SEGUNDO
ACTO
(Uma
sala vulgar: duas cadeiras, uma mesa de castanho, um espelho
redondo de meio corpo. Brunus sentado à mesa, Thiagus deambulando
pela cena. Os tambores e a trompete, que executam o seu
intermezzo)
Thiagus
– (como se recitasse uma lição) Foi tudo utilizado como
meio
só
como meio
para
a libertação do homem
como
um abismo de incertezas e porque o infinito
acabou
-
é agora outra coisa:
a
pobre velha gorda e depois magra que ao fim de tantos anos
desapareceu
e
nunca mais haverá outra como ela. O homem que dizia este é o meu
testemunho
gostava
que tudo ficasse dentro duma interrogação. Ombro com ombro
as
letras acumulam-se e
são uma realidade
duas
realidades
ou
mesmo três realidades. Se me permitem,
meus
senhores minhas senhoras
vamos
agora fazer um bocadinho de drama. Imaginem uma sala
com
algumas floreiras, duas poltronas, três cadeiras
um
aparador, uma mesa
e
dois homens vestidos de cinzento. Mas o primeiro usa calças
escuras e o segundo
veste
camisa azul clara como se vê nos desenhos. (Ligeira pausa)
Brunus –
Mas tem o meu amigo a certeza de que não havia ninguém no
quarto?
E
então como é que o assassino teria entrado? Diz você que ele
tinha a cabeça aberta e
as
goelas cortadas?
Thiagus
– O senhor inspector vai desculpar-me, mas é mesmo assim. Aliás,
àquela hora da noite o corredor estava inteiramente deserto. E a
senhora estava já recolhida ao leito, no quarto que ocupava mais
à frente. Ouvia-se um ruído como que de um martelo no sótão,
mas vá-se lá saber...
Brunus
– O que acho de mais interessante no teu discurso
é
a utilização de expressões primitivas.
Thiagus
– Mas não tem de que se queixar, afinal também andou na vida
airada...
Brunus
– É que sou de uma ilha onde o mar é mais azul
mas
emudece-me
pensar assim
sempre
me pareceu difícil a austeridade
quando
assistindo às investigações eu mergulhava
nesta
aparente calma. De aqui
resulta
muitas vezes o testemunho irrefutável
da
bárbara e pertinaz incultura
Com
tantos antecedentes parece que o imprevisível nos leva a um
resultado que não esqueceremos com facilidade
Direi
mesmo cá para comigo
agora
é que ela se foi
para
o caraças
apraz-me
pensar que está feliz
então
olho
o céu e digo
chove...
(pequena pausa)
Hum...
hum! E quanto a impressões digitais?
Thiagus –
Apenas as necessárias.(Olhando em volta, com certo medo) O
martelo fez um belo trabalho. E o navalhame também não esteve
nada mal. (elevando a voz)
O senhor inspector deseja visitar a cave?
(Faz-se escuro a
pouco e pouco.
Depois, quando a cena se
ilumina de novo, Thiagus reentra sózinho, esfregando as mãos e
senta-se à mesa)
Thiagus
– (dirigindo-se ao público em tom coloquial) No jardim
das traseiras existem canteiros de ervas aveludadas e arbustos
jovens onde vos seria grato passear. Pequenas estátuas de cupidos
bicéfalos e de atletas gregos em poses diversas retratam imagens
carregadas de saber universal. O silêncio pesa e os personagens
imaginados, em movimento, muito lentamente, abandonam o espaço
– dão lugar a um vazio imenso. Sejamos astuciosos como pássaros
e cautelosos como crocodilos. O trabalho é o trabalho e quando é
assim não há que hesitar. (entra Martim)
Martim
– Ao romper o silêncio, a vida corre... corre ao encontro da
morte inevitável.
(A luz baixa até ao
escuro total. No escuro.)
1ª voz
– A percepção do centro e da periferia...
2ª voz
– A pele, a tua pele sedosa, desmantelava as mais belas resoluções!
