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Max Ernst, Figura humana

 

UM

 

(Renato Suttana)

 

Aqui não é o lugar – e é por isso que me inquieto. Se me perguntassem por quê, isto é, de onde me vem a certeza de que aqui não é o lugar, eu não saberia responder. Talvez dissesse que certa intuição me avisou, que certo pressentimento me disse, mas nada disso seria conclusivo. Ou não me importa saber a razão por que estou a pensar que aqui não é o lugar e que, desde que tudo é assim, qualquer coisa que eu diga valeria como uma resposta? Aqui não é o lugar; e é por ser assim (seja isso o que for) que estou parado neste ponto, exausto e confuso, tentando começar alguma coisa e no entanto bloqueado (em minhas possibilidades) pela própria intenção de começar. Estou parado no centro dessa impossibilidade, a pensar exatamente que aqui não é o lugar, e isso vale para mim como um ponto de partida. Mas para o quê, exatamente, seria embaraçoso tentar explicar. Estou parado, simplesmente, como se pode estar parado numa esquina, a esperar por alguém que não virá ou que já nos gritou anteriormente aos ouvidos que não há de vir de maneira nenhuma, e isso deve valer como um começo. Aqui não é o lugar, penso comigo mesmo; e logo em seguida penso que, se me perguntassem por que cheguei a essa conclusão, eu não saberia responder. Tentar explicar seria tão complicado como tentar mover-me deste lugar; e desde que este não é o lugar tudo se iguala numa equação de perplexidade. Vazio, estou a pensar que estou a pensar qualquer coisa, e o fato de que eu nada saiba além disso complica em mim o pensamento de que estou a pensar – de modo que o melhor mesmo é recuar, conformar-me com a perplexidade, afundar nela e deixar tudo o mais como está.

 

Tentando mover uma roda de pensamento que ultrapassa os limites de minhas forças, não posso senão me sentir exausto no final. E me sentir exausto é me sentir exausto de saber que estou aqui, parado no ponto de partida, a olhar para o que deve ser o espaço exterior lá de fora – e tão emaranhado em pensamentos conflitantes que mal poderia dizer o que realmente estou a fazer aqui. Mas não importa. Importa só estar aqui, certo de que aqui não é o lugar, e de que, se eu tentasse explicar as razões e os motivos, incorreria em contradições tão embaraçosas que acabariam me tomando por um tolo. Assim, contento-me em apenas estar – e já não direi aqui, pois prefiro concluir que isso não importa e que tudo o mais, desde que isso não importa, permanecerá inalterado. Prefiro concluir que estou parado neste ponto, a olhar para o invisível – a pensar o impensável e tão comprometido com minhas próprias contradições que mal me sobra tempo para pensar em outra coisa (como em não haver contradições). E não há saída para tal impasse. Ou melhor: não há saída para este impasse de estar aqui, a pensar o impensável, nem mesmo há uma alternativa para esta posição insustentável que assumi, estando aqui, e que me desgasta infinitamente e me conduz de encontro a todas as contradições. Aqui não é o lugar – é tudo o que sei, e assim me acalmo um pouco, me satisfaço um pouco e deixo tudo o mais como está. Não estou nem louco, nem cego, nem tenho pretensões a respostas – de modo que posso me satisfazer com este estado de coisas. Ridículo estado de coisas, penso comigo, mas é o de que posso dispor.

 

O mais longe que poderia estar do lugar seria aqui, ressoa em meus pensamentos, como um gongo. Aqui é apenas o lugar onde estou, embora isso não tenha a menor importância, pois o lugar onde estou é o lugar onde deveria estar, se as coisas tivessem qualquer sentido ou qualquer ordem reconhecível. Então, contentemo-nos com este pequeno círculo de misérias: este não saber que ameaça assumir proporções monstruosas, insuportáveis, e este cansaço que parece minar-me por dentro como uma doença. Estou, simplesmente, aqui, como se pode estar à espera numa fila, ou à espera numa esquina, ou à espera num saguão, ou à espera num hospital, ou à espera numa piscina, ou num jardim, ou em qualquer lugar onde se possa estar à espera: dentro de si mesmo, eternamente dentro de si mesmo e dos próprios pensamentos, a confrontar-se eternamente com esses pensamentos como se com a mais alta de todas as muralhas. Isto, sim, conduz à fadiga. Isto, sim, conduz ao limiar da exasperação: estar parado num ponto qualquer, como qualquer um pode estar parado diante de qualquer um – à espera, sempre, do que não há de acontecer, ou de alguma coisa que, quando acontecer, se revelará incômoda e, na melhor das hipóteses, inadequada. Porque é ser inadequado estar parado no mesmo ponto, sempre, em presença de si mesmo e sem saber o que fazer de si mesmo, como um cego diante de tintas e pincéis (ou um fantasma insone a tatear à noite no vazio) e com uma palheta nas mãos.

