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Rapinário

 

 

UMA ESPIADELA NO COLUNISMO SOCIAL


(Renato Suttana)


(Páginas de um diário íntimo)

I

Sentado agora há pouco na sala de espera da clínica de odontologia, aproveitei para folhear a revista de colunismo social. Sempre faço isso quando tenho oportunidade, até porque jamais me passou pela cabeça comprar um exemplar dessas publicações. Impressionam-me os rostos e as situações, bem como as roupas de corte extravagante que as mulheres vestem — assinadas, as roupas, segundo informa a revista, por costureiros famosos. Mas o que mais chama a atenção é mesmo a linguagem, que parece retirada de um manual de clichês e chavões de expressão. Devem constar ali instruções sobre como chamar sempre a família de alguém de “clã” ou denominar os filhos de “herdeiros” (até porque os pobres nunca herdam nada neste mundo, a não ser quando dão sorte, muito embora a religião lhes prometa coisas maiores no além-vida). Há também a necessidade de dizer frases como “fulano descansa em tal e tal lugar” ou “sicrano fala de seus projetos” — como se a vida fosse realmente um constante planejar e sonhar, ou um teatro onde cada qual interpreta um papel, segundo um roteiro escrito por um metódico autor, com um final previsível e falso.

Havia, por exemplo, a foto do músico famoso, que veio ao Brasil para comemorar os 18 anos do filho — um garoto cabeludo, de aspecto tímido e desinteressante. Havia a foto da mocinha bonita, aparecendo às vezes em trajes de banho ou fazendo poses em algum cenário campestre, verdadeiramente bucólico. Em outra foto o apresentador de tevê distribui um prêmio irrelevante para pessoas que não têm nenhuma importância para as nossas vidas (e provavelmente para as delas também). Nessa imagem, o apresentador aparece sorrindo diante de um grupo de homens que envergam um tipo de traje dourado e ridículo. Entre eles se distingue a figura decadente de um músico popular de época passada (que cheguei a admirar em minha adolescência). Imprescindíveis também são as fotos em que as pessoas famosas (suponho que famosas, já que em sua quase maioria eu não as conheço) são flagradas em situações cotidianas, tais como em passeios por lojas, praias ou nas ruas, quando não estão participando de eventos cuja existência e significado nem sonhamos.

Um letreiro informa que determinados indivíduos se engajaram em não sei que campanha a favor da educação — sendo possível concluir que os motivos do engajamento sejam altruísticos e louváveis (o que não é o meu caso, que só me meto com a educação por motivo de dinheiro.) Acho comovente a ideia de que o jovem ator, sem ainda ter tido tempo de mostrar os seus talentos, mereça ter — só por haver tomado parte no elenco de não sei que produção televisiva já esquecida — as fotos do seu casamento ou de sua casa ou de seus filhos estampadas em página dupla, com direito a informações sobre sua pessoa que parecem tiradas de uma propaganda ou de um currículo promocional. A filha do músico importante, que tentou fazer carreira como cantora, jamais teve qualquer talento que justificasse tamanha atenção, mas, por ser bonita e “herdeira” de quem é, então merece aparecer em quase todos os números da revista (imagino), posando ao lado de outras pessoas igualmente desprovidas de dom ou, quem sabe, de algum rapaz bem apessoado, cuja identidade me parece mais misteriosa que as de Shakespeare ou Homero, mas que está lá porque está lá.

Tal é o imaginário dessas publicações, onde a miséria humana se maquia e se veste com roupas coloridas e brilhosas, quando não sai por aí a fazer plásticas no rosto, as quais sempre deixam os indivíduos com cara de bonecos. Este é, suponho, o único motivo que temos para nos interessarmos legitimamente por tais coisas: ver o quanto envelheceram ou não e o quanto as cirurgias deformaram os seus rostos. Assistir a esses espetáculos ao mesmo tempo engraçados e deprimentes, onde o ser se converte na fantasia de ser, e onde a morte, que aguarda no fundo de tudo, é escamoteada sob vidrilhos e plumas e, finalmente, empurrada para o último plano — aquele no qual as nossas fotos ficam, de fato, muito ruins e mal compostas
—, é o preço a pagar por um momento de distração, enquanto não somos chamados a nos sentar na cadeira (sempre assustadora) do dentista.

II

O presidente do Brasil aparece numa foto ao lado de não sei que figura da política internacional. Há também uma imagem grande, em que a sua esposa, jovem e loura, com um sorriso inexpressivo, posa ao lado de três mulheres de aparência elegante, sendo uma delas, suponho, a esposa do atual prefeito de São Paulo, e a outra é a rainha de não sei que país. A revista — que só fala de coisas boas e positivas — não faz nenhum comentário sobre a situação periclitante do presidente, cujo envolvimento em situações criminosas poderá levá-lo para a cadeia quando ele deixar o cargo* (hipótese em que é difícil acreditar, mas o escândalo está aí para todos verem, e ao olhar as fotos não podemos pensar em outra coisa).

Também não faz nenhuma pergunta (o que seria indecente, por certo, numa revista à qual só interessam as positividades) à esposa do presidente quanto às suas opiniões acerca de tal situação. Faria visitas ao marido na prisão? Ou conta — o casal — com a possibilidade de que, devido à sua idade avançada, ele seja indultado, recebendo pena mais leve,  como a prisão domiciliar (com a indefectível tornozeleira eletrônica), que lhe permitiria passar o resto de seus dias em casa, ao lado do filho pequeno? Provavelmente conta, porque é assim que as situações se desdobram no país, e não temos razão para pensar diferente.

De certo modo — infinitamente sábia —, ao publicar as fotos, é como se a revista torcesse para que nada de mau lhes aconteça (ou porque supõe, como nós, que nada realmente lhes acontecerá), pelo menos, nada que nos faça pensar em coisas tão desagradáveis como a que está subentendida na expressão “dura realidade dos fatos” — que tantas vezes evitamos e que ali, com certeza, não deve ter lugar.


* Isso de fato ocorreu, mas a passagem do presidente pela polícia foi breve e não teve maiores consequências.


8-6-2017


 

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