PRIMEIRO
ACTO
(Música.
Solo
de flauta. Um
espaço degradado. Há lixo com altura suficiente para se
esconderem algumas personagens. Numa banheira está um homem,
Thiagus. Parece adormecido e a sua mão segura uma garrafa. Haverá
ainda alguns sacos espalhados pelo chão. Um som de voz ecoa na
sala. Indistinta. Depois perceptível . A música cessa)
Voz
– Como um coice de luz
partem.
A
terra espera o mar ao longe
a
noite aproxima-se como um corpo nu
contempla
a
poeira do tempo.
Deleita-nos
palavra
a palavra.
O
caminho é penoso
palavra
a palavra
palavra
a
palavra
palavra
a palavra.
(Saem,
do lixo, três personagens. Movimentam-se pelo espaço. Agarram os
sacos e carregam-nos às costas – vão colocá-los noutro ponto
para que outra figura os possa agarrar (movimentos repetitivos;
depois imobilizam-se. Thiagus leva a garrafa à boca, bebe e
espreguiça-se com os ruídos habituais de arfar, roncar,
pigarrear...)
Thiagus
– Apenas imagens
de
portas
de
chaves
que
abrem outras imagens com
praias
e
um
carnaval distante.
Portas
abertas a paisagens geladas.
(O
fumo que se ergue do chão anuncia a chegada da bela Estephania
– a sacerdotisa empregada de balcão que, num ritual próximo
dum bailado tântrico, nos narra com determinação)
Estephania
– Direi um poema sintonizando
ritmos
aventuras pouco ortodoxas e
talvez
tudo
seja já a obscuridade. E
entredentes
devagarinho
conto-te
histórias de bruxas loiras ruivas morenas que sussurram
e
inundam de penumbra os sonhos dos poetas, dos bilheteiros
das
estações de combóio, dos que comem duma lata a sua merenda
às
quatro da tarde
dos
que nada têm a perder e nada tiveram a ganhar
os
que andam
os
que navegam
os
que voam
os
que param e olham em volta.
(O
solo de violino, a que se juntam as flautas)
A cidade
é
invadida por pombas brancas e
eu
busco o horizonte na fuga sublime,
nostálgica
de
um pesadelo
De
imagens
obscenas
sinistras
belas
com
as cores de dentro e de fora
com
o norte e o ocidente misturados
com
o sul e o oriente entre os meus olhos
para
cima
para
baixo
como
uma criança brincando numa sala deserta.
(Param
as flautas. Entram os tambores, em piano)
Thiagus
– (bocejando ruidosamente
e espreguiçando-se) No limiar da construção...
Estephania
– (como que absorta)
Um gesto instantâneo
provoca a paixão.
Vivamos um acto pessoal e único. Um acto...
(Chegam
um junto do outro. Abraçam-se. Depois, lentamente, rolam sobre o
solo. Thiagus ergue-se de súbito)
(Os
tambores cessam)
Thiagus
– Que se passa? Perguntavas tu
há pouco tempo
por
entre retratos de santos amestrados e diabos sonolentos.
O
bulício da cidade onde te passeavas
provocante
apaixonada
com
os cabelos esvoaçando na manhã
por entre edifícios velhos
casas em ruínas ferros torcidos
correntes
engrenagens
rodas dentadas
de
transmissão do pensamento.
Vendo-te
assim
desatei
a rir e
apesar
das muitas palavras que se soltavam
ainda disse
A mudez dá prazer
O
gaguejar alegra a mente e
o pensamento só ou acompanhado
lhe
dará o sentido
Estephania
– (explicativa) E eu
desatei
a rir e a chorar
porque
de vez em quando vislumbro
deslumbrada o sorriso
desse
que não está em nenhum lugar
O
dia
a
noite simulada
um
grande espaço em branco onde coloco muitas coisas diferentes.
Thiagus
–
(soltando uma sonora risada)
Foi por ali ou
talvez também por aqui
que
a tua figura começou a ver-se melhor.
Já reparaste?
A
madrugada vai chegando até nós
com
as suas estranhezas e o seu perfume: cães que passam rente às
paredes
homens
de grandes mãos adejando como borboletas
mãos
que agarram pacotes, mãos que empurram carroças, mãos
que
limpam o ranho do nariz ou coçam o entrepernas
mãos
que dão estalinhos com os dedos e levam chávenas de café à
boca
enfim
mãos
para todos os usos e costumes
mãos que são gordas
como
cogumelos
e
são magras como ramos de larício ou de pinheiro
mãos
mãozinhas
mãozecas
Ó
mãos, como dizia o outro, vós que tudo podeis ser excepto:
ser
pés
ser
olhos
ser
orelhas
e
muitas mais coisas é claro
é natural é
mesmo muito provável.
