ANTOLOGIA PISCOSA
(Wladimir Saldanha)
DE
TARRAFA
Para pescar faíscas,
fulgores, gotas de
prata,
dessas que pedem
socorro
com seu argênteo
idioma,
dessas que em cinco
segundos
(gotas) buscam em
vão
chover do chão paras
nuvens,
para pescar faíscas,
não, não precisas de
iscas!
É de tarrafa – uma
rede
que rouba do mar
seus níqueis:
esses peixes, pitittingas,
que vão, da tarrafa
cheia,
morrer à míngua, na
areia...
VERÔNICA
Verônica enxuga as
mãos na toalha de prato.
Verônica, Vênus
Anadiômena,
partícipe
da natureza dos
peixes.
de Botticelli – não
de Milo.
Solidária, sem
sudário,
amorosa, no seu
esforço,
Verônica faz o
almoço.
À
FACA “PEIXEIRA”
És a preferida
nos crimes
passionais:
espora ou acicate
de traído ou
ultrajada...
Ah, “peixeira”!
Tratas dourado,
corvina,
cavala,
mas o teu gume
(fome e ciúme),
prefere vermelho.
DO
BAIACU
O inconformado
morto na areia...
Queres que morte,
baiacu?
De rede? Arpão?
Espinhos inúteis
de triste peçonha...
Cadáver que sonha
defesas...
ataques...
Ó prontidão,
ó inchaço.
Conforma-te logo
à morte murcha!
O
GRANDE BÚZIO
É fruto sem sazão:
tem que ficar
dependurado,
ficar pesando,
fisgado
por um arpão.
Põe-se uma esteira
no chão.
Três dias depois ele
tomba
– o grande búzio,
como uma fruta
madura,
como uma fruta pêca,
sem molusco,
uma fruta
onde se escuta o
mar.
FORA D’ÁGUA
Como peixe fora
d’água
me senti, naquela
sala.
Meu lugar não era
aquele:
falava sem minha
fala.
Anêmona, o jarro
de flores? Não me
era...
(Ressequida
primavera.)
Coral não me era
o descolorido
peixe de louça.
Como peixe fora
d’água
– do mar, ou mesmo
da poça
d’água,
embora bebesse
vinho,
como em cardume – e
sozinho,
eu já me sentia
arfar...
E fumasse embora
cigarros,
não me veio, dos
pigarros,
minha espécie, ou
ascendência.
Meus olhos muito
secos,
minhas brânquias, a
dorsal
– tudo me
encurralava...
Falava sem minha
fala.
Aquela sala – nem de
aquário,
nem de aquário me
servia...
Aquela conversa de
versos,
aquela conversa
vazia,
fazia-me sufocar
no ar, como peixe
fora d’água.
DOS PEIXES ABISSAIS
A quem lhe pedia o
fundo
ensinaste-o,
linofrino,
para roubar ao
menino
seu gosto de
superfície?
Maldigo tua
imundície.
Todos da tua
espécie.
De trouxas
adolescências
compuseste,
lamprotoxo,
as tuas
fosforescências?
Maldigo-te a
descendência.
Teu sarcasmo foi
espasmo?
Espasmo... de peixe
morto?
Já não temo teu
perigo.
Não te exorto – te
maldigo.
Maldigo também teu
ócio,
se ensinaste,
teleósteo,
aos jovens, teu
difícil
ofício de fóssil.
e se ensinaste a
nadar
quando vais em
sentido contrário...
Já não te acho o
“tal”... Ó “peixe abissal”!
– digo-te “peixe de
aquário”.
ÁGUA-VIVA
Difícil é saber
o que, sendo
translúcido,
é ácido
o que, sendo flébil,
é açoite
o que, sendo nado,
bruxuleia
porque, sendo nada,
é vida.
O
CASCALHO
Vem na rede uma
moréia,
como cascalho em
batéia.
Que fazer do mais
estranho
peixe, que não dá
ganho?
A cobra do mar,
maldita,
fingindo-se de
pepita,
com esmero de
esmeralda,
se turmalina
baldada,
se cobra, ainda é
cascalho:
nem cascavel, nem
chocalho.
Mas o poeta a
aceita:
admira-lhe a mutreta,
e paga um preço
tamanho
ao pescador, pela
manha,
que lá, na sua
batéia
de celulose, a
moréia
não é cascalho, mas
gema
entre o cascalho – o
poema.
OS
PEIXES VERTICAIS
Pela boca,
amarrados,
o pescador os traz.
São os peixes
verticais.
Nunca sonharam tal
mar
assim, de morte e de
ar.
Nunca se viram
pescados.
Escorre deles,
molhados,
uma saudade do
fundo.
Seu cheiro, seu
cheiro imundo,
requer água doce e
limão...
Também mais sal –
uma mão
que lhes devolva o
talhe:
que já não pesque –
retalhe
na horizontal
posição.
MERCADO DE PEIXE
A guelra vermelha
confirma
que o barco voltou
há pouco.
Também o dedo na
tenra
carne autoriza a
compra.
Quarta-feira: o
melhor dia
para o cardume
arbitrário.
Iscas promocionais
disputam as mãos com
anéis.
De gelo e sal grosso
é feito
o mar morto de nossa
fome.
A balança aguarda o
peso
que mina sangue, no
prato.
Mas vale o engulho,
no embrulho:
peixe fresco em
jornal de ontem.
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