou algo ainda fluido e indeterminado.

 

Recolho agora algumas passagens de «Abstração»: esta «... é uma noção (a de espaço) periclitante, que às vezes se adensa em determinados pontos, mas que, na maior parte do tempo, flutua em meus pensamentos como um corpo de alga que flutuasse entre um emaranhado de corais» ou esta «É o que mais me surpreende no tipo de consciência que tenho de mim, isto é, o fato de que nela nada se afirma efetivamente. Assemelha-se a uma flutuação por entre ramagens. Assemelha-se ao esforço de nadar contra essas ramagens, com a diferença de que as ramagens são os meus próprios pensamentos» são passagens que bem poderiam aplicar-se à certeza vazia de ser no momento em que, para a consciência, é só ser «algo» «aliquid», como uma alga flutuante. A partir daqui, Descartes parte em busca de firmeza, enquanto a sua personagem «abstraída» não está em condições de o fazer e permanece «aliquid» até ao fim do texto (ou talvez não, já lá iremos). Mas no momento da emergência da primeira certeza , os dois egos, os dois textos, «Abstração» e Meditações como que partilham uma mesma crise. «Se existe em mim a consciência de que existo, então...» diz a «abstração» cartesianamente e, mais à frente: «Não posso dizer há quanto tempo estou aqui e, então, tomo consciência de que, se existe uma verdade em mim, é a verdade dessa imensa ignorância». Abstraindo da diferença de conteúdos do pensamento (vai ser aqui aliás que os dois egos se separam radicalmente, não quanto ao pensar mas quanto ao seu conteúdo), também o ego cartesiano começa por ignorar imensamente; sabe-se simplesmente ser ou seja, ignora o que seja, o que seja ser e o mais que haja para saber.

 

 

 

*

 

 

 

Não sei se Descartes pode responder a essa difícil questão, de como ter a certeza de que a dúvida encontrará a certeza. À partida, não haverá garantia nenhuma; e Descartes assume que o risco é o de afinal a única certeza ser a de que nada é certo. No mínimo, finge não ter garantias e opta por pôr à prova a possibilidade de duvidar, por levá-la ao extremo. Enquanto houver razões para duvidar, a dúvida prossegue, num crescendo de exageros voluntários - os sentidos pouco fiáveis, a loucura, o sonho, deus que me quer falível, o génio enganador – até que encontre algo, uma coisa só que seja, de indubitável. Esta é, digamos, a encenação, mas o objectivo tácito, claro está, é impor um limite ao cepticismo. Este objectivo alcança-se por meio da dúvida, é certo, mas da dúvida enquanto instrumento da razão. A dúvida pára quando a razão assim o ordena. É a razão que decide que a faca pode dividir tudo excepto o divisor. No fundo, trata-se da armadilha clássica para apanhar cépticos: a dúvida terá sempre de abdicar algures, quanto mais não seja sobre a sua própria possibilidade, sob pena de se engolir a si mesma. O que Descartes propõe ao leitor, no fundo, é uma experiência meditativa, guiada pela razão, uma travessia do cepticismo. A esta razão chama-lhe ele «luz natural», sem jamais a justificar. É uma luz inquestionada, o filósofo não pode deixar de a seguir cegamente, poderíamos até dizer, loucamente. Só ela permite distinguir o verdadeiro do falso sem que sobre ela mesma seja possível discursar; a «luz natural» é a condição do discurso. Mas fica no escuro, incondicionável, a impor uma dessimetria entre o sim e o não em favor do sim, do primeiro. E este passo é escamoteado, como se tratasse de um tabu, uma fé na razão agida em silêncio.

 

Assim é que, no decurso das Meditações, graças a esta «luz natural», o ego, certo e vazio de conhecimentos, a coisa que pensa, sem mais certezas do que a de ser – e o sentido de «coisa» pode dar-se no de pertencer ao ser – encontra entre as suas ideias a ideia de Deus, e reconhece-a como aquela cujo conteúdo é o mais claro e o mais distinto de todos. E esta ideia de Deus é para Descartes a ideia de infinito. O ego, consciente dos seus limites e imperfeições, concebe a ideia de um ser ilimitado e perfeito ou seja, sente-se habitado por uma marca do ser a quem deve o ser. A razão diz-lhe: Tu, coisa pensante finita e imperfeita, não podes ser a causa da ideia de ser infinito e perfeito mas é o contrário que faz sentido. Descartes quer apresentar-nos este passo como a descoberta de uma base segura, sobre a qual se vai finalmente edificar um sistema de conhecimentos, uma verdadeira ciência mas, olhando de perto, a base, a ideia verdadeira, clara e distinta de deus oferece-nos algo que se revela mais modesto do que poderia parecer ao primeiro relance: mantém o «verdadeiro conhecimento» dentro de um horizonte de relativa ignorância – face à infinita e inalcançável sabedoria divina – e parece impedir pretensões a uma ciência absoluta. Nem sempre este aspecto é notado em Descartes; aqui, parece-me, o conhecimento absoluto fica do lado de deus, ao ego restará progredir cientificamente sobre esta base metafísica indubitável que é a consciência da sua ignorância. A ideia do Deus cartesiano é uma ideia, clara e distinta, dos «meus limites» perante o «sem limite».