(As
três figuras que carregavam os sacos
puxam agora cordas num grande esforço. Em resultado deste
movimento, entra um pequeno carro (sobrado e quatro rodas) em cima
do qual está Brunus. As figuras ficam paradas, pois doravante são
o Coro. Começa a ouvir-se uma trompete. Um espectador sai da
assistência, entra nos bastidores e o som da trompete cessa,
ouvindo-se durante uns segundos o ruído indistinto duma discussão)
Brunus
– Fico
mudo
a
masturbação torna as pessoas surdas
disse-me
um dia
o
padeiro.
O
cura
olhou-me
e suspirou baixinho. Meu filho, repara
pensar
leva
ao inferno a não ser
que
ponhas esta medalhinha por cima do coração. Leva a duvidar,
disse
o padeiro
de
novo
enquanto
metia no saco de linho meia-dúzia de carcassas.
Mas o pior,
disse
o cura, ao
mesmo
tempo que tirava dum prato em cima do balcão um bolo de creme
é
que deixas de conhecer pai e mãe, gato e cão, sardinha e carapau.
E desataram
os
dois a rir, e nessa altura apareceu-me uma navalha na mão
e
despertei coberto de suor.
Estephania
– (indicando coisas imaginárias no chão) Vês? Este aqui é um cavalinho de brincar. Isto é um apito. E este aqui
é o teu tamborzinho azul e amarelo. Lembras-te quando te levavam
à Feira todo vestido de novo e penteadinho como um anjo?
(ri
docemente)
No
jogo da vida e da morte
é
bonito usar os acidentes quando a natureza os oferece e
disse
cá para comigo
o
meu leito está cheio de gente e
quando
tudo faz sentido
vale
muito mais que um chavo. (Torna-se nostálgica)
Ali
era a salinha modesta
onde
as tias costuravam debruçadas sobre tecidos de muitas cores.(Baixa
a cabeça, como que vencida e destroçada)
Coro das 3 figuras
– Só muito mais tarde
é
que iria estar frio
apesar
do corpo quente dela.
Brunus
– Não havia aquecimento.
Então
eu...
Coro
– (num tom de cantochão) Os curas
são
contagiosos
Os
padeiros são maviosos
Os
bolos são deliciosos.
O
céu cheira a rosas mesmo se nos peidamos.
Brunus
– (dirigindo-se ao público
num tom coloquial)
Estava frio
compreendem?
Eu tinha ido ao cinema nesse dia, um dramalhão de cortar à faca
e foi nessa altura que comecei a pensar: se dois e dois são
quatro, porquê impedir-me de sonhar com praias repletas de
mortos? Estão a ver? (Num tom brejeiro) Amandei-lhe um
olhar de derreter pedras, mas... a menina fazeu-se esquiva, tás a
ver? Olha lá ó minha nossa senhora do não-me-toques (era eu a
jogar ó duro) afinal vamos ó
na vamos, atão mas ist’é como na tropa?
(formal,
com uma voz educada e culta)
Lembrei-me dos meus vinte e cinco anos.
A
baixela com um lindo desenho de barra azul com florzinhas amarelas
A
toalha a que o primo costumava limpar os dedinhos manchados de
chocolate
O
meu tio suspirando como um fole de ferreiro
de
carpinteiro
de
ladrilhador (com
grande intimidade, fazendo um gesto cúmplice)
E
foi então que
eu
e ela resistindo
encolhíamos
e
quando
tudo ia fazer sentido
veio
a guerra e puf
nicles
batatóides
nada
de nada
niente
não
há cá rien de rien
Então
uma grande nuvem escureceu por cima
e
um anjo com uma espada de fogo apareceu à esquina.
Coro –
(tom de música de missa) E se for entendível. E se for
perceptível. E se for razoáááável.
Brunus
– É outra coisa
diferente
Se
entendo
é
outra coisa
estou
a ficar mudo e
ali
é o continente misterioso
disse
cá para comigo
com
esta
fiquei
siderado
Sim
entendo
perfeitamente
ainda
não estava acabado
ela
deixou-me sobre um muro
como
um craveiro florido, um bichinho de conta, um guardanapo.
Coro
–
(como que explicando) Na cama, com o frio, os pensamentos
afluem mais facilmente
Brunus –
(com tristeza) Pensei muitas vezes em viajar. Ir a Londres,
Paris, Viena. Mas qual quê... A camioneta parava sempre no mesmo
larguinho – estão a ver, aquele com uma porta de taberna com
uma placa por cima que dizia que ali se vendiam selos de
correio... De modo que pensei cá para comigo: e se eu
transformasse isto tudo numa reflexão que nos servisse a todos de
emenda? Ou de soneto, porque tudo vai e vem quando menos se
espera. E de repente...
