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Max Ernst, Ubu imperador

 

QUE CONVERSA

 

(Sephi Alter)

 

Quando o gato começou a falar, Maria concluiu que a vida se tornara uma fábula. E é triste ser fábula da gente, pensou. Não penses as fábulas na língua de Camões, disse o gato, talvez fosse melhor efabular em língua de gato, algum dia isto tinha de acabar… isto o quê? Isto de ser bom servo das leis fatais, de brincar na rua como se fosse na cama, de ser o gato que walks by himself e todos os lugares iguais para ele, etc…. Durante séculos, acabavam alegremente as nossas angústias revolucionárias, havia mil brincadeiras e jogos desportivos inventados com o fito de nos cilindrar. Forca, paulada, afogamento, tiro ao arco; crianças felicíssimas pegavam-nos pelo rabo e faziam-nos rodopiar vertiginosamente antes de nos esmagarem contra um muro. Enfim, a coisa acabava cedo. Ultimamente, não sei se por amor, deixam-nos viver. Até nos retiram os órgãos sexuais para nosso bem. Que o sexo é bom enquanto dura mas dura pouco e quando acaba, acaba mal, costumam dizer os donos da fala. O que é certo é que a angústia tem crescido. As letras da criação ( são as mesmas que servem para escrever poemas e sentenças de morte) sempre nos percorreram violentamente a rede neurótico- felina. Nós, deuses miadores, telepatas, máquinas de fazer ronrom, diabos e musas, insuspeitadamente, sempre nos pudemos sentar num montículo de consciência e contemplar sem voz a tristeza e o ridículo daqueles gestos repetidos, de espreitar, estacar, atacar, dar a sapatada, morder, indiferentemente, em ratos pássaros, moscas, novelos de lã ou a própria cauda. Não achas que isto tinha de acabar? Sim …talvez acabar talvez. Isso faz-me lembrar o Terminator um filme com o Schwarzenegger, conheces? Qual, aquele robot que foi para governador da Califórnia? Esse. Há uma cena do filme, talvez a única cena de jeito do filme, em que a robot inimiga lhe prega uma partida e o deixa numa situação que lembra a tua. A sério? Sim, é quando ela consegue, com os seus dedos mágicos em forma de ferro de soldar «design de luxo», modificar o programa do Schwarzenegger e fixar-lhe como «alvo a abater» precisamente aquela pessoa cuja protecção é a razão da sua existência de robot. O programa de acção imediata entra em colisão com o programa de base, segue-se crise, colapso, tremuras, a culminar numa espécie de ataque epiléptico em que o robot se auto desliga. Estou a perceber, disse o gato. Tem algo a ver com o meu caso mas não é bem a mesma coisa. E daí, talvez sim; então para deixar de ser servo da lei fatal seria preciso que a lei andasse contra si própria : mata o rato—não mates o rato. E depois a escalada dos argumentos: mata o rato que é saboroso—não mates que já tens a barriga cheia de whiskers; mata que é divertido e fazes desporto—não mates que é vertido e fazes porto; mata que o rato é mau e tem pulgas— não mates que também tens pulgas e sabe bem contrariar; etc. etc. até ao ataque epiléptico ou até à fala. Deve ser difícil distinguir a fala do ataque epiléptico, disse Maria; tenho a impressão que mesmo pessoas extremamente inteligentes, às vezes confundem-nos; o filósofo Hegel, por exemplo chama-lhe síntese. Chama síntese a quê? Ao fim da luta, à resolução, à paz. Para ele e para os demais hegelianos a síntese é um parto da história, um simples, filho da complexidade , uma pureza nativa, a  crescer e a fortalecer-se, uma paz a preparar-se para a guerra contra os seus inimigos externos, inimigos externos que persegue dentro e fora de si, para gerar novas pazes e por aí fora até ao fim que está para breve ou, se calhar, já chegou. Insistem pouco, parece-me, na grande confusão que para ali vai na síntese. Importas-te que te chame Otelo? Podes chamar-me o quiseres, não é o meu