1ª voz
– Não há pachorra...
2ª voz
– Aproximaste-te numa atitude quase doméstica. Adivinhava-te o
olhar como uma flecha apontada à figura!...
1ª voz
– E cresceu o desejo de sentir
a impalpável presença da loucura.
2ª voz – E
foi então que ao meter a mão no bolso senti o frio do metal.
A luz acende-se de
repente. Um biombo cai, Margarida está de pé no centro.
Margarida
– Estamos perante uma pura eficiência expressiva, sem quaisquer
complacências...
Martim
– Como?
Margarida –
Não há prosa de menor duração que a lírica.
Martim
– O que dizes é tão intenso... tão humano...
Margarida –
(abraça-o) Todavia armado com a seriedade de uma sátira.
Martim
– Pode ser... Com sete “ameixas” dentro e silenciador...
Pequena
pausa.
Martim
– Os teus desejos projectam-se na pessoa que eu sou. Os teus
desejos aproximam-se como insectos atraídos por uma fonte de luz.
Já alguma vez disparaste a curta distância, fazendo pontaria
entre os olhos? Onde escondeste os remorsos?
Margarida
–
E os teus?
Martim
– Ainda se encontram do outro lado da porta.
Margarida
– Posso abri-la se o quiseres.
Martim
– Peço-te. Não o faças. Dá expressão a esse território
adormecido nos meus sonhos, esse território onde me sinto cómodo,
completo... (Pequena pausa)
...
Então o sábio Enoque escutou o relato e mandou o velho Matusalém
de volta. Matusalém
era o portador de uma notícia alarmante – o grande juízo
punitivo atingira a Terra e a humanidade. Toda a "carne"
iria ser aniquilada, por consabidamente ser suja e
perversa.
A cena escurece até
à penumbra ao som do canto de um rouxinol.
Coro
– Naquele território dominado pela aparente frieza
Martim
– (coloquial) Não
sei como é com vocês, mas eu tenho uma preferência especial
pelo Colt 38.
Coro
– Desamparadas estâncias sempre vazias emanam ideias de locais
desdobrados ocupando o centro
Martim –
E se o assunto demorar recorre-se à navalha de Albacete das legítimas,
ao amanhecer. Fere-se de baixo para cima, com o dedo sobre a lâmina...
Coro
– O
mar ao longe como se fosse o deserto, como um perfil debaixo do
arco escurecendo sob o sol de maio
Martim
– E para os casos espinhosos o melhor é um golpe de cima para
baixo na jugular quando os gajos estão distraídos. É
limpinho... (A cena
ilumina-se de novo. Margarida já se foi)
Coro –
Das torneiras pingam vagarosamente fios de água que o desespero
parece coagular. Elas –
não
as palavras
mas
o resto
abraçam-se
longamente
enquanto
devoram o mel que escorre pela madrugada
Martim –
Estão a ver o meu ponto de vista? (Rapa de um pistolão e
abate limpamente um dos membros do coro, que cai de costas
desamparado) Com gente desta todo o cuidado é pouco. Vão por
mim: é fogo para cima e alma até Almeida! Se não tosquiássemos
uns quantos, qualquer dia faziam-nos crescer orquídeas debaixo
dos sovacos... (Sai de cena
com um andar todo airoso, como se fôsse um duro de cinema).
(Entram
em cena Estephania – que subiu para o carro – e Brunus.
Acariciam-se, enquanto Thiagus escreve sentado à mesa.)
Thiagus
–
(lendo o que escreveu) Em cada semente
que
cai no tapete
eu
vejo o princípio
de
novos céus e nova terra. Medito
em
como ganhar-te
como
possuir cada parte obscena de ti
cada
bocado do teu corpo. (Vira e
revira a folha. Em tom coloquial, para o público) E anda um
homem para aqui a ganhar a vida e a aturar estas bacoradas... Não
sei porquê, mas temo que até ao fim desta merda ainda cometa
alguma loucura...