Estephania
– E de repente...
Thiagus
– Nos hipódromos as coisas começaram a correr mal. Os cavalos
paravam de súbito, com os olhos no ar, como se procurassem
qualquer coisa. E os jóqueis começavam a chorar, como se por fim
tivessem compreendido tudo...
Brunus –
À entrada de um café, dois indivíduos mutuamente desconhecidos
desataram à chapada.
Estephania
– Mas o mais engraçado de tudo foi que num salão nobre durante
uma cerimónia oficial o presidente da Câmara borrou-se nas calças
ante o horror e o espanto das entidades oficiais!
Coro
– Aquilo é que foram uns tempos! Duas freiras, num jardim público,
começaram a ler Shakespeare com mútuo proveito.
Brunus
– E um general comprou um giz branco num estaminé e riscou o
uniforme de alto a baixo. Não sei se estão a ver: riscadinho,
como um quadro-negro ou a face dum guerreiro apache!
Coro
– (cantando com ternura) Chove
Cai
a aguinha
A
aguinha do céu
Do
céu dos pardais
E
nas ruas dlin dlon
As
pessoas passam
atarefadas
nos
seus jogos
sérios
e melancólicos
e
uma brisa vinda
dum
poema
muito
poema
muito
homenzinho
transforma-se
num pequeno
animalzinho
peludo
que
foge e se esconde
sob
uma cadeira.
Dlon
dlon, dlem dlem
A
mosquinha voa bem
Dlem
dlem, dlon dlon
Esvoaça
sobre o som
Que
faz saber o que é bom
A
um povo sempre mudo
Sem
rei nem roque nem dom
De
saber transformar tudo.
No
Entrudo!
Estephania –
Ai sim, ai sopas, quem vier atrás que feche a porta. Lembras-te
do primeiro dia de escola?
Brunus
– Eu disse mais coisas, entre as quais esta: porque é que os
políticos, em parte, são ladrões e trapaceiros? E mais: porque
é que a natação põe as pessoas mudas e a leitura de jornais
provoca doenças de fígado e a ida aos grandes rios que correm
pelas florestas sombrias nos deixa na alma uma sensação de
desespero?
Thiagus
– Foda-se! E ela?
Brunus
– Respondeu-me em espanhol: me
cago en tu leche. Sem tirar nem pôr... E quando lhe peguei na
mão olhou-me com infinita tristeza, como se eu lhe tivesse tirado
qualquer coisa muito preciosa. Tinha as faces excessivamente
rosadas, tal qual como se tivesse tido...
Thiagus
–
Um pensamento estranho ou
um...
Brunus –
Sim. E note que trabalhava num laboratório, acho que era qualquer
coisa assim como ver se as comidas estavam passáveis... (Música
de flauta em surdina)
Thiagus
– (com um ar preocupado,
mudando o tom de voz) Assim não pode ser, senhor Saraiva. Você
tem a certeza de que ele destruiu os papéis?
Brunus – Tenho,
senhor director. Infelizmente tenho... E dei com os dois, ele e o
juiz, numa conversa muito íntima. Quando viram que eu me
aproximava, calaram-se. Acha que é caso para comunicarmos
superiormente?
Thiagus
– Acho que sim... Diria que é mesmo imprescindível! Mas... se
a coisa vai aos ouvidos de...
Brunus
– É o diabo, senhor director! E não há possibilidade de ser
nomeado outro juiz, um que não seja corrupto?
Thiagus –
Cale-se, Saraiva, por amor de Deus! Não fale em corrupção, que
as paredes têm ouvidos. A possibilidade é apenas conseguirmos
chegar ao primeiro-minis...
Brunus
– (interrompendo-o
firmemente) Shiiiiiu lhe digo eu agora, senhor director! Não
fale com ninguém... ou estamos fritos! Eles têm assassinos a
soldo, homem! Pela saúde dos meus filhos, temos de nos calar bem
caladinhos...
Thiagus –
Mas não seria má idéia fazermos chegar os papéis que não
conseguiram destruir a alguém da Oposição...
Brunus –
Não seja ingénuo, por amor de quem lá tem! Vamos mas é
calar-nos que nem ratos. Aparentar descontracção. E, se possível,
metermos a reforma mais cedo... e irmos para o estrangeiro...
Thiagus –
A vida é uma porra, Saraiva...
Brunus
–
A quem o diz, senhor director! A quem o diz! (Entram violinos,
por uns segundos)
Estephania – (muito
terna, para o público)
Foi então que eu percebi que por ali não ia a lado
nenhum. A questão do cura, a questão do padeiro panasca que um
dia lhe quisera abafar o pirilau... creio que me faço entender.
