UM
(Renato
Suttana)
Aqui
não é o lugar – e é por isso que me inquieto. Se me
perguntassem por quê, isto é, de onde me vem a certeza de que aqui
não é o lugar, eu não saberia responder. Talvez dissesse que
certa intuição me avisou, que certo pressentimento me disse, mas
nada disso seria conclusivo. Ou não me importa saber a razão por
que estou a pensar que aqui não é o lugar e que, desde que tudo é
assim, qualquer coisa que eu diga valeria como uma resposta? Aqui não
é o lugar; e é por ser assim (seja isso o que for) que estou
parado neste ponto, exausto e confuso, tentando começar alguma
coisa e no entanto bloqueado (em minhas possibilidades) pela própria
intenção de começar. Estou parado no centro dessa
impossibilidade, a pensar exatamente que aqui não é o lugar, e
isso vale para mim como um ponto de partida. Mas para o quê,
exatamente, seria embaraçoso tentar explicar. Estou parado,
simplesmente, como se pode estar parado numa esquina, a esperar por
alguém que não virá ou que já nos gritou anteriormente aos
ouvidos que não há de vir de maneira nenhuma, e isso deve valer
como um começo. Aqui não é o lugar, penso comigo mesmo; e logo em
seguida penso que, se me perguntassem por que cheguei a essa
conclusão, eu não saberia responder. Tentar explicar seria tão
complicado como tentar mover-me deste lugar; e desde que este não
é o lugar tudo se iguala numa equação de perplexidade. Vazio,
estou a pensar que estou a pensar qualquer coisa, e o fato de que eu
nada saiba além disso complica em mim o pensamento de que estou a
pensar – de modo que o melhor mesmo é recuar, conformar-me com a
perplexidade, afundar nela e deixar tudo o mais como está.
Tentando
mover uma roda de pensamento que ultrapassa os limites de minhas forças,
não posso senão me sentir exausto no final. E me sentir exausto é
me sentir exausto de saber que estou aqui, parado no ponto de
partida, a olhar para o que deve ser o espaço exterior lá de
fora – e tão emaranhado em pensamentos conflitantes que mal
poderia dizer o que realmente estou a fazer aqui. Mas não importa.
Importa só estar aqui, certo de que aqui não é o lugar, e de que,
se eu tentasse explicar as razões e os motivos, incorreria em
contradições tão embaraçosas que acabariam me tomando por um
tolo. Assim, contento-me em apenas estar – e já não direi aqui, pois prefiro concluir que isso não importa e que tudo o mais, desde
que isso não importa, permanecerá inalterado. Prefiro concluir que
estou parado neste ponto, a olhar para o invisível – a pensar o
impensável e tão comprometido com minhas próprias contradições
que mal me sobra tempo para pensar em outra coisa (como em não haver
contradições). E não há saída para tal impasse. Ou melhor: não
há saída para este impasse de estar aqui, a pensar o impensável, nem mesmo há uma alternativa para esta posição
insustentável que assumi, estando aqui, e que me desgasta
infinitamente e me conduz de encontro a todas as contradições.
Aqui não é o lugar – é tudo o que sei, e assim me acalmo um
pouco, me satisfaço um pouco e deixo tudo o mais como está. Não
estou nem louco, nem cego, nem tenho pretensões a respostas – de
modo que posso me satisfazer com este
estado de coisas. Ridículo estado de coisas, penso comigo, mas é o
de que posso dispor.
O
mais longe que poderia estar do lugar seria aqui, ressoa em meus
pensamentos, como um gongo. Aqui é apenas o lugar onde estou,
embora isso não tenha a menor importância, pois o lugar onde estou
é o lugar onde deveria estar, se as coisas tivessem qualquer
sentido ou qualquer ordem reconhecível. Então, contentemo-nos com
este pequeno círculo de misérias: este não saber que ameaça
assumir proporções monstruosas, insuportáveis, e este cansaço
que parece minar-me por dentro como uma doença. Estou,
simplesmente, aqui, como se pode estar à espera numa fila, ou à
espera numa esquina, ou à espera num saguão, ou à espera num
hospital, ou à espera numa piscina, ou num jardim, ou em qualquer
lugar onde se possa estar à espera: dentro de si mesmo, eternamente
dentro de si mesmo e dos próprios pensamentos, a confrontar-se
eternamente com esses pensamentos como se com a mais alta de todas
as muralhas. Isto, sim, conduz à fadiga. Isto, sim, conduz ao
limiar da exasperação: estar parado num ponto qualquer, como
qualquer um pode estar parado diante de qualquer um – à espera,
sempre, do que não há de acontecer, ou de alguma coisa que, quando
acontecer, se revelará incômoda e, na melhor das hipóteses,
inadequada. Porque é ser inadequado estar parado no
mesmo ponto, sempre, em presença de si mesmo e sem saber o que
fazer de si mesmo, como um cego diante de tintas e pincéis (ou um
fantasma insone a tatear à noite no vazio) e com uma palheta nas mãos.
