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Nicolau Saião

 

A RESPOSTA

 

(Wladimir Saldanha)

 

“Carnaval” é palavra polissêmica. E a diversidade de significados dificulta a apreensão de seu conteúdo.

 

Isso: estava começando bem.

 

Um dos sentidos possíveis é o de bagunça, desordem. Outro é o de alegria extrema.

 

Lembrou-se de Moacir, o filho-da-puta.

 

Mas o carnaval, originalmente, coincidia com o período entre a festa de Reis e a quaresma. Depois, passou a ser, somente, o tríduo que a antecede. Nesta acepção, há o termo antigo: entrudo.

 

Apagou antigo e escreveu, em lugar, arcaico.

 

No carnaval propriamente dito – abriu outro parágrafo – temos uma suspensão temporária dos códigos jurídico e moral. A concordância estava certa? No carnaval, determinadas condutas do agente – Moacir, por exemplo – não podem ser levadas à conta de pecado, ou mesmo ilícito. Os estudiosos – Moacir não queria nada com a vida – são unânimes em afirmar que tais momentos de suspensão da força normativa são necessários à sociedade, funcionando como válvula de escape... – Não, certamente não era essa a expressão dos estudiosos! – ... como mecanismo liberador de tensões, imprescindível à fase seguinte, de equilíbrio social.

 

Leu a resposta. Achou que estava boa. Releu toda a prova. Ergueu os olhos para o professor de Introdução, que folheava uma revista, lá na sua mesa. O idiota deixando a pesca correr solta. Atrás, podia ouvir o burburinho de Cíntia e Moacir.

 

Moacir tinha-lhe dito aquela frase cínica, Estou esperando uma pessoa. Ah, tudo bem, ela respondera. Tinha caminhado da avenida até o largo, só porque ele comentara que estaria no camarote do primo. Reconheceu o namorado lá em cima, com a latinha de cerveja. Subiu, apareceu rindo, Vim fazer uma surpresa. Recebeu aquela resposta.

 

O namoro vinha do último ano de colégio e estendera-se ao primeiro de faculdade. Até o carnaval do segundo. Quando aquela Cíntia, que parecia sua amiga, tinha começado a dar em cima de Moacir. E ela, idiota, sem perceber nada.

 

Foi saber depois que a pessoa era Cíntia.

 

Vozinha irritante. Está ditando a resposta para o outro, sentado ao lado. Olhou-os de relance, fisionomia contrafeita, como demonstrando que o zunzunzum incomodava. Encontrou o olhar de Moacir. Aquele olhar melancólico, falsamente melancólico, que ela tentou consolar por quase três anos.

 

Cíntia, sentada atrás, continuou, agora mais baixo.

 

“Carnaval” é palavra polissêmica – releu de novo a última resposta. Achou, dessa vez, que ficara insuficiente. O professor gostava de quem escrevesse muito. Dizia que não, mas era sim. E tinha falado, também, que preferia aluno com opinião própria. Tudo bem, ela havia escrito a opinião dos estudiosos, mas a sua não colocara.

 

Pode-se pensar que o carnaval é um mal necessário...

 

Pode-se?

 

... e, se as forças de conservação o toleram, é certamente porque tem uma função no contexto da sociedade.

 

No fundo, ela achava que não.

 

Tal função – continuou – não é outra que a de dar vazão aos instintos, ao ímpeto transgressor do ser humano... – estava se repetindo? – e não pode ser obstruída pela religião, nem pelo Estado, sob pena – o que aconteceria, meu Deus? – sob pena de uma grande convulsão social.

 

Mas “carnaval”, palavra polissêmica, não era já uma grande convulsão social?

 

O carnaval, assim, não representa uma solução de continuidade, mas justamente uma manutenção da mesma ordem com que pretende romper.

 

Tinha dito a Moacir que, ou namorava sério, ou não servia.

 

Passada a folia momesca – adorava a expressão – tudo volta sintomaticamente ao estado anterior – adorou o sintomaticamente. Empolgou-se: o carnaval, conclui-se, representa um intervalo necessário, que logo retoma fortes compromissos...

 

Compromissos?!

 

... fortes compromissos sociais.

 

Faltavam ainda duas linhas. Mas achou que estava bom. Releu a prova novamente. Deteve-se, uma vez ainda, na última resposta, que valia ponto e meio. Duas linhas em aberto. Poderia puxar uma vírgula. Ou fazer, do ponto final, seguimento. Atrás de si, a voz da colega havia calado. Logo Cíntia se levantava, para entregar a prova. Moacir, para não dar na vista, demoraria mais. Sentiu alguma coisa no cotovelo: era ele. Uma palpitação lhe tomou, aquele calor nas faces. Virou-se: pedia-lhe o gabarito das perguntas objetivas. Aquela boca falando sem som, gabarito, gabarito. Mais safado assim, olhando de viés o professor na frente da sala. Lá, ajeitando com o dedo médio os óculos que escorregavam do rosto, o velho lia uma revista. Sinal obsceno. Pornográfico.

 

Escreveu na borracha o gabarito para Moacir. Deixou-a no braço da cadeira, próxima ao cotovelo. Percebeu quando a pegou. Estaria agora conferindo os dois gabaritos: o dela e o de Cíntia. Ouviu o ruído de borracha apagando papel. Viveu aquilo como uma vitória. Tanta alegria, que esboçou um sorriso.

 

Será?

 

Ele devolvia a borracha alguns minutos depois. Alisou o cotovelo da antiga namorada, que sentiu a nuca eriçar-se.

 

E o carnaval, por fim, está disperso nos outros meses do ano, em outras pequenas festas, cada momento de liberdade e fruição, daí a utilização do termo de forma ampla, assumindo novas possibilidades – era bobagem, sabia, mas apertou a letra na margem da folha.

 

Aproveitou as cadeiras amontoadas para virar-se diante de Moacir, quando se levantou para entregar a prova. Girando o indicador diante da boca, ele fazia sinal de falar-lhe na saída. Fosse o que fosse, diria que sim, sim, sim.

 

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