 

A «luz natural» é o que parece faltar, de algum modo, à personagem de «Abstração». E nela, a consciência solitária está impedida de se abrir para um qualquer exterior. Ao contrário do ego de Descartes, o pensamento da personagem do conto não é habitado por ideias ou noções claras e distintas. O problema do filósofo não se colocava em relação às ideias enquanto ideias, mas em relação ao juízo que decide da adequação entre a ideia e o seu objecto; a dúvida, para Descartes, podia surgir aqui. Em «Abstração» o «eu» não possui conteúdos de pensamento que o inclinem à certeza; para ele tudo é vago e incerto, não em termos de adequação da ideia mas logo ao nível do seu conteúdo objectivo. Quando olhada de certa maneira, a personagem do conto dá sinais de ter sido vítima de alguma violência, de ter sido como que fechada no campo de concentração do próprio pensamento. Há ali um momento que dura sobre si próprio, parecendo não poder ir mais além, ou até parecendo ir cada vez menos além pelo que a personagem fica de facto, como você diz, chafurdando na dúvida.

 

E agora vou arriscar uma leitura que talvez lhe pareça absurda. Tenho vindo a hesitar, mas como ela persiste em não me abandonar, cá vai.

 

A certa altura o seu conto, surgiu-me enquadrável como um possível episódio de um romance mais extenso. No romance, um estado totalitário teria aperfeiçoado tecnicamente um sistema de repressão (bastante económico) que consistiria em submeter os eventuais opositores a um tratamento neurológico que os fechasse definitivamente em si mesmos (nada que não se pratique já em certas clínicas psiquiátricas). Um certo tom «science fiction» seria dado, entre outras coisas, pelo facto da terrível técnica ter o nome de «Abstração». Os dissidentes seriam então submetidos ao castigo da «Abstração». Tentar descrever no que consistiria esta abstracção pode parecer realmente delirante: seja então a operação pela qual se formam os conceitos gerais, operação que acaba por ser quase sempre análoga à de traçar um limite – limite dentro do qual uma dada noção particular pode variar sem perder o nome ou a identidade. Seja a noção de triângulo, relação entre lados e ângulos a que todos os (eventualmente infinitos) triângulos se têm de submeter sob pena de passar a ser outra coisa. Seja a abstracção, pois, no sentido em que os filósofos empregam o termo. Pense-se agora no caso, absurdo, do particular que fosse privado da regra geral que o enquadra. Um potencial triângulo pensante que não se aperceberia das diferenças entre ainda não ser, ser ou já não ser triângulo. Imagine-se um pensamento, um ego para quem as ideias particulares estivessem privadas de limites, não digo totalmente, sob pena de abolir qualquer pensamento, mas um ego para quem a ideia de fronteira fosse coisa esbatida, difusa, e não aquele traço decisivo que não deixa outro lugar além de dentro ou fora. A um pensamento assim os triângulos concretos que lhe aparecessem estabeleceriam talvez uma relação com a palavra triângulo sem que isso impedisse a confusão com coisas parecidas que não fossem mesmo triângulos. A personagem de «Abstração» teria sido vítima deste tratamento. Teria sido abstraída, seria o que resta do lado de cá da abstracção, habitaria um mundo sem fronteiras ou, paradoxalmente, uma prisão do tamanho do mundo, do tamanho do eu.

 

Perdoe-me o que houver de retorcido nesta ideia. Confesso também que tenho dificuldade em expô-la claramente.

 

Neste estado de pós-abstracção a personagem não pode esperar encontrar saídas, cartesianas ou outras. E isto faz pensar no paradoxo de as saídas serem limites, entraves, limiares; ultrapassáveis, mas entraves ainda assim; e, generalizando (abusivamente, não há outro modo), remete para a ideia de que a liberdade não dispensa as cadeias sob pena de já não ter de quê ser liberdade.

 

No final do conto, há um momento de «suspense» em que parece ter havido um encontro, um impedimento, qualquer coisa de exterior: «Tombo, no final de minha corrida, como se tombasse de bruços sobre a areia. Ou, antes, abraço-me a uma grande forma desconhecida como se me abraçasse a um rochedo – e penso por um momento repousar», mas não, não é deus este rochedo, nem o de Descartes nem o da bíblia que recebe por vezes precisamente este pseudónimo «rochedo», «tsur», em hebraico, nem uma simples pedra no meio do mar, «... o rochedo sobre o qual me vejo tombar sou eu mesmo, a rodopiar sozinho na escuridão».

 

Vou ficar por aqui. Haveria, claro, muitos outros modos de olhar para a sua personagem, e as questões que se levantam acerca de Descartes ficam a pairar. Que significado dar à certeza? Certeza de ser? Que diferença faria se a grafássemos «serteza», a qualidade que precede as qualidades?

 

Abraços

 

Sephi

 

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