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Max Ernst, Ubu imperador

 

O DESEJO DANÇA NA POEIRA DO TEMPO

(opereta em três actos)

 

(Nicolau Saião, sobre uma ideia de Almeida e Sousa)

 

(Música e concepção cénica de Nicolau Saião)

 

«Jehan Rictus disait: rêvons toujours, ça coute rien. C’est faux : ça coute bien dur.»

Marcel Delpach

 

 

 

TERCEIRO ACTO

 

(A luz ressurge. No espaço, um enorme caixote de papelão. Margarida entra arrastando uma cadeira. Na boca segura com dificuldade a asa de uma pequena cesta de costura. Senta-se, depois de colocar a cadeira a seu modo. Da cesta retira um arco de bordar. Enfia uma agulha)

 

Margarida(bordando) A compulsão simbólica de pictografias associada à erupção histórica centra definitivamente a cadência do trabalho ulterior na senda dos campos cromáticos... Será, talvez, um regresso à figuração?!... (Ouve-se um despertador) – Ho! ho! Ai, ai! Está na hora!...

 

Arruma tudo sobre a cadeira. Empunha uma tesoura e dirige-se ao caixote. Tenta rasgá-lo, sem grande êxito. Do seu interior, entretanto, sai Thiagus.

 

Margarida(com alegria) Esperava-te!

 

Thiagus – ¿Si?

 

Margarida – Sim.

 

Thiagus – ¿Verdad?...

 

Margarida – Há muito tempo. Sabia que virias. As imagens recebidas ajustavam-se perfeitamente à relação entre a personagem extraordinária que tu és e as palavras que tenho vindo a recolher...

 

Thiagus – ¿Es possible?...

 

Margarida – Sem dúvida.

 

Thiagus – ¿Un juego entre el silencio y la palabra? La clave de lo trágico?...

 

Margarida – O trágico não é, porém, contemplado pela situação.

 

Thiagus – ¿No?

 

Margarida – Recorri a um outro olhar que me recordou a tua figura.

 

Thiagus – Igual que las novelas contemporaneas, as sufrido un cambio importante...

 

Margarida – De facto... Uma vez disseste-me que no jardim das ervas curiosas, donzelas aveludadas e jovens bicéfalos passeavam-se. Retratavam imagens carregadas de saber universal.

 

Thiagus – La locura, la nada, lo absurdo, lo grotesco y el mito permanecen en este teatro y... yo me marcho. ¡Adiós!...

 

Margarida – Nem sequer a ilusão?

 

Thiagus – ¡No!

 

(Ouve-se um piano, um trovão. Escuro, chuva)

 

Uma voz feminina – Ai meu senhor... Juro! Esse sémen proveio de ti, de ti proveio a concepção, a plantação do fruto que não é de um forasteiro, nem de um guarda-livros, nem de um fantasma. Tão pouco de um filho do céu...

 

(Faz-se luz. Entra um Homem)

 

Homem(falando com carregado sotaque alentejano, num tom comicamente obsceno) O horizonte torna-se vítreo

                    pássaros abandonam as árvores

                    dois amantes cruzam o céu que entretanto mudou de cor

                    Rompe-se com estrondo

                    deixando de lá cair anjos e santos

                    que se estatelam no chão um de cada vez

                    com um lindo som de plof

                    Olarilolé

A minha língua percorre todas as manhãs os teus lábios

numa noite assim os amantes inventam sombras

as palavras adquirem elasticidade e

as conversas criam fábulas cor-de-rosa

os corpos rodopiam ao som duma dança celestial

            Coisas da memória

            para que os nove planetas maiores se encham de música plena

            e silêncios diferente

 

Uma voz(num tom cheio de timidez) Os mais perversos

                    desenham planos agressivos

                    palácios

                    balneários

                    tabuleiros de xadrez, três quatro bilhares

                    muitos baralhos   um ás de paus e damas infinitas

                    enquanto outros

                    cantam docemente

é dia de festa

noite de lua cheia

                    Os amantes inventam já

                    sombras e flores

                    uma bailarina  desata aos pinotes   enlouquecida

                    e canta emocionada

secretamente apaixonada  pelo maestro

vou pelos mares como um veleiro

sou uma jovem dona de casa

e pinto o sete em todas as ruas

Amado, meu amado, oferece-me um bilhete

de combóio para uma estação do maravilhoso país

onde brilham as estrelas e os grilos entoam em coro

seis ou sete estrofes do Eclesiastes.