Brunus
– Até ao gume da mais fria espada do Senhor
os
nossos corpos na espessa noite
até
ao gume
até
ao gume
face
a face
os
nossos corpos como dois arbustos
no
horizonte
Estephania –
Até ao princípio
os corpos nus e plenos de desejo
brilham
num acto de posse
como
no fim
Brunus
– Na desordem deste amor
o vento devora as palavras
os pássaros do meio-dia gritam na nossa carne
profundamente
Thiagus
– O teu sangue é um
signo
que me devora. O teu chapéu, pelo contrário, é um pedacinho
do
paraíso que pode encontrar-se à venda nas melhores casas da
especialidade e se não encontrar encomende para...
Estephania
– (distraidamente) Tás aqui tás a levar com a malinha
na tromba...
Brunus
– Sinto as mãos
que deslizaram suavemente pelos meus ombros nus e
sinto
a voz
trémula pelo desejo
A
resposta tarda
o
espasmo chega mais cedo
e
todo o horizonte se iluminou. Resta saber (coloquial)
se o Criador
fez
chegar à criatura o seu intento, porque nestas coisas nunca é
demais
exigir
a garantia e se possível por cinco anos não vá o azar acabar
com
as
peças sobressalentes
Estephania
– Na vertigem da noite
lacerada
de gargalhadas
o desejo dança
Brunus
–
Onde se cultiva o riso, por vezes
as
coisas têm pesadas consequências. (Pausadamente)
Podia contar-vos aqui uma ou duas histórias que... não sei,
mas em casas que por vezes nos parecem acima de toda a suspeita...
hem, hem! Mas cala-te boca...
Estephania
– No horizonte
vêem-se
figuras que pouco a pouco se aproximam. Umas vêm modestamente, são
pequenas e escuras, vestem mal e têm na cara leves
estremecimentos. Outras são mais altas, mais fortes, mais belas,
cheiram a estranhas essências, e às vezes
um
vento
cheio
de objectos em desordem
toca-lhes no rosto
carinhoso
como
muitas palavras de amor.
Thiagus
– (deita-se)
Enquanto os outros se desenrascam deixa-me cá ir passando p’las
brasas.
Estephania
– O teu olhar pode trair os teus intentos, mas o teu coração
permanece firme e nem a surpresa de veres que o Céu nos rejeitou
te faz tremelicar como um velho baboso assistindo a um concerto
num salão de nomeada. Apesar de saberes que sou uma puta, nunca
te propuseste levar-me ao altar e agradeço-te por isso. Quando
abandonei as minhas moradas, senti que jamais regressaria e,
portanto, olhei tudo com uma dor renovada e uma atenção
definitiva e letal...
Brunus – E
as orações chegavam até nós
como sopros de um esquisito
vento matinal. Íamo-nos afastando de terra com um aperto no
coração. Um de nós – creio que fui eu – ajeitou a pistola
para a ter mais à mão.
Estephania
– Morrer é uma escolha que não se pode impor. Morrer mata-nos
e, por vezes, somos mais que anjos, temos no rosto canções mais
chatas que as daquele poeta que também é ministro ou coisa
assim.
(Thiagus
ergue-se num salto)
Thiagus
– Perdi o rasto do meu futuro
perdi
a esperança de morrer em paz com a minha morte
os
meus sonhos trocaram-me
por
corpos que se desenham nas paredes
no
espírito
Estephania
– Numa pincelada rápida e pastosa
desenha-se
um
rosto
de
olhos profundos
Brunus
– Ao longe alvejam igrejas abobadadas
tão antigas como a vertigem. Em volta
um
silêncio devastador .(Saem os três)
(Entram
figuras que desenham com os corpos movimentos pouco ortodoxos.
