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Max Ernst, Ubu imperador

 

O ÚLTIMO DA PAUTA

 

(Wladimir Saldanha)

 

O Presidente queria aquele voto do juiz Maimone. Mandou o juiz Gildásio Lins ligar para Maimone - afinal, o Presidente não podia se humilhar a tanto. Mas precisava daquele voto. Com o juiz Belmiro, não tinha vez. Esquerdinha. E o substituto da juíza Maria Teresa ainda não tinha sido escolhido. Já o juiz Francisco Carlos era sempre uma incógnita.

            Tinha recebido o pedido diretamente do Governador. Explicou ao Governador a composição da corte – as idiossincrasias. O Governador ouvindo calado. O Presidente falou que era Presidente e que, como Presidente, faria o possível. Perguntou se não achava bom adiar a pauta, até a chegada do substituto de Maria Teresa, que poderiam promover dentre gente de confiança. Mas o Governador nem queria ouvir falar em adiamentos: tinha pressa. E disse que sabia que podia contar com o Presidente.

            Então o Presidente se preocupou. Não podia ficar só com o voto do Gildásio, contando com a surpresa de Francisco Carlos. Se ele próprio, o Presidente, pudesse votar naquela matéria, não haveria problema. Mas o Regimento proibia – só lhe dava a matéria administrativa e o voto de desempate. E o processo, claro, não era administrativo. Com aqueles dois – Francisco Carlos e Maimone –, tinha de garantir Maimone, pelo menos. Francisco Carlos, um legalista que ascendera ao Tribunal por antigüidade, era imprevisível. Garantindo Maimone, se Francisco Carlos votasse com Belmiro, ele, o Presidente, desempatava pelo Governador.

            É por isso que o Presidente, pijama e chinelo, ainda não dormiu. Está sentado na ponta da cama, olhando o aparelho de telefone. Gildásio ficou de ligar antes das dez.

            Há um ano era tudo diferente. Foram cochilar, deu nisso. Aquele Belmiro fingido. O sujeito era um – subiu ao Tribunal, ficou outro. Vinte anos de magistratura, sempre ali, fiel. De repente vem o Tribunal e o homem se transforma. Havia boatos de câncer. Pode ser. O sujeito, vendo a morte chegar, desgoverna. Embora parecesse bem de saúde. Mas o câncer, bem se sabe, é traiçoeiro. Assintomático. Que adianta, porém, um juiz de esquerda? E se sentia o melhorzinho. Era no entanto como os outros, com a só diferença de que era burro, porque, sendo vendido, não lhe pagavam a conta. O Governador devia ter apressado a escolha do novo membro, em lugar da juíza aposentada. Deixou, deixou, agora estavam todos no aperto, precisando do voto daquele Maimone.

            Que iria querer alguma coisa. O Presidente sabia disso. Certamente viria de novo com a tal história da assessoria para a filha. Teve de dar carta branca a Gildásio: dessa vez, o Presidente não poderia negar. A moça tinha tentado advogar e, depois, tinha tentado butique. Nada dava certo. Sim, vai pedir uma assessoria, vai pedir. E ainda é feia.

            Que faz Gildásio, que não dá resposta?

            O Presidente se levanta. Retira o telefone do gancho, confere que está dando linha. Devolve o aparelho ao lugar. São nove e meia no seu relógio. O Presidente detesta dormir depois das nove, pois começa a sentir fome. Já está percebendo aquela gastura, muito timidamente, insinuando-se nas entranhas. E detesta deitar-se de barriga cheia. Custa dormir e, quando dorme, assaltam-no, esbofeteiam-no, matam-no. Às vezes Dona Celestina, a antiga enfermeira da mãe, vem avisar-lhe de mais uma diarréia. Não, não vai comer.

            Caminha para a varanda do quarto. Virando, calcula mal e bate com força a canela no pé da cama. Curva-se com a dor. Engole o gemido, com medo de acordar a mulher. Olha a mulher dormindo: nem percebeu o estremecimento.  Um sono de pedra. Quando Gildásio ligar, vai abrir os olhos, meio assustada. Entendendo que é o telefone, vai notar o abajur aceso, e que dormiu de óculos, com o romance aberto. Aí vai tirar os óculos, para colocá-los, com o livro, sobre o criado-mudo. Apagará o abajur, deixando-o talvez falando no escuro com Gildásio.

