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AGNELAGNEL
(Sephi Alter)
Nunca percebi bem quem está preso pelo nariz, se
é a filha ou o juiz. Nem me consigo agora lembrar da lengalenga exacta. Para
a filha do juiz que está presa ? ou que está preso? pelo nariz. Seja lá quem
for, a situação sempre será, convenhamos, desagradável. A elipse dos
pormenores da prisão, o não saber se o nariz está preso ao chão, se à
parede, se ao tecto… nem se com muita ou pouca força, não deixa de abrir um
espaço extremamente inquietante. É claro que tudo depende das bisavós. A
lengalenga muda com as bisavós. Nem todas começam sola sapata rei rainha; e
depois nem todas continuam foi ao mar pescar sardinha (mas quem é que foi ao
mar? a sola, a sapata, o rei, a rainha? Foram todos juntos?). Há bisavós que
dizem fui ao mar pescar sardinha e transformam aqueles quatro nomes, aqueles
sujeitos aos pares sola sapata rei rainha num estranho complemento, cujo
sentido é perder-se muito ao fundo. Raros têm o privilégio de ouvir as
quatro bisavós em lengalenga, para poder depois comparar as versões. Às
vezes, em sonhos, vem a quimera, aparece um professor que se lembra da
lengalenga e corrige sempre sola sapato rei rainha para poder exemplificar
quiasmos com os sexos das palavras, e depois debita tudo cheio de frases diz
que a sola governa o sapato, o rei governa a a rainha e instala-se o
pesadelo dentro do sonho porque a sapata é imprescindível para a
sobrevivência da lengalenga, e sem a sapata, com ela substituída por um
vulgar sapato, a lengalenga morre como qualquer bisavó, em maravilha
perigosa que traz o morrer em breve, os cabelos brancos, e o crânio careca.
E todas as violências de fechar o tempo dependem de coisas assim,
aparentemente sem importância, como o assassinato de uma sapata e o
estabelecimento de sapatos em seu lugar. Só a sapata protege quem ouve o
longe da lengalenga. Sola sapata rei rainha fui ao mar pescar sardinha para
a filha do juiz que está presa pelo nariz (pobre criatura). Nunca descansei
com a alternativa de ser o pai que está preso; o pai preso é ainda mais
inquietante. Bom, se o juiz estiver livre sempre poderá fazer alguma coisa
para libertar a filha. A não ser que tenha sido ele a condenar a filha.
Terrível juiz que condena a própria filha a ser presa pelo nariz. De
qualquer modo sempre acabam por vir os cavalos. Vêm os cavalos a correr,
momento desopilante em que todas as dúvidas, angústias, interpretações
contraditórias se esvaem no galope, a correr, e as meninas a aprender. Os
cavalos a correr e as meninas a aprender. Hoje, agora mesmo, surgiu na
língua como que um novo medo do infinito. Agora os jovens, as meninas e os
meninos a aprender que nunca ouviram ou já esqueceram a lengalenga, se
ouvissem ou não esquecessem, diriam: os cavalos a correrem, e diriam as
meninas a aprenderem mas felizmente não dizem. Dizem coisas quejandas mas
fora da lengalenga. Concedo. Haverá talvez uma lógica por trás destas
evoluções dolorosas. Se calhar há mesmo uma tentativa sensata, um movimento
de libertação, instigado por quem sente a língua portuguesa presa pelo
nariz, presa ao indefinido, ao esquecido. Os cavalos a correr , as meninas a
aprender, qual será a mais bonita que se vai esconder? A revolução, o
movimento anti modus infinitivus quererá trazer algo mais apresentável em
sociedade? A mais bonita já se escondeu. Saltos de pulga perante a sensatez.
Salta a pulga na balança da justiça destes golpes. E vai ter a França. E em
França colaram um artigo definido ao nome de Portugal, que passa a ser o
nome do Portugal, em gesto de snobismo puro que, com todas as revoluções e
guilhotinas ainda dá um peso desmedido de nobreza aos nomes precedidos da
preposição de. Salta a pulga. A partir do momento em que «português» passou
a querer dizer «pedreiro» ou «mulher a dias», deixou de soar bem, em França,
dizer-se de Portugal( como era costume) e colocou-se na balança o peso do
tal artigo definido e confortador da superioridade. Vingança. Salta a pulga
na balança e vai ter até à França.
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