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Redondilhas
(Sephi Alter)
No fundo, a ideia é limitar os
golpes
Seja este café
coração da baixa,
rua dos fanqueiros
para ser mais preciso,
sumo de laranja,
sanduíche de queijo,
depois uma bica
e uma água fresca.
Destas poucas coisas
tirar o proveito,
sobrenatural,
de abrir uns abismos
entre fora e dentro,
a vida da língua
e a vida dos outros.
Mastigo e não ouço
o que a cafeína
com seus pontapés
na porta do cérebro
me tenta dizer.
Sumo de laranja,
mas que grande gozo!
Haveria um modo
de nunca acabar
este beber sumo,
de sempre escorrer
como um pensamento
que deixasse vago
o lugar que ocupa
e manter a cor
à frente dos olhos
do fogo visível
que agora bebi?
Dois reaccionários
na mesa do lado
comentam a vida;
muito infelizmente
têm boa voz
não fumam que chegue
para a rouquidão;
a voz colocada
abana as paredes,
desvia-me os olhos
do livro de poemas
que tentava ler.
Agora um terceiro
junta-se à conversa:
«que isto está pior
do que noutros tempos,
já ninguém trabalha,
os computadores
tratam dos assuntos,
há doutores a mais,
empregos a menos
e ninguém se esforça.
É que cada vez
se está mais sozinho,
o stress e as angústias
dão cabo da gente
os filhos lá casam
as pessoas cansam-se
mais cedo da vida
do que antigamente».
De repente cai
um grande silêncio;
sem que eu reparasse
a sala ficou
vazia de todo.
Dentro do livrinho
endeusa-se o poeta
ardem as fogueiras
cheias de entusiasmo
essa coisa grega
que faz da poesia
uma iniciação
para bons guerreiros.
Agora percebo
neste doce embalo,
a bela atitude
que prepara o braço
para cilindrar
em nome do fogo.
Muda-se o café
quando muda a hora;
nos finais da tarde
venho a são Cristóvão
fico nas escadas
a contar turistas
que sobem e descem.
Conto sem pensar
aonde se chega
nem se o fim da soma
diz alguma coisa.
Vêm-me lembranças
das eras passadas
neste mesmo sítio
quando o número três
queria dizer muito.
Tenho algum receio
de voltar a abrir
o livro do poeta
que acende as fogueiras.
Dentro do volume
parece que os corpos
todos se desmancham
são febras cortadas
e postas a assar
sílabas de fogo
é o que lá se diz
em cima da grelha
com alguns pimentos;
não posso evitar
no entanto que a náusea
me venha inquietar
no cheiro da carne
tocada de fogo.
Tenho o pé atrás
feito em trocadilho
para a mitologia
daquela ameaça
de que o poema cumpra
o que prometeu.
Passa outro dia.
No alto da estante
arrumei os versos
de um poeta alto.
Não sei que me deu
para começar
a estudar espanhol
e ler a gramática
duma ponta à outra.
Se digo espanhol
antes deveria
dizer castelhano.
Que isto de espanhóis
seríamos todos
não fosse a expulsão
com que nos brindaram
algures na história.
E como ninguém
protesta até agora,
devo concluir
que a coisa não dói.
Porque a certa altura
fomos postos fora
da ilha dos coelhos;
que isto significa
espanha em semita
ou então fenício
costuma dizer-se
para disfarçar
e diminuir
os riscos de haver
judeus na origem
de nome tão nobre.
Por estas e outras
já não sou espanhol;
com um gesto de língua
mágica disseram:
Espanha somos nós,
el rey de Castilla
es rey de España;
mas então e o mínimo
minúsculo país…
no interesa a nadie,
vosotros salid
e assim fomos postos
geograficamente
na rua do nome,
não houve protestos,
vingança nenhuma,
fora a tradição
que ainda hoje vive
em autos e circos
de rirmos à custa
do sotaque deles.
Enfim, deu-me agora
esta fúria brava
de estudar espanhol
perdão, castelhano;
entrar nos meandros
da terra vermelha,
Cervantes, Quevedo
e até mesmo Góngora,
perceber no corpo
a falta de huesos
que o grande Miguel
disse que sentia
ao ouvir português.
Ossos da avó torta,
não creio que ouvisses
do nosso falar
algo mais que vento
água quando muito
e um pouco de areia.
Não te levo a mal,
confesso estudar
com algum prazer;
pois que certamente
fará mais sentido
estudar gramática
numa língua assim
boa de agarrar.
Na língua sem ossos,
as categorias,
as definições
parece que ficam
de riso amarelo,
como que apanhadas
a meio da mentira
com um ar enfiado
pouco convincente.
Depois há momentos
de doce ilusão.
E o fantasma prova
a pouca alegria
de ter corpo seu,
um corpo espanhol
com touros de morte,
facas argentinas,
heroísmos vãos
mas é o que se arranja
ao contentamento
da língua sem nada.
Descubro poetas
a dar com um pau.
A própria gramática
canta lindamente.
Leio o Octávio Paz
e fico banzado
em frente àqueles versos
que almejam o vago
o ar e a água
coisas que me sobram
coisas que lhe faltam
desejos sem homem
lamentos da própria
língua que nos leva.
Passam as semanas,
entro no café
como uma vogal
entra em seu abrigo,
onda estacionária,
nota definida
com princípio e fim.
Hoje está bom tempo
e as coisas lá fora
vistas desta sombra
têm um ouro manso;
a chave lisboa
para alguns sonetos
paira por ali;
até os automóveis
ganham dignidade
e eu que costumo
não distinguir carros
senão pelo tamanho
agora a esta luz,
vejo estacionada
uma forma azul
que é um renault quatro
com toda a certeza.
Em tudo o que passa
lá fora no ouro
vai uma felicidade
de reis e rainhas;
quase se adormece
na iluminação
da rua e das gentes.
Não fora esta arte
de tirar cafés
que deixa um sabor
amargo na boca,
seria para sempre
o mundo lá fora.
Que lindo, que lindo
sol de pouca dura.
Chovem optimismos,
e as coisas eternas
voluntariosas,
cheias de genica,
enchem-se de orgulho
enquanto não chega
a próxima nuvem
a qual tarde ou cedo
acaba por vir
despertar a sombra.
Olho de relance
para dentro da chávena,
sei que aquelas manchas
escrevem o futuro.
Então imagino
que sei ler aquilo
numa língua ao calhas;
para disfarçar
bebo mais um sumo.
A laranja escorre…
e enquanto me perco
em superstições
lá se apaga o sol.
O escuro aqui dentro
espalha-se na rua
mas fica na mesma
a luz para sempre
a brilhar sem onde.
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