 

Homem – (abanando a cabeça, concordando inteiramente) No fim suicida-se.

Entra agora Estephania   como louca,

chorando desesperadamente

sobre o corpo do amante

e diz com a voz estrangulada (designa Estephania, que entra calmamente, de saia justa ao corpo e mantilha sobre a blusa de seda generosamente decotada, de meias pretas e saltos altos, muito sexy e muito bem disposta, fumando de boquilha e cantarolando)

Trrim tim tim, volto-me para mim

tacteio a luz e viro-me para ti

olho-me nesse espelho e zás

pás  catrapás  que lindo rapaz    eu viiiiii!

Dentro das nossas pessoas  trrim tim tim

há uma bela noite bem escuriiiinhaaaaa

e um belo palácio dando para o rio

onde nos afogamos   nos nossos papéis

ó queridas marias  ó queridos manéis

vestidinho estás que nua estou eu   

nua sou mais corpo quando o corpo teu

é mais tu  mais eu

é mais eu mais tu

vai levar no cú

meu belo zangão

mortinho mortão

dlão dlão dlão

que eu nunca encontrei

e que nunca vi

e que por isso estou certa segura que não tem ordenado fixo, porra, chiça, caraças

és mais do amor que o meu sangue

quando te possuí na noite

ah ah ah

ouve o gemer de alguém que te ama inabalavelmente

como se fora um aviso desfeito no princípio da noite

um sinal ritual

um objecto sensacional

um gesto tridimensionaaaaaaaal! (fica calmamente a fumar)

 

Homem – (explicando esforçadamente como se o público fosse estúpido) Também Estephania se suicida, estão a ver?, perceberam o golpe? E p’ra tudo dar certo, compreendem? bebe veneno, enforca-se e dá um tiro no peito, que se abre e revela uma grande rosa branca, enorme, insuportável. O seu lindo rosto fica sem cor, as mamas descaem-lhe e dá um berro de gelar o sangue nas morcelas. Acreditem-me, não foi um espectáculo belo de ver. (Estephania ri baixinho, com gosto) Ouve lá ó minha desgraçada, anda um homem a criar uma filha para isto? O teu rosto, sentada frente ao espelho do “boudoir” revelava o mais profundo espanto, os soluços agitavam o teu seio e, finalmente, deixaste pender a fronte sobre as mãos trémulas. (Rapando, do bolso, um telemóvel que tocara) Está? Sim, recebi a tua chamada, sim, compreendi perfeitamente

mas é tarde

demasiado tarde

também eu quero agora abrir as minhas veias

que o nosso sangue se transforme no caudal de um rio de amor. (desata a rir, cacarejando e torcendo-se). Sim, recebi o casaco de peles e a estola, é tudo muito giro. Pronto, até à próxima, um abraço, vai dando notícias.(Guardando o telemóvel e falando para o público ainda com restos de riso) Ai, ai, as surpresas que... Enfim, o danado do... Ai, ai! (sai, ainda rindo intermitentemente)

 

Estephania – As sombras, tás a ver

inventam uma secreta esperança de se tornarem estrelas

e o teatro diluiu-se nas chamas

foi um liiiiiiiindo

um magnífico

um espantoso espectáculo

e o público correspondeu às expectativas.

Disparam-se pistolas, ouvem-se gritos desesperados

e nós estamos calmos como recém-nascidos

assim, todos esparramados num sofá, de perna aberta

à bambalhona, raios partam tudo isto

e num país distante sobre a mesa de castanho, numa sala

onde dois homens conversam

uma flor amarela e violeta destaca-se na sua  cor especiosa

única

dolorosamente bela. (Baixa a cabeça, derreada e aos trancos e vai saindo de cena devagar. A luz apaga-se)

 

(Quando a luz se acende, estão em cena Thiagus e Brunus. Este sentado detrás da mesa, aquele um pouco à direita. Fuma nervosamente)

 

Brunus – Ora então vamos lá recapitular: diz você que estava em casa, seriam umas nove da noite, quando bateram à porta. Pancadas fracas, raspadelas...

