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RESPOSTA
A UM QUESTIONÁRIO (recebido de Nicolau Saião)
(Renato
Suttana)
1.
Não podendo sair do Fahrenheit 451, que livro quererias ser?
Sempre
fui muito ruim para decorar textos. Acredito que seria de pouca utilidade
numa situação como a do Fahrenheit 451 e suspeito que não memorizaria bem
nem mesmo um livro de haikais. Mas, com algum esforço, talvez pudesse,
digamos, salvar um “Nossa Senhora das Flores”, de Genet, ou um “Infância”,
de Graciliano Ramos, ou “O Náufrago”, de Thomas Bernhard (na boa tradução
de Sérgio Tellaroli, que o alemão está fora do meu alcance). Com muito,
muito, muito esforço, acho que este desmemoriado se candidataria, com
prazer e sem competência, a servir de “cavalo” quem sabe para as “Memórias
do Cárcere”, do mesmo Graciliano Ramos, contanto que os leitores
aceitassem uma correção do título para “Memórias (lacunares) do Cárcere”.
Ou as minhas próprias memórias, se por acaso viesse algum dia a escrevê-las
– pois teria graça: saber de cor as memórias dos outros e esquecer as
minhas próprias...
2.
Já alguma vez ficaste apanhadinho por uma personagem de ficção?
Muitas,
inclusive já fui uma delas. Em minha infância salvei muito o mundo, vesti
muita máscara e capa e atravessei situações perigosas, tudo a serviço de
uma causa. Hoje já não exerço esse tipo de profissão. Estou mais
comedido, mais modesto, mais desencantado do que nunca. E houve também um
tempo em que fui seduzido – em clima de amizade – por gente como James
Bond, Sherlock Holmes, Hercule Poirot, Brigitte Montfort. Imagine! Depois é
que as coisas foram ficando difíceis. Então, veio a época em que o que eu
mais temia na vida era me converter numa personagem de Eça de Queirós –
e isso foi uma grande ingenuidade de minha parte, pois nós não só vivemos
rodeados de personagens por todos os lados como estamos o tempo inteiro
sujeitos a nos comportar como elas, a imitar delas o que elas têm de bom e
de ruim, e a pensar que nossa vida seja mesmo um romance ou um conto de ficção.
Há muita literatura por aí, andando nas ruas. Agora, se me perguntarem com
quem tenho convivido atualmente, em quem tenho me esfregado com mais freqüência,
direi que entabulo conversas com figuras como o Gonzalo Pirobutirro, de “O
Conhecimento da Dor”, de Gadda, a Hillé (sem sobrenome), de “A Obscena
Senhora D”, de Hilda Hilst, o Miguilim, de Guimarães Rosa, a velha
Henrouille, de Céline, e mais uma multidão de outras que parecem ter
inventado seus autores só para sobreviverem a eles nas páginas de seus
livros.
3.
Qual foi o último livro que compraste?
Compro
pouco livro. No duro mesmo, o último que adquiri foi “Dois Caminhos e uma
Oração”, de Alberto da Cunha Melo, poeta brasileiro a quem cheguei por
sugestão de um amigo. Se não me engano, encomendei recentemente, pela
Internet, um livro de Cleanth Brooks (tenho lido coisas do New Criticism
por razões profissionais), que ainda não recebi. Mas, em geral, minha
biblioteca particular é pequena, e prefiro me valer das bibliotecas públicas
ou de uso coletivo.
4.
Qual o último livro que leste?
Para
ser exato, o último que li foi “Fernando: rei da nossa Baviera”, de
Eduardo Lourenço, que uma amiga me emprestou. Antes desse, andei
revisitando “O Primo Basílio”, de Eça de Queirós, e um volume das
poesias completas de Drummond.
5.
Que livros estás a ler?
Minhas
leituras não têm uma ordem precisa, de modo que há temporadas em que
atiro em várias direções e caço ao mesmo tempo aves de diversas espécies.
