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SICRANO E BELTRANO
MERECIAM MAIS
(Renato Suttana)
Prêmios literários sempre causam constrangimento.
Ficamos aturdidos e o nosso tanto irritados ao sabermos
que Fulano de Tal — logo ele! — foi premiado em algum
lugar, quando havia tantos outros a merecerem aquela
honraria. Pensaremos: “E até mais que Fulano de Tal, se
levarmos em conta a qualidade superior dos livros
deles”, etc. Dispara-se em nossa mente, de imediato, um
mecanismo de comparações, que nos leva a aquilatar o
mérito de todos os candidatos a prêmios que somos
capazes de lembrar, e então os comparamos com Fulano de
Tal — geralmente em desfavor deste, cuja obra, por mais
meritória, não seria digna daquele prêmio ou de prêmio
nenhum. Tendemos a diluir o merecimento do agraciado
numa espécie de caldo genérico de merecimentos gerais,
no qual o seu caso específico nada mais é do que um caso
qualquer. E não será nunca porque Fulano de Tal não
mereceu — seja dito mais de uma vez —, mas porque, no
processo universal das comparações, ele sairá sempre
muito diminuído, quem quer que seja e qualquer que seja
o valor da sua literatura. E então o prêmio nos parecerá
injusto e infinitamente destituído de valor.
O fato é que, embora tenhamos sempre, lá no fundo de
nós, um desejo de honraria e de justo reconhecimento, a
ideia de sabermos que outro foi premiado (valores e
méritos à parte) nos aborrece grandemente. Isso nos leva
a pensar que, não obstante a boa vontade (até
pedagógica) de quem distribui honrarias, os prêmios nada
mais são do que incitadores de inveja. Não há nada pior
— qualquer que seja o momento — do que ouvirmos a
notícia de que Fulano de Tal (quem quer que seja) foi
premiado e que, para agravar o caso, recebeu ainda por
cima uma quantia em dinheiro. É o que amarga mais as
coisas. Noutras vezes, seremos modestos até o ponto de
reconhecermos que nunca receberemos aquele prêmio ou
prêmio nenhum, mas em geral o sentimento é de
desconforto. Uma grande interrogação se formará sobre
nossas cabeças, e nos poremos a perguntar… Bem, talvez
não perguntemos nada. Mas estaremos sempre propensos a
pensar que ocorreu ali uma injustiça e que Sicrano,
Beltrano ou quem quer que seja mereciam ganhar o prêmio
tanto quanto Fulano, se é que não o mereciam mais, dada
a grandeza dos seus méritos (frente aos quais os de
Fulano nada mais são que uma expressão pálida de
grandezas gerais e descoloridas que ninguém deveria
premiar).
Invejas à parte (se é que é possível apartá-las nessas
situações), o fato é que muitas vezes o prêmios são
arbitrariamente distribuídos. São dados às pessoas por
motivo de humor ou de caprichos pessoais, como se dá às
vezes a uma criança um daqueles biscoitos que estão no
armário. Não raro eles são dados com a mais sincera boa
fé, por uma mão realmente generosa, cujo intuito era de
fato reconhecer o mérito. Eles tendem a instruir as
pessoas sobre aquilo que elas fazem, dizendo-lhes que
seus esforços estão bem encaminhados, caso estejam, mas
também as alertarão para o perigo de estarem no caminho
errado. Com frequência — pois é da nossa natureza —
discordaremos do aconselhamento, como no caso da recente
atribuição do Prêmio Nobel de Literatura ao músico Bob
Dylan, a qual não só não contribui para dizer aos
escritores o que eles devem fazer (já que Dylan quase
não publicou livros), como também confunde os
compositores de canções, ensinando a eles que tipo de
coisas eles devem escrever, ao mesmo tempo em que os
adverte de que, se o fizerem, se tornarão imitadores de
Bob Dylan e não merecerão prêmio nenhum. Tal é o lado
paradoxal das premiações: elas nos mostram a direção,
mas também nos alertam de que, se a seguirmos, nunca
seremos premiados.
Assim funcionam os prêmios. Ademais, as pessoas
não querem ouvir esse tipo de instruções, mesmo quando
se declaram admiradoras (às vezes incondicionais) dos
agraciados. Admitir que Fulano de Tal recebeu um prêmio
porque trilhou o bom caminho aborrece a todos; e mais
justo seria que os atribuidores de láureas se metessem
com os seus assuntos ou viessem a público dizer: “Sim,
demos este prêmio porque gostamos da obra de Fulano, e
ninguém tem nada a ver com isso.” Mas em geral não é o
que acontece. Fulano premiado é uma provocação,
sobretudo, uma espécie de ofensa, para a qual é bom que
os atribuidores de láureas estejam atentos. Agride o
saber coletivo (no caso, o nosso, que formamos o resto
da população), por assim dizer; e alguém vir a público
declarar que concedeu um prêmio apenas porque lhe deu na
telha seria novidade e só acirraria os ânimos. Ora, no
fundo, se achamos que os prêmios são sempre mal
atribuídos, é porque também achamos que a atribuição é
da nossa competência, que de algum modo devíamos ter
sido consultados para a realização daquela escolha. Como
isso não acontece, então só podemos alimentar pelos
prêmios o mais profundo rancor.
Desse modo, quando os virmos atribuídos a quem quer que
seja, sentiremos um impulso de torcer o nariz e
discordar, pois quem quer que seja estará no lugar
errado, em ocasião inoportuna. Tal afirmação dispensa
esclarecimentos. E a única verdade é que, quando dão um
prêmio a Fulano de Tal, é porque agiram de má-fé ou com
dolo — de todos os demais preteridos —, ou porque se
enganaram. E temos muitas razões para pensar assim, não
sendo a menos importante a ideia de que a influência de
Sicrano ou de Beltrano sobre os jovens escritores ou
sobre todos os escritores é infinitamente maior do que a
de Fulano de Tal — isto, para não falarmos do volume
imenso de crítica que já se escreveu a seu respeito.
Tudo se junta para formar um conjunto incontestável de
provas, que nos levará a supor ainda que a ideia mesma
de atribuir prêmios deveria ser abolida. Mas não iremos
a esse extremo, porque sabemos o nosso lugar. O mais
importante é, sempre, entender que não gostamos mesmo de
Fulano e que por isso nos sentimos defraudados quando
ouvimos pronunciarem o seu nome ou mencionarem as suas
realizações, e ainda por cima a pretexto de louvor.
Nessas horas, tenderemos a supor que Sicrano e Beltrano
ficaram aborrecidos também — esses de cujas obras a
nossa consciência não nos deixa esquecer.
A pergunta que se imporá sempre será: por que exatamente
Fulano, e por que as suas obras, se há no mundo uma
infinidade de outros autores cuja grandeza ninguém
contesta e que, a nosso ver, mereceriam mil vezes
receber qualquer prêmio em detrimento de todos os outros
e de tudo o mais? (Há uma urgência de corrigir as
injustiças.) Ora, um dia talvez saibamos a resposta. Mas
enquanto ela não chega vamos remoendo a nossa mágoa.
22/24-7-2021
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