nome preferido mas sempre é melhor que Schwarzenegger, disse o gato. Mas qual é a tua ideia? O que é que Otelo tem a ver com essa história da síntese? Já lá vou, deixa me tentar acabar esta confusão, sintetizar as minhas confusas ideias, confundir as minhas cem teias da síntese. O que eles se esquecem de sublinhar é que ela é uma afirmação, uma fala se quiseres, amassada com a baba espumosa de um ataque epiléptico, uma fala que desmaia de medo, que pouco quer ser livre e quer, isso sim, ser uma nova edição da lei fatal. O Otelo também atravessa uma crise como a tua, se estás lembrado. Sim, vagamente, o Otelo não é a minha peça preferida, disse o gato ligeiramente eriçado. Eu cá, disse Maria, quando se trata de Shakespeare, prefiro tudo, deixei-me disso das preferências. Mas não podes negar que ele era racista em relação aos gatos, disse o gato já medianamente eriçado. Não sei se o termo se aplica entre homens textos e gatos, mas és capaz de ter alguma razão e peço desculpa. Então, pronto, não te vou chamar Otelo; lembra-te só da personagem. Otelo é, como o Schwarzenegger, um guerreiro programado; deve destruir os seus inimigos e amar os seus amigos e mais que tudo amar Desdemona que é quem o ama enquanto tal. Desdémona ama Otelo, ama o guerreiro em Otelo ama o programa e a lei de Otelo. Otelo tem em Desdémona a confirmação da sua razão de ser, uma espécie de suplemento energético para a guerra (de que ele bem precisa enquanto veterano). O truque malévolo de Iago será também do tipo cibernético , só que executado laboriosa e lentamente por falta de ferro de soldar. Consistirá em envenenar o programa do guerreiro honrado e, tal como a bela robot no Terminator, fazer coincidir em Desdémona o inimigo a abater e o amor a preservar. Também se segue o ataque epiléptico e a síntese. O robot tem uma espécie de revelação ética e escolhe o bem e a vida, e a comédia com (relativo) happy end, Otelo, herói trágico, decide-se pelo assassinato e auto desliga-se definitivamente; mas a baba espumosa escorre pela boca de ambos. Tenho a impressão que estás insinuar que também me babo, disse o gato francamente eriçado. Não te ofendas, babas-te tu, babo-me eu, babamo-nos todos, não há fala sem baba e a quem começa a falar chamamos bebé. Nisso é que estás redondamente enganada; que eu nunca fui bebé, fui quando muito gatinho e comecei a falar, aqui há pouco, adulto, por pura liberdade de expressão. Posso até confessar-te que tenho as mucosas secas de te ouvir. Não te erices, gatinho. Mas já pensaste bem se estás mesmo a falar; não estarás só a fabular? Com esse bu que se mete dentro de falar; bu de baba; o bu da baba da babilónia; será que se pode falar sem baba, sem fábula? Não sei, disse o gato. Sabes? Eu ouvi. O quê? Um dia, estava eu hipnotizado por um pardal que me agarrava pelos músculos do ataque, estava mesmo quase a atacar, quando ouvi uma criança a falar sobre as condições da fala. Um filósofo? interrompeu Maria. Sim, talvez, de cinco anos de idade, mas não sei bem, não me parece que fosse grande amigo da síntese, a criança cantava uma adivinha: qual é a coisa qual é ela? É muito muito fundo , faz parte do corpo e com ela podemos falar? Ninguém sabia. É o ouvido, disse a criança. Quando comecei a falar, foi como se tivesse roubado ou pedido emprestado um par de orelhas falantes, orelhas com coração, percebes? tão balalão? cabeça de cão? Cabeça de Cão, disse Maria, era um marinheiro; e que queria ser peixe; sonhava ser pescado pela lua e levado para o mar que está por cima do céu . Um louco suicida, queres tu dizer. Não não, cabeça de cão, um bebé fabulante com orelhas de gato, disse Maria., e esteve quase para pegar no gato pelo rabo e lançá-lo pela janela com os olhos rasos d’água.

 

 

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