Estou
blindado contra a mudança, é o que quero dizer: couraçado contra
as transformações, e disso não posso me vangloriar. Sei, apenas,
que o estou, como se pode saber que um remédio não é o remédio
apropriado, ou que aquilo é um monte de fezes e que com aquilo não
há nada que se possa fazer. Estou lacrado como um cofre, fechado
dentro de mim como uma múmia num sarcófago, e todas as tentativas
que empreendo de me mover ou de olhar para fora retrocedem contra
mim num círculo doido e, por que não dizer?, ridículo. Parado,
estou fechado à mudança como um rochedo fechado à perscrutação
do olhar: como uma mensagem escrita numa língua desconhecida sobre
a qual se debruçasse um ignorante de todas as línguas. Sem o menor
exagero é que posso dizer (com certa imprecisão) que estou parado
aqui há uma eternidade – parado no mesmo ponto de meus
pensamentos, como um cachorro acorrentado a um poste; e esse
pensamento pesa sobre mim como um fardo. Se existe a possibilidade
de mover-me – provavelmente a simples idéia dessa possibilidade já
se desmantelou ao se chocar contra a blindagem. Estou parado no começo
– na palavra começo tomada como coisa
–, mas não sei o que é o começo,
e assim estar parado é como não estar em lugar nenhum.
Olho
com um olho de cego; ouço com um ouvido de surdo. Uma sensação
enorme de vazio me invade, me esvazia por dentro, esvazia meu cérebro
vazio, me preenche com a sensação do vazio. Meus pensamentos giram
desordenados no oco – giram ao redor de um vazio, como se o
acalentassem, como se o reverenciassem, como se o resguardassem de
perigos, se é que há aí o que quer que seja para resguardar. Meus
pensamentos são como asas de pássaros que fossem perdendo
gradualmente todas as penas, asas de pássaros que, depenadas, se
convertem em apêndices inúteis, ridículos e incômodos. Tento fixá-los
em alguma coisa – a idéia, por exemplo, de que são asas
depenadas –, e aquilo em que tento fixá-los escarnece deles e de
mim. O vazio cresce como uma expectativa invertida. Cresce como uma
ausência de expectativa, porque é de fato uma ausência de
expectativa estar aqui, parado, exatamente neste lugar, sem ter nada
de verdadeiro ou sequer de real para esperar. E ao mesmo tempo incha
dentro dele um outro vazio – isto é, cresce um vazio dentro desse
vazio, que é o vazio de saber (sem qualquer indício que o
fundamente) que aqui não é o lugar, seja lá o que isso queira
dizer: que é o vazio de saber uma coisa com a qual não sei o que
fazer. Esse vazio que cresce e esse torvelinho de pensamentos me
conduzem aos poucos à exaustão – me desgastam por dentro como
uma erosão, me solapam nas bases da vontade e me deixam cada vez
mais preso a este lugar (seja ele qual for) de onde não posso me
afastar. É um vazio como o vazio de um cômodo vazio, mas diferente
dele, porque o vazio de um cômodo vazio completa ainda assim o
sentido que deve existir em haver um cômodo, mesmo que esteja
vazio. Em mim o vazio (que cresce a cada momento) é o vazio de um cômodo
vazio, mas sem o cômodo ao seu redor e sem a possibilidade de haver
um cômodo para esvaziar. É o nulo em si mesmo, tomado ao pé da
letra, como uma coluna de zeros que se somasse a outra coluna de
zeros.
Aqui
não é lugar – mas o fato de que eu esteja aqui me deixa
absolutamente perplexo, pois sei que estou no lugar errado (qualquer
que seja ele) e sei também que qualquer esforço que eu faça para
me afastar não conduz senão a novas perplexidades e impasses.
Basta estar aqui, como em qualquer lugar, para que tudo isso se
repita como um pesadelo: estar parado neste ponto, como se pode
estar parado numa rua, num jardim ou na cobertura de um prédio,
como se pode estar parado sobre os trilhos de um trem à espera de
que esse trem apareça e nos atropele. É exatamente assim que tudo
acontece. É exatamente desse modo que tudo se
passa, seja qual for esse modo e seja qual for esse acontecer. Estou
parado aqui, como uma galinha atropelada, como um bisão
esquartejado à espera de coisa nenhuma a não ser de uma eternidade
de espera. Vazio e seco por dentro como um deserto seco, digo a mim
mesmo que aqui não é o lugar – nunca poderia ser o lugar – e não
tenho a menor esperança de que isso me console. Sou o outro, não aquele que diz isso, e é por isso que não tenho a menor esperança
de que isso me console. Ermo, vazio – são palavras que me quadram
bem, embora nada me quadre bem, e deveriam ser suficientes para me
acalmar, pelo menos por agora. Aqui não é o lugar – seja qual
for esse lugar –, e é assim que tudo é, e eu deveria me
conformar.
Mas
nenhuma justificativa se arma ao pé dessa negação: nenhum sentido
a socorre, permanecendo tudo como está, parado no mesmo ponto de
imobilidade. Mas estar parado no mesmo ponto é – e será sempre
– estar parado em algum lugar. Mas estar parado é estar parado
eternamente no mesmo lugar, sem esperança de resposta. E isso me
estarrece tanto que meus pensamentos se põem a girar, como folhas
de árvores arrastadas por um vendaval.
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