            Sentado na beira da cama, o Presidente vai massageando a perna, sentido a dor da pancada passar. Ia para a varanda, lembra-se. E novamente se levanta. Puxa a cortina, corre a porta de vidro. Lá fora a cidade pequenina, brilhando no negrume. O Presidente mora no décimo sexto andar.

            Um dia, jovem, pensou suicidar-se. Idéia tola. Queria mergulhar no espaço, morrer antes da mãe. Não suportava mais vê-la sofrer. Aquela enfermeira andando pela casa, Dona Celestina. Era gorda, bem gorda, mas visivelmente bonita. O rosto parecia um biscuit. Pena que era gorda.

A enfermeira só pedia socorro a ele. Ninguém da casa a ajudava nos desmaios, nem quando a mãe não vencia chegar até o banheiro. O pai era um advogado promissor e quase sempre não estava em casa. A irmã vomitava ou chorava. As empregadas diziam que não eram pagas para isso. E o Presidente fechava os manuais da faculdade, ia ver o que queria Dona Celestina.

Mas se matar foi idéia burra. O falso suicida - ele, que foi de Vara Crime, pensava sempre - o falso suicida é como uma quadrilha mal entrosada. Senta-se para discutir a estratégia, mas nunca chega a um consenso. Há um membro mais afoito, que quer falar mais alto e pensa ter grandes idéias. Outro, mais cauteloso, imagina tantos senões que faz o plano parecer inviável. Um terceiro, calado, irrita a ambos, que não sabem se o estão persuadindo ou não. O quarto é aquele que insiste em trazer mulher para as reuniões, fica se agarrando e não colabora em nada.

Nove e quarenta.

Pensava em se atirar da laje da casa, mas morava num imóvel de dois andares, não de dezesseis, e poderia sobreviver. Pensava em comer veneno de rato, a casa cheia daquelas pedrinhas pretas. Mas ouvira dizer que era uma morte dolorosa e, como se sentia pouco resistente à dor, temia fraquejar, gemer, gritar socorro. Cogitou de um tiro no peito, mas o revólver do pai vivia trancado num maleiro, a chave sabe-se lá onde. Cortar os pulsos, pendurar-se na gravata de estagiário – laço encardido de forca. Mas se lembrava de Suzana, e desistia de tudo.

Em que luzinha dessas, lá embaixo, estará Suzana? Certamente continuou no bairro pobre. Pode ser que ainda more no andar térreo, como naquela época. O Presidente imagina a primeira namorada com o mesmo sorriso e juventude de quarenta anos atrás. Vontade de rever Suzana.

Tenta refazer, mais uma vez ainda, o percurso de sua vida. Nunca entendeu bem por que não procurou mais notícias de Suzana. Tendo-se mudado, ainda freqüentou a rua por certo tempo. Lembra-se bem: até o meio da faculdade, namorava Suzana. Sabia que os colegas se referiam a ela como a namoradinha da Cidade Baixa – assim chamavam os bairros antigos da cidade, à beira-mar. Depois, isso é nítido, tinha se interessado por Marta. Houve um período em que conciliou as duas, mas logo a família de Marta passou a convidá-lo para os fins de semana na casa de praia. O irmão dela, que era colega de turma do Presidente e os apresentara, vinha buscá-lo de carro, na porta de casa. Enquanto que para ver Suzana, na casa velha infestada de ratos, tinha agora de tomar dois ônibus.

Marta, o Presidente já o sabia, iria cansar-se dele. De fato, cansou. Um sábado, simplesmente, falou-lhe que estava cansada. Como vivesse cansada, ele até lhe disse que deitasse no seu colo – estavam no gramado da casa de praia. Mas ela explicou que o cansaço era da relação. Queria terminar. Então está certo, ele disse. E perguntou se devia ir embora. Ela lhe disse que, se quisesse, poderia ficar até o domingo, como vinha sendo. Mas que estava claro, bem claro, o final da relação. E disse Vou tomar um banho de mar e foi.

