A
RESPOSTA
(Wladimir Saldanha)
“Carnaval” é palavra polissêmica. E a
diversidade de significados dificulta a apreensão de seu conteúdo.
Isso: estava começando bem.
Um dos sentidos possíveis é o de
bagunça, desordem. Outro é o de alegria extrema.
Lembrou-se de Moacir, o filho-da-puta.
Mas o carnaval, originalmente,
coincidia com o período entre a festa de Reis e a quaresma. Depois,
passou a ser, somente, o tríduo que a antecede. Nesta acepção, há o
termo antigo: entrudo.
Apagou antigo e escreveu, em
lugar, arcaico.
No carnaval propriamente dito –
abriu outro parágrafo – temos uma suspensão temporária dos
códigos jurídico e moral. A concordância estava certa? No
carnaval, determinadas condutas do agente – Moacir, por exemplo
– não podem ser levadas à conta de pecado, ou mesmo ilícito. Os
estudiosos – Moacir não queria nada com a vida – são unânimes
em afirmar que tais momentos de suspensão da força normativa são
necessários à sociedade, funcionando como válvula de escape... –
Não, certamente não era essa a expressão dos estudiosos! – ...
como mecanismo liberador de tensões, imprescindível à fase seguinte,
de equilíbrio social.
Leu a resposta. Achou que estava boa.
Releu toda a prova. Ergueu os olhos para o professor de Introdução,
que folheava uma revista, lá na sua mesa. O idiota deixando a pesca
correr solta. Atrás, podia ouvir o burburinho de Cíntia e Moacir.
Moacir tinha-lhe dito aquela frase
cínica, Estou esperando uma pessoa. Ah, tudo bem, ela respondera.
Tinha caminhado da avenida até o largo, só porque ele comentara que
estaria no camarote do primo. Reconheceu o namorado lá em cima, com
a latinha de cerveja. Subiu, apareceu rindo, Vim fazer uma surpresa.
Recebeu aquela resposta.
O namoro vinha do último ano de colégio
e estendera-se ao primeiro de faculdade. Até o carnaval do segundo.
Quando aquela Cíntia, que parecia sua amiga, tinha começado a dar em
cima de Moacir. E ela, idiota, sem perceber nada.
Foi saber depois que a pessoa era
Cíntia.
Vozinha irritante. Está ditando a
resposta para o outro, sentado ao lado. Olhou-os de relance,
fisionomia contrafeita, como demonstrando que o zunzunzum
incomodava. Encontrou o olhar de Moacir. Aquele olhar melancólico,
falsamente melancólico, que ela tentou consolar por quase três anos.
Cíntia, sentada atrás, continuou, agora
mais baixo.
“Carnaval” é palavra polissêmica –
releu de novo a última resposta. Achou, dessa vez, que ficara
insuficiente. O professor gostava de quem escrevesse muito. Dizia
que não, mas era sim. E tinha falado, também, que preferia aluno com
opinião própria. Tudo bem, ela havia escrito a opinião dos
estudiosos, mas a sua não colocara.
Pode-se pensar que o carnaval é um
mal necessário...
Pode-se?
... e, se as forças de conservação o
toleram, é certamente porque tem uma função no contexto da
sociedade.
No fundo, ela achava que não.
Tal função – continuou – não é
outra que a de dar vazão aos instintos, ao ímpeto transgressor do
ser humano... – estava se repetindo? – e não pode ser
obstruída pela religião, nem pelo Estado, sob pena – o que
aconteceria, meu Deus? – sob pena de uma grande convulsão social.
Mas “carnaval”, palavra polissêmica,
não era já uma grande convulsão social?
O carnaval, assim, não representa uma
solução de continuidade, mas justamente uma manutenção da mesma
ordem com que pretende romper.
Tinha dito a Moacir que, ou namorava
sério, ou não servia.
Passada a folia momesca – adorava
a expressão – tudo volta sintomaticamente ao estado anterior –
adorou o sintomaticamente. Empolgou-se: o carnaval,
conclui-se, representa um intervalo necessário, que logo retoma
fortes compromissos...
Compromissos?!
... fortes compromissos sociais.
Faltavam ainda duas linhas. Mas achou
que estava bom. Releu a prova novamente. Deteve-se, uma vez ainda,
na última resposta, que valia ponto e meio. Duas linhas em aberto.
Poderia puxar uma vírgula. Ou fazer, do ponto final, seguimento.
Atrás de si, a voz da colega havia calado. Logo Cíntia se levantava,
para entregar a prova. Moacir, para não dar na vista, demoraria
mais. Sentiu alguma coisa no cotovelo: era ele. Uma palpitação lhe
tomou, aquele calor nas faces. Virou-se: pedia-lhe o gabarito das
perguntas objetivas. Aquela boca falando sem som, gabarito,
gabarito. Mais safado assim, olhando de viés o professor na frente
da sala. Lá, ajeitando com o dedo médio os óculos que escorregavam
do rosto, o velho lia uma revista. Sinal obsceno. Pornográfico.
Escreveu na borracha o gabarito para
Moacir. Deixou-a no braço da cadeira, próxima ao cotovelo. Percebeu
quando a pegou. Estaria agora conferindo os dois gabaritos: o dela e
o de Cíntia. Ouviu o ruído de borracha apagando papel. Viveu aquilo
como uma vitória. Tanta alegria, que esboçou um sorriso.
Será?
Ele devolvia a borracha alguns minutos
depois. Alisou o cotovelo da antiga namorada, que sentiu a nuca
eriçar-se.
E o carnaval, por fim, está disperso
nos outros meses do ano, em outras pequenas festas, cada momento de
liberdade e fruição, daí a utilização do termo de forma ampla,
assumindo novas possibilidades – era bobagem, sabia, mas apertou
a letra na margem da folha.
Aproveitou as cadeiras amontoadas para
virar-se diante de Moacir, quando se levantou para entregar a prova.
Girando o indicador diante da boca, ele fazia sinal de falar-lhe na
saída. Fosse o que fosse, diria que sim, sim, sim.
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