Um autor, por exemplo, que tem atraído minha atenção ultimamente é o filósofo
australiano Andy Blunden, cujo sítio descobri por acaso vasculhando páginas
na Internet. Outro pensador que vale a pena conhecer é Robert de Beaugrande,
que foi professor universitário no Brasil e que atualmente, se não me
engano, reside numa ilha na costa da África. Quando leio o que eles
escrevem e penso na qualidade do que têm enviado para a rede, minha confiança
em que a rede mundial de computadores é mesmo um veículo de comunicação
de possibilidades assombrosas, que “veio para ficar”, como se diz no
Brasil, se fortalece muito. É o que me anima também a manter meu próprio
endereço no ar. Já quanto a livros, além dos que mencionei, tenho lido
(num processo mais lento de convívio) a “Poesia Completa” de Lêdo Ivo,
“Mimesis”, de Erich Auerbach, e “O Homem sem Qualidades”, de Musil.
Antigamente eu só conseguia ler um livro por vez, mas de uns tempos a agora
aprendi que ler vários é um modo mais humilde de ler, mais de acordo com a
nossa inata confusão mental.
6.
Que livros (cinco) levarias para uma ilha deserta?
Esta
é uma pergunta que sempre me fiz, sem nunca ter chegado a uma conclusão.
Às vezes acho que o sentido dela está na tentativa de reduzir todo o caos
e a desordem de nosso universo mental, de nossa experiência sobressaltada,
a uma coisa limpa, a uma matemática exata. De qualquer maneira, penso que
em princípio isso dependeria da
ocasião em que eu estivesse a ir para a tal ilha e do que fosse fazer lá.
Há vinte anos, a resposta seria uma; há dez anos, seria outra; hoje eu nem
faço idéia. Se fosse para permanecer por pouco tempo na ilha, levaria
livros que ainda não li (e são tantos que é inútil fazer lista – teria
de escolher ao acaso, como quem faz uma viagem de última hora e não tem
tempo de selecionar com calma as roupas que levará). Se fosse para
permanecer por muito tempo, levaria livros compridos, como o “Quixote”,
“A Cidade de Deus” ou “Guerra e Paz”, ou as obras completas de algum
filósofo, com preferência talvez para Hegel e Marx (só não me perguntem
o que eu iria fazer com Hegel e Marx numa ilha deserta). Se fosse para ficar
a vida inteira... – para que eu quereria livros numa situação dessas? E,
mesmo aqui, seria preciso considerar uma alternativa: com esperança ou sem
esperança de retornar? Bem, mas digamos que um manual de sobrevivência em
ilhas desertas (não conheço nenhum, de modo que precisaria de sugestões)
fosse o primeiro item a incluir, antes de qualquer outra coisa. A minha
ingenuidade me levaria também a pensar numa antologia de poemas brasileiros
e portugueses (não uma antologia qualquer: uma antologia organizada por mim
mesmo – doces sonhos! –, a meu gosto e não sujeita à intervenção nem
à censura de terceiros; digamos: a Antologia, reduzidos enfim todos os
tormentos da história e da crítica da literatura ao paraíso simples e
final do absoluto Solipsismo). Quanto aos três outros – aqueles, o número
pi, a dízima periódica do inesgotável prazer e da inesgotável
sabedoria... Não sei, não posso imaginar. Talvez procedesse como a jumenta
da fábula que, entre dois cochos de feno, morreu de fome, dada a sua
incapacidade de decidir-se por qual deles atacar primeiro.
7.
A quem vais passar este testemunho (três pessoas) e por quê?
Eis
uma pergunta que só não é mais difícil do que a anterior. Penso que o
passarei ao Soares Feitosa (aliás, suponho que muita gente o passaria ao
Feitosa), editor, poeta e polemista infatigável, que mantém o Jornal de
Poesia na rede; para o meu amigo Mauro Mendes, poeta e prosador de talento
(apenas para ver a reação dele quando der de cara com este questionário),
que tem escritos publicados em meu sítio; e para o baiano Wladimir
Saldanha, poeta inédito, grande leitor de poesia brasileira, que estou
tentando convencer a sair do ineditismo, dando a público o belo livro cujo
esboço me enviou recentemente.
9-6-2005
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