 

Estou blindado contra a mudança, é o que quero dizer: couraçado contra as transformações, e disso não posso me vangloriar. Sei, apenas, que o estou, como se pode saber que um remédio não é o remédio apropriado, ou que aquilo é um monte de fezes e que com aquilo não há nada que se possa fazer. Estou lacrado como um cofre, fechado dentro de mim como uma múmia num sarcófago, e todas as tentativas que empreendo de me mover ou de olhar para fora retrocedem contra mim num círculo doido e, por que não dizer?, ridículo. Parado, estou fechado à mudança como um rochedo fechado à perscrutação do olhar: como uma mensagem escrita numa língua desconhecida sobre a qual se debruçasse um ignorante de todas as línguas. Sem o menor exagero é que posso dizer (com certa imprecisão) que estou parado aqui há uma eternidade – parado no mesmo ponto de meus pensamentos, como um cachorro acorrentado a um poste; e esse pensamento pesa sobre mim como um fardo. Se existe a possibilidade de mover-me – provavelmente a simples idéia dessa possibilidade já se desmantelou ao se chocar contra a blindagem. Estou parado no começo – na palavra começo tomada como coisa –, mas não sei o que é o começo, e assim estar parado é como não estar em lugar nenhum.

 

Olho com um olho de cego; ouço com um ouvido de surdo. Uma sensação enorme de vazio me invade, me esvazia por dentro, esvazia meu cérebro vazio, me preenche com a sensação do vazio. Meus pensamentos giram desordenados no oco – giram ao redor de um vazio, como se o acalentassem, como se o reverenciassem, como se o resguardassem de perigos, se é que há aí o que quer que seja para resguardar. Meus pensamentos são como asas de pássaros que fossem perdendo gradualmente todas as penas, asas de pássaros que, depenadas, se convertem em apêndices inúteis, ridículos e incômodos. Tento fixá-los em alguma coisa – a idéia, por exemplo, de que são asas depenadas –, e aquilo em que tento fixá-los escarnece deles e de mim. O vazio cresce como uma expectativa invertida. Cresce como uma ausência de expectativa, porque é de fato uma ausência de expectativa estar aqui, parado, exatamente neste lugar, sem ter nada de verdadeiro ou sequer de real para esperar. E ao mesmo tempo incha dentro dele um outro vazio – isto é, cresce um vazio dentro desse vazio, que é o vazio de saber (sem qualquer indício que o fundamente) que aqui não é o lugar, seja lá o que isso queira dizer: que é o vazio de saber uma coisa com a qual não sei o que fazer. Esse vazio que cresce e esse torvelinho de pensamentos me conduzem aos poucos à exaustão – me desgastam por dentro como uma erosão, me solapam nas bases da vontade e me deixam cada vez mais preso a este lugar (seja ele qual for) de onde não posso me afastar. É um vazio como o vazio de um cômodo vazio, mas diferente dele, porque o vazio de um cômodo vazio completa ainda assim o sentido que deve existir em haver um cômodo, mesmo que esteja vazio. Em mim o vazio (que cresce a cada momento) é o vazio de um cômodo vazio, mas sem o cômodo ao seu redor e sem a possibilidade de haver um cômodo para esvaziar. É o nulo em si mesmo, tomado ao pé da letra, como uma coluna de zeros que se somasse a outra coluna de zeros.

 

Aqui não é lugar – mas o fato de que eu esteja aqui me deixa absolutamente perplexo, pois sei que estou no lugar errado (qualquer que seja ele) e sei também que qualquer esforço que eu faça para me afastar não conduz senão a novas perplexidades e impasses. Basta estar aqui, como em qualquer lugar, para que tudo isso se repita como um pesadelo: estar parado neste ponto, como se pode estar parado numa rua, num jardim ou na cobertura de um prédio, como se pode estar parado sobre os trilhos de um trem à espera de que esse trem apareça e nos atropele. É exatamente assim que tudo acontece. É exatamente desse modo que tudo se passa, seja qual for esse modo e seja qual for esse acontecer. Estou parado aqui, como uma galinha atropelada, como um bisão esquartejado à espera de coisa nenhuma a não ser de uma eternidade de espera. Vazio e seco por dentro como um deserto seco, digo a mim mesmo que aqui não é o lugar – nunca poderia ser o lugar – e não tenho a menor esperança de que isso me console. Sou o outro, não aquele que diz isso, e é por isso que não tenho a menor esperança de que isso me console. Ermo, vazio – são palavras que me quadram bem, embora nada me quadre bem, e deveriam ser suficientes para me acalmar, pelo menos por agora. Aqui não é o lugar – seja qual for esse lugar –, e é assim que tudo é, e eu deveria me conformar.

 

Mas nenhuma justificativa se arma ao pé dessa negação: nenhum sentido a socorre, permanecendo tudo como está, parado no mesmo ponto de imobilidade. Mas estar parado no mesmo ponto é – e será sempre – estar parado em algum lugar. Mas estar parado é estar parado eternamente no mesmo lugar, sem esperança de resposta. E isso me estarrece tanto que meus pensamentos se põem a girar, como folhas de árvores arrastadas por um vendaval.

 

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