No dia seguinte, quando descia a escada, ouvi um grande barulho e
dois tipos aos tiros abateram uma vizinha que por azar se metera
no meio. Negócios de vigaristas que se tinham desentendido e tudo
acabou em mal.
Coro
– (cantando em estilo de
zarzuela, a que a música, mudando, dá o arrimo) Os curas e os padeiros
são
como vírus
Contagiosos
e muito puros
simpáticos
uns
companheirões
sempre
prontos prá folia
ervas
crescem-lhes no lado norte
têm
um miradouro no centro
uma
fonte perto das escadas
Os
curas são pau p’ra toda a obra
São
amigos do seu amigo
trazem
blusas de linho
cobrindo-lhes
os seios
Os
padeiros são fenomenais
são
bons remadores
rosas
os coroam pela tardinha
e
dão um porco a quem lhes dá uma sardinha.
Brunus –
Bom, bom, deixe lá os detalhes. O que eu queria saber é porque
é que o meu amigo não arranjou emprego por exemplo numa empresa
de arquitectura, ou meteu os
papéis para o funcionalismo público. (A música cessa)
Coro
– (em voz normal) Isto
é o êxtase
todos
procuramos o êxtase e
quando
se experimenta uma vez
sempre
se procura
a
exaltação
essa
que te faz levantar
correr
sem destino
ser
um gato pequenino
e
ter o mar na mão
Brunus
– Eu disse
o
meu leito está cheio de gente
não
havia aquecimento
ela
perguntou
que
te parece
eu
ri
porque
estava mudo
ela
fugiu com o padeiro o cura e dois oficiais de finanças
e
eu chorei.
Valeu
bem a pena
tinha
cá um parzinho de pernas
queria
passar à eliminatória seguinte
ainda
podia ser campeã
de
voleibol basquetebol
mas
o destino não quis
e
ficou sempre a ver navios
duma
pérgola junto à praia
enquanto
os aviões sulcavam mansamente o firmamento sobre a serra
lá
onde os fantasmas se acocoram
para
melhor verem o paraíso.
Apraz-me
pensar que ela fugiu quando o céu
lá
fora
caía
apodrecido e
eu
gritava
gosto
do cheiro dos castanheiros disse-lhe eu
e
quando o assassino arremeteu contra mim
com
o facalhão em riste
perguntei
a mim próprio
enquanto
lhe metia um balázio na pinha
porque
teremos nós de guardar as recordações
fechadas
a sete chaves
num
pequeno baú escondido debaixo da cama.
Coro
– Para os curas isso é muito agradááááável!
Brunus –
Chiça! Lá vem ele outra vez com a merda dos curas. Será um
anticlericalismo primário? Duma vez por todas: eles são
animistas, têm uma relação muito forte com a terra e o brilho
da Lua. Eles são
amáveis
e puros como os lobinhos aos dois meses. Eles têm em volta do
corpo
grandes
extensões de pomar com laranjas e maçãs reinetas.
Coro
– Eles fazem sexo virtual
com
as auroras e os dias bissextos. E não me venha com mais histórias
desse
jaez. Entendeu?
Thiagus
–
Mas poderia ter dito
gosto
muito mais de ti
que
de castanhas. O amor
não
deve dispensar a fantasia. Quando tudo nos foge
sigamos
em frente ou na retaguarda como os animais e os condenados
pois
é essa a nossa força para a imortalidade.
O amor
o
escrever
é
como
um
tacho de sopa
nem
mais
um
tacho de sopa de grão
com
os paladares todos no sítio
ou
então um pulo na direcção da sombra
numa
tarde de Sábado
quando
o vento sopra mansamente na Gardunha.
Estephania – (irónica)
O discurso que improvisei era uma relação com a vida
mas
podia ser qualquer outra coisa
seduz-me
pensar com
a
pele
a
febre
o
cheiro
o
sabor
isso
tudo
e
quando o meu leito está cheio de gente
é
que eu vejo como os minutos são como aparas de madeira
pedaços
de papel pintado
velhos
tecidos amarfanhados. (para
um dos do coro) Já agora, pá
dás-me
aí um cigarrinho?
Thiagus –
É uma contadora de histórias efémeras e todavia actuais!
Brunus
– Ora vai cagar. A honradez não te diz nada e então
ultrapassas a questão com
um
abismo de incertezas. Em volta, gente passava, infeliz como
sempre,
com
um sorriso ameno que
cada
vez é mais breve.
Estephania
–
Acontece antes de dormir quando
faz
frio lá fora
quando
chove ou faz um calor infernal
e então
apraz-me
pensar
que
afinal, quando passeávamos pela rua era tudo verdade.
(Música:
o solo de flauta. Lírica, a seguir agitada. Vai escurecendo)
(Fim
do primeiro acto)
Segundo
acto