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Giorgio Morandi

 

Redondilhas

 

(Sephi Alter)

 

No fundo, a ideia é limitar os golpes

 

Seja este café

coração da baixa,

rua dos fanqueiros

para ser mais preciso,

sumo de laranja,

sanduíche de queijo,

depois uma bica

e uma água fresca.

Destas poucas coisas

tirar o proveito,

sobrenatural,

de abrir uns abismos

entre fora e dentro,

a vida da língua

e a vida dos outros.

 

Mastigo e não ouço

o que a cafeína

com seus pontapés

na porta do cérebro

me tenta dizer.

Sumo de laranja,

mas que grande gozo!

Haveria um modo

de nunca acabar

este beber sumo,

de sempre escorrer

como um pensamento

que deixasse vago

o lugar que ocupa

e manter a cor

à frente dos olhos

do fogo visível

que agora bebi?

 

Dois reaccionários

na mesa do lado

comentam a vida;

muito infelizmente

têm boa voz

não fumam que chegue

para a rouquidão;

a voz colocada

abana as paredes,

desvia-me os olhos

do livro de poemas

que tentava ler.

Agora um terceiro

junta-se à conversa:

«que   isto está pior

do que noutros tempos,

já ninguém trabalha,

os computadores

tratam dos assuntos,

há doutores a mais,

empregos a menos

e ninguém se esforça.

É que cada vez

se está mais sozinho,

o stress e as angústias

dão cabo da gente

os filhos lá casam

as pessoas cansam-se

mais cedo da vida

do que antigamente».

De repente cai

um grande silêncio;

sem que eu reparasse

a sala ficou

vazia de todo.

 

Dentro do livrinho

endeusa-se o poeta

ardem as fogueiras

cheias de entusiasmo

essa coisa grega

que faz da poesia

uma iniciação

para bons guerreiros.

Agora percebo

neste doce embalo,

a bela atitude

que prepara o braço

para cilindrar

em nome do fogo.

 

Muda-se o café

quando muda a hora;

nos finais da tarde

venho a são Cristóvão

fico nas escadas

a contar turistas

que sobem e descem.

Conto sem pensar

aonde se chega

nem se o fim da soma

diz alguma coisa.

Vêm-me lembranças

das eras passadas

neste mesmo sítio

quando o número três

queria dizer muito.

Tenho algum receio

de voltar a abrir

o livro do poeta

que acende as fogueiras.

Dentro do volume

parece que os corpos

todos se desmancham

são febras cortadas

e postas a assar

sílabas de fogo

é o que lá se diz

em cima da grelha

com alguns pimentos;

não posso evitar

no entanto que a náusea

me venha inquietar

no cheiro da carne

tocada de fogo.

Tenho o pé atrás

feito em trocadilho

para a mitologia

daquela ameaça

de que o poema cumpra

o que prometeu.

 

Passa outro dia.

No alto da estante

arrumei os versos

de um poeta alto.

Não sei que me deu

para começar

a estudar espanhol

e ler a gramática

duma ponta à outra.

Se digo espanhol

antes deveria

dizer castelhano.

Que isto de espanhóis

seríamos todos

não fosse a expulsão

com que nos brindaram

algures na história.

E como ninguém

protesta até agora,

devo concluir

que a coisa não dói.

Porque a certa altura

fomos postos fora

da ilha dos coelhos;

que isto significa

espanha em semita

ou então fenício

costuma dizer-se

para disfarçar

e diminuir

os riscos de haver

judeus na origem

de nome tão nobre.

Por estas e outras

já não sou espanhol;

com um gesto de língua

mágica disseram:

Espanha somos nós,

el rey de Castilla

es  rey de España;

mas então e o mínimo

minúsculo país…

no interesa a nadie,

vosotros salid

e assim fomos postos

geograficamente

na rua do nome,

não houve protestos,

vingança nenhuma,

fora a tradição

que ainda hoje vive

em autos e circos

de rirmos à custa

do sotaque deles.

 

Enfim, deu-me agora

esta fúria brava

de estudar espanhol

perdão, castelhano;

entrar nos meandros

da terra vermelha,

Cervantes, Quevedo

e até mesmo Góngora,

perceber no corpo

a falta de huesos

que o grande Miguel

disse que sentia

ao ouvir português.

Ossos da avó torta,

não creio que ouvisses

do nosso falar

algo mais que vento

água quando muito

e um pouco de areia.

Não te levo a mal,

confesso estudar

com algum prazer;

pois que certamente

fará mais sentido

estudar gramática

numa língua assim

boa de agarrar.

Na língua sem ossos,

as categorias,

as definições

parece que ficam

de riso amarelo,

como que apanhadas

a meio da mentira

com um ar enfiado

pouco convincente.

 

Depois há momentos

de doce ilusão.

E o fantasma prova

a pouca alegria

de ter corpo seu,

um corpo espanhol

com touros de morte,

facas argentinas,

heroísmos vãos

mas é o que se arranja

ao contentamento

da língua sem nada.

Descubro poetas

a dar com um pau.

A própria gramática

canta lindamente.

Leio o Octávio Paz

e fico banzado

em frente àqueles versos

que almejam o vago

o ar e a água

coisas que me sobram

coisas que lhe faltam

desejos sem homem

lamentos da própria

língua que nos leva.

 

Passam as semanas,

entro no café

como uma vogal

entra em seu abrigo,

onda estacionária,

nota definida

com princípio e fim.

Hoje está bom tempo

e as coisas lá fora

vistas desta sombra

têm um ouro manso;

a chave  lisboa

para alguns sonetos

paira por ali;

até os automóveis

ganham dignidade

e eu que costumo

não distinguir carros

senão pelo tamanho

agora a esta luz,

vejo estacionada

uma forma azul

que é um renault quatro

com toda a certeza.

Em tudo o que passa

lá fora no ouro

vai uma felicidade

de reis e rainhas;

quase se adormece

na iluminação

da rua e das gentes.

Não fora esta arte

de tirar cafés

que deixa um sabor

amargo na boca,

seria para sempre

o mundo lá fora.

Que lindo, que lindo

sol de pouca dura.

Chovem optimismos,

e as coisas eternas

voluntariosas,

cheias de genica,

enchem-se de orgulho

enquanto não chega

a próxima nuvem

a qual tarde ou cedo

acaba por vir

despertar a sombra.

Olho de relance

para dentro da chávena,

sei que aquelas manchas

escrevem o futuro.

Então imagino

que sei ler aquilo

numa língua ao calhas;

para disfarçar

bebo mais um sumo.

A laranja escorre…

e enquanto me perco

em superstições

lá se apaga o sol.

O escuro aqui dentro

espalha-se na rua

mas fica na mesma

a luz para sempre

a brilhar sem onde.

 

 

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