 

Thiagus – Sim... Como já disse ao senhor inspector, seriam umas nove horas e eu tinha chegado do emprego, estava a beber uma cerveja, vou para apanhar o maço de tabaco em cima do sofá e... pumba, oiço uma porrada na porta! Primeiro foi uma porrada, só depois é que as batidas se tornaram mais fracas, alguém a raspar com as unhas. Confesso que fiquei acagaçado, ou antes, assim a modos que admirado, percebe? A casa é um bocado isolada, tem um jardinzinho...

 

Brunus – E então você...

 

Thiagus É que veja: tinha acabado de acender a televisão, estava a dar aquele programa com aquela filha-da-puta loira muito estúpida... com’é qu’ela se chama, a ...

 

Brunus Deixe lá isso... Prossiga!

 

Thiagus – E como a gaja grita que se farta não percebi bem, podia ser na rua... E eu...

 

Brunus – Você tem armas em casa?

 

ThiagusUma caçadeira... material italiano dum cano... com cano porta-cartuchos. Leva treze... estilo shotgun, uma beleza. Mas não ia pôr-me a abrir a porta com a canhota em punho, de modo que agarrei num bat de basebol e fui abrir a porta!

 

Brunus – E foi então que...

 

Thiagus – Sim. Apagaram-se as luzes e eu...

 

BrunusO amigo desculpe, mas... já tinha suspeitado de alguma coisa... como dizer, não durante os dias anteriores mas... nos meses em que...

 

Thiagus Ó senhor inspector!... Uma pessoa... não tá a ver?... Um tipo não pode andar sempre de pé atrás, doutra forma entra em paranóia, que diabo! Eu quando... enfim... E agora ponha-se o senhor no meu lugar. Como é que eu...

 

Brunus – De facto... Mas assim tanto sangue... Tanto, como dizer...

 

Thiagus – Mas o pior não foi isso! (fuma nervosamente, anda dum lado para o outro) O pior foi que... O senhor inspector, prontos, sabe que o jardinzinho nas traseiras...

 

Brunus – (com ironia, nervosamente) Pois, o jardim... já cá faltava o jardim... De modo que a...

 

Thiagus – Ó senhor inspector! Quando as luzes se acenderam eu, com o cacete nas unhas... E ao avançar...

 

Brunus – Fiiiiuuuuu! Sim, confesso que também eu, na mesma situação, na mesmíssima situação...

 

Thiagus – (sentando-se em frente de Brunus, de costas para o público) Não é? É que quando se está de fora... mas quando as situações acontecem...

 

Brunus Bom. Agora vai ali ao gabinete ao lado e dita tudo para a senhora que o vai atender. Mas isso com calma, hem? Diga tudo calmamente, sem se enervar. Vá lá então.

 

Thiagus – (levantando-se) Óquei. E sobre a outra... coisa... acha que...

 

BrunusEu acho que sim, por mim não há problemas... Mas você é que sabe. Afinal isso...

 

Thiagus – Sim, tem razão. Obrigado, senhor inspector. Muito e muito obrigado!

 

Brunus – De nada, pá. Vá lá p’ra casa. Ao fim e ao cabo você é que... não acha?

 

Thiagus – Com efeito. Então boa noite. E mais uma vez... obrigado. (Sai, comovido)

 

 

(Brunus cantarola entredentes, acompanhando o leve solo de flauta. Levanta-se e fica a olhar para o público, de mãos atrás das costas, como se contemplasse o exterior por uma janela. A cena vai escurecendo paulatinamente, enquanto a música se esvai, até ficar tudo na escuridão. Então ouve-se um grito de fazer gelar o sangue nas veias)

 

(Fim do terceiro acto)

 

FIM DA OPERETA

 

Novembro/Dezembro de 2003

 

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