Sentam-se depois no chão)
Primeira
Figura
– Encontrei os olhos
deste
olhar que me devora
Tornei-me
na máquina infernal em que se acham os medos
E
os meus pensamentos morrem aos milhares. Tenho por dentro
muitos
países desconhecidos
Segunda
Figura
– Cabelos de ouro cruzando o ar
bordam
as órbitas dos planetas futuros. Outros lugares comuns, pelo
contrário,
cheiram
a terra molhada, a sopa de feijão, a animais mortos
Primeira Figura
– Há manhãs em que a luz se veste de lavado
como
um guarda-nocturno aos
domingos. Há mãos que percorrem manhãs inteiras
escondidas
num bolso
e
corpos que se comem como se fossem amendoins
Segunda
Figura
– Sinto-me hoje mais negro
que
uma manhã de Verão.
A
minha vida está cheia
de
pequenas loucuras variáveis
de
cheiros e de olhares suspeitos
Primeira
Figura
– Olha o outro lado
Sente-o
e imagina-te
numa
torre de paredes revestidas de retratos
ali
onde as pedras têm nomes
inscritos
pelos amantes
Tal
como entraram, vão saindo agora – muito suavemente. (Saem,
a cena fica deserta)
Estephania
– (entrando cheia de
ritmo, vestida de sevilhana e acompanhada pela música de um
pasodoble que cessa assim que ela começa a falar com muito siso)
Vão-me desculpar, mas tenho de desfazer um engano:
aquele rapaz que anda por aqui juro-vos que não o conheço de
parte nenhuma. Um belo dia apareceu-me à porta do emprego e
disse-me sem mais nem menos: não fui eu que o matei, nem sequer o
conhecia. Fiquei parva! Nem lhe respondi e o gajo, zás: quando te
vi pela primeira vez, senti que a minha vida tinha mudado. E
desanda-me sem mais nem menos, ora toma, fiquei p’ráli
especada, chiça, o tipinho deve ser mono, ou coisa assim. Nessa
altura andava eu com um rapaz da polícia, o Tony, aquele vocês
sabem, do bigode, um gajo porreiro, ainda lhe disse: ó Tony, e
tal e coisa, chapei-lhe tudo. E o Tony: anda, minha parva, não
penses mais nisso, com voz de galo assim pró rouco, grrrrr! Já
viram a estrila?
Brunus –
(entrando, vestido de
toureiro) O comportamento das raízes na terra pode ser o
diabo! (Dirigindo-se ao público) Ora vivam lá, seus
marotos. (retomando o fio à meada) E então fui para casa,
acendi a luz da sala e fiquei a olhar para o espelho:
abandonaste-me, disse ela censurando-me. Não, respondi eu; tu é
que me abandonaste, eu limitei-me a ir-me embora. (Com um gesto
cúmplice de mãos) Tu é que, etc. Tão a ver a coisa, hem?
(mudando
de tom e dirigindo-se a Estephania)
A senhora não se importava de me aconselhar aqui numa coisa? Ora
bem: tá a ver estes dois dedos? Suponha agora que eu os
mergulhava... em sangue e lhe fazia... uma cruz na testa, hem?
Estephania –
Tudo é solidão
Apenas
espero
a
confirmação dum beijo pesado e secreto
Em
cada gota de sangue
o
sangue de todos
contém
sementes do meu corpo
um
certo sabor
um
certo momento tranquilo em redor
de
tudo o que corre, esvoaça ou flutua
O
escuro faz-se sentir na terra, chovem papéis brancos
com
a intensidade possível. Poderíamos, entrementes, ouvir
um
som de jazz. Tudo foi concretizado a partir das origens
há
uma utilização de suportes imprevisíveis e
agora
por
exemplo
a
voz torna-se sumida. Pensei amar-te
e
afinal era apenas sono tava cá c’uma soneira qu’até as unhas
dos dedos dos pés se m’encarquilhavam, carago Vai-s’a ver e
na’ se tem nada no bolso nem no d’reito nem no ‘squerdo,
foda-se! (Chega ao pé de Brunus e acaricia-lhe a face) E o
menino dond’é? Está aqui há muito tempo? (A cena vai
escurecendo até mergulhar na escuridão)
(Fim
do segundo acto)
Terceiro
acto