NAQUELE DIA EU VI O
DIABO DE PERTO
(Miguel Carneiro)
Para Pedro Vianna e Éric Meyleuc,
poetas ternos em meu coração de
menino.
Caminhava aquele ano tenebroso, e a
cidade que abracei como pátria acordava sob morteiros. O meu leito,
que dividia com algumas mulheres e que eu imaginava que parecia
incólume às bombas alemãs, sacolejava. Contudo, as janelas do quarto
de dormir permaneciam fechadas por todo o longo dia.
Minha irmã já estava morta, e, em meio
aos escombros da cidade, desfilava o Marechal Philippe Pétain,
repleto de sacos de presentes do Magazine Printemps. Parecia Satã
com sua arrogância. Eu buscava meu povo entre os morteiros. Meu
irmão caçula, Cícero Dias, que era pintor em Paris, simpatizante do
Partido Comunista, tinha fugido na véspera da invasão para Portugal,
numa difícil missão de entregar ao secretário do embaixador, mister
Marshall, o poema “Liberdade” de Paul Èluard, para que o poeta
inglês Rolland Penthouse o traduzisse poema para o inglês. Contudo,
ele teve a precaução de riscar a palavra “liberté” da cópia do
poema, para que, caso fosse ele pego, não caísse no pelotão de
fuzilamento entre os alemães, mas o poema "Liberté" de Paul Éluard
chegou ao seu destino e foi impresso em milhares de panfletos e
jogado sobre as tropas aliadas no front.
Minha família na Europa se movimentava
solidária contra o monstro do Apocalipse. Havia muitos mortos
estendidos pelas ruas, e num deles eu vi um cidadão francês idoso,
crivado de projéteis, que no peito guardava um escapulário com a
estampa de Nossa Senhora do Carmo e Coração de Jesus, de plástico,
amarrotado de cinzas e terra. O apanhei e coloquei sobre o meu
peito. Estava atônito diante de tantas atrocidades. Um menino de
apenas sete anos, que fugia de um palácio nas imediações do
Boulevard du Montparnasse, com um semblante de anjo assustado,
buscou abrigo junto a mim. A sanha assassina dos soldados nazistas
não também poupava os inocentes. Sobretudo, eu, judeu marradino,
exilado de minha pátria, naquela terra distante.
Nos subterrâneos da linha de esgoto
busquei junto com o pequeno infante um meio de nos proteger. Fazia
daquele local um abrigo seguro, semelhante às primeiras catacumbas,
onde em Roma, no tempo do imperador Nero, os primeiros cristãos se
reuniam, fugindo da perseguição do louco tirano. Eu também buscava
nos proteger daquelas bestas que encarnavam o Apocalipse. O som
ensurdecedor de tanques e o marchar dos soldados sob o solo francês
me traziam pânico e medo. Eu via a morte tão próxima que se fechasse
o olho já estaria do outro lado, em companhia dos defuntos.
Sou apenas um poeta brasileiro, fugindo
das atrocidades do Regime de Getúlio Vargas, e encontrei na capital
francesa, Paris, meu verdadeiro paraíso. Escapei das garras do DOPS
e da polícia secreta de Felinto Müller, que me caçavam como um
condenado, através da fronteira do Rio Grande, indo parar na
Argentina, onde de peguei um paquete em direção à Europa. Muitos
companheiros que trabalhavam na redação do jornal junto comigo e não
quiseram delatar que eram os membros da célula comunista a qual
pertencíamos acabaram sendo torturados e mortos. Durante o período
em que vivi em Paris, trabalhei fazendo pequenos biscates. Ora me
tornava pintor de paredes de apartamentos, ora trabalhava como
acompanhante de idosos. No território francês, também vivi na
ilegalidade, fugindo das revistas dos policiais, que demandavam “papier,
papier” pelos corredores dos metrôs. Sou um sujeito de
compleição física avantajada e posso muito bem ser confundido com um
imigrante argelino, pela cor de minha pele e o modo de como me
visto. Durante cerca de seis anos fiquei sem notícias de meus
parentes na América do Sul. Evitava me comunicar com eles para que a
polícia secreta do ditador não pudesse me localizar. Essa estratégia
de sobrevivência me colocava livre das garras do carniceiro, e assim
eu também protegia os meus familiares que ficaram no Brasil de serem
perseguidos.
Em 1936, eu já estava na Europa, e
através de uma notícia do Brasil soube que um grupo de vinte e dois
companheiros da organização humanitária Brazkor, que acolhia judeus
no território brasileiro, foram expulsos do meu país e embarcados no
navio “Bagé”, tendo como comandante Amaury de Bustamante Fontoura,
com destino ao porto de Hamburgo. Me dirigi da capital francesa para
o referido porto, e lá os estivadores franceses do porto de Havre,
quando o navio atracou, de passagem para Hamburgo, avisados por
membros do PCB, estavam mobilizados para dar liberdade aos expulsos;
e, por precaução, o dito comandante pediu garantias à polícia do
porto. Ao saber disso, os estivadores declararam greve. O comandante
comunicou-se com o cônsul brasileiro, e este repassou a informação
ao embaixador em Paris, Souza Dantas. Do contato das autoridades
brasileiras e francesas foi resolvido o desembarque dos comunistas
sob a responsabilidade das autoridades locais, os quais seriam
encaminhados por terra à fronteira da Suíça.
Quando eclodiu a batalha em Paris eu fui
para as ruas defender o povo e o solo francês. Por três dias e três
noites lutamos contra a tirania e a barbárie que queria se instalar
na terra de Marat. Quando a batalha acabou, vi ao longe tremular na
torre Eiffel o pavilhão nacional francês, o solo francês estava
livre do jugo do carrasco alemão, e eu tinha cumprido minha missão.
“Paris está em chamas?” Esta
teria sido a pergunta feita por Hitler ao general von Choltitz
durante uma ligação telefônica. O general, todavia, rendeu-se ao
coronel Rol-Tanguy (da FFI) e ao general Leclerc (FFL) às 16 horas
do dia 25 de agosto de 1944. As perdas alemãs chegaram a 3.200
mortos e 12 mil prisioneiros. Os franceses tiveram mil soldados
mortos e uns 600 civis abatidos nas ruas de Paris. Os feridos
chegaram a 3.500. Os anglo-saxões que também entraram na cidade para
combater os nazistas tiveram 130 mortos e 319 feridos. No total, a
batalha de Paris custou a vida de 5.000 civis e soldados, de ambos
os lados.
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