O Presidente ficou ali, sentado no chão, as costas na grande amendoeira onde havia gravado um coração a canivete. Depois decidiu ir ter com o amigo, irmão de Marta. Foi encontrá-lo na churrasqueira, salgando umas carnes. Quando viu aquelas carnes, o Presidente soube que ficaria até domingo.

Dez para as dez.

O irmão de Marta ouviu-o enquanto esfregava as pedras de sal no filé. Subia um cheiro forte de sangue, de coisa viva. Foi logo falando que ele estava ali como seu convidado: não ligasse para aquilo. Aquilo era porque tinham chegado uns primos para o final de semana, e Marta de caso mal resolvido com um deles. Queria, na certa, dar em cima do cara. Pois, então, devia fazer o mesmo – não sabia que Mônica, a amiga de Marta que também estava na casa, tinha tentado namorá-lo, no começo do curso? Ele que andava distraído, enganchado na tal da Cidade Baixa...

E assim passou a Mônica, depois a Rita, depois a Maria Teresa, que veio reencontrar no Tribunal e, mais velha, acabara se aposentando antes dele. Finalmente, voltou a Marta, com quem se bateu na festa de formatura e que dorme ali, passada a porta da varanda, na grande cama de pés torneados, óculos no rosto, livro aberto no peito.

O que nunca fica claro quando rememora tudo isso, é por que, simplesmente, não voltou para ver Suzana, mas foi apenas deixando, inventando desculpas, provas da faculdade. Por telefone mesmo encerrou e, muito mais estranho, ela não ligara em seguida, nem no dia seguinte, nem nunca mais.

Suzana que não liga. Aliás Gildásio.

Dez horas. O Presidente é que não ia ficar esperando por onze e meia-noite. A votação era amanhã. De manhã, sabia, seria difícil falar com Maimone, pois o tipo dava aula até meio-dia. E não ia deixar um assunto desses em aberto para a tarde. Certamente receberia uma ligação do Governador, querendo saber o andamento. O Presidente casou um botão do pijama, que vivia frouxo; voltou da varanda, passo firme, e pegou o telefone na cômoda. Tentou se lembrar do número de Gildásio. Arriou o aparelho de novo na base.

Abriu as gavetas da cômoda, em busca de sua agenda pessoal. Sentiu a vista arder, tentando ler na penumbra. Não conseguia achar... Depois se lembrou que o nome era Antônio Gildásio – letra A. Lá estava.

– E então? – perguntou, quando o outro atendeu ao telefone.

Gildásio se desculpou: Já ia ligar para Vossa Excelência!

– E então? – tornou a perguntar.

Esteve um tempo apertando os olhos, como se ainda sentisse ardência. Do outro lado, o amigo parecia entusiasmado, contando que Maimone sequer pedira nada em troca. Um milagre! – dizia. O Presidente, com o fone no ouvido, começou a mover os lábios no que parecia um prenúncio de riso. E apertava os olhos. No lado oposto, diante de si, estava o volume adormecido de Marta. Queria perguntar a Gildásio se ele tinha dito a Maimone, claramente, que o processo do Governador era o último da pauta – havia tomado essa precaução. Mas um desinteresse por tudo - Governador, pauta, quarto - como que solapava sua vontade. Aquela gastura novamente, agora como bola de fogo. Sempre desejara morrer sem dor, ao contrário da mãe. Mas sempre soube que seria impossível.

Deixou cair o fone e Gildásio ficou falando sozinho, descrevendo a reação surpreendente do outro juiz. O tombo fez barulho; Marta, porém, tinha de fato um sono de pedra e não acordou. O Presidente foi deslizando, cada vez mais lasso, até chegar ao chão. Nas costas, sobre o pijama, o roçar das maçanetas da cômoda pareceu-lhe um arranhão de mulher.

            Gildásio diria ter ouvido aquele nome, Suzana.

  

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