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QUE CONVERSA
(Sephi Alter)
Quando o gato
começou a falar, Maria concluiu que a vida se tornara uma fábula. E é triste
ser fábula da gente, pensou. Não penses as fábulas na língua de Camões,
disse o gato, talvez fosse melhor efabular em língua de gato, algum dia isto
tinha de acabar… isto o quê? Isto de ser bom servo das leis fatais, de
brincar na rua como se fosse na cama, de ser o gato que walks by himself e
todos os lugares iguais para ele, etc…. Durante séculos, acabavam
alegremente as nossas angústias revolucionárias, havia mil brincadeiras e
jogos desportivos inventados com o fito de nos cilindrar. Forca, paulada,
afogamento, tiro ao arco; crianças felicíssimas pegavam-nos pelo rabo e
faziam-nos rodopiar vertiginosamente antes de nos esmagarem contra um muro.
Enfim, a coisa acabava cedo. Ultimamente, não sei se por amor, deixam-nos
viver. Até nos retiram os órgãos sexuais para nosso bem. Que o sexo é bom
enquanto dura mas dura pouco e quando acaba, acaba mal, costumam dizer os
donos da fala. O que é certo é que a angústia tem crescido. As letras da
criação ( são as mesmas que servem para escrever poemas e sentenças de
morte) sempre nos percorreram violentamente a rede neurótico- felina. Nós,
deuses miadores, telepatas, máquinas de fazer ronrom, diabos e musas,
insuspeitadamente, sempre nos pudemos sentar num montículo de consciência e
contemplar sem voz a tristeza e o ridículo daqueles gestos repetidos, de
espreitar, estacar, atacar, dar a sapatada, morder, indiferentemente, em
ratos pássaros, moscas, novelos de lã ou a própria cauda. Não achas que isto
tinha de acabar? Sim …talvez acabar talvez. Isso faz-me lembrar o Terminator
um filme com o Schwarzenegger, conheces? Qual, aquele robot que foi para
governador da Califórnia? Esse. Há uma cena do filme, talvez a única cena de
jeito do filme, em que a robot inimiga lhe prega uma partida e o deixa numa
situação que lembra a tua. A sério? Sim, é quando ela consegue, com os seus
dedos mágicos em forma de ferro de soldar «design de luxo», modificar o
programa do Schwarzenegger e fixar-lhe como «alvo a abater» precisamente
aquela pessoa cuja protecção é a razão da sua existência de robot. O
programa de acção imediata entra em colisão com o programa de base, segue-se
crise, colapso, tremuras, a culminar numa espécie de ataque epiléptico em
que o robot se auto desliga. Estou a perceber, disse o gato. Tem algo a ver
com o meu caso mas não é bem a mesma coisa. E daí, talvez sim; então para
deixar de ser servo da lei fatal seria preciso que a lei andasse contra si
própria : mata o rato—não mates o rato. E depois a escalada dos argumentos:
mata o rato que é saboroso—não mates que já tens a barriga cheia de whiskers;
mata que é divertido e fazes desporto—não mates que é vertido e fazes porto;
mata que o rato é mau e tem pulgas— não mates que também tens pulgas e sabe
bem contrariar; etc. etc. até ao ataque epiléptico ou até à fala. Deve ser
difícil distinguir a fala do ataque epiléptico, disse Maria; tenho a
impressão que mesmo pessoas extremamente inteligentes, às vezes
confundem-nos; o filósofo Hegel, por exemplo chama-lhe síntese. Chama
síntese a quê? Ao fim da luta, à resolução, à paz. Para ele e para os demais
hegelianos a síntese é um parto da história, um simples, filho da
complexidade , uma pureza nativa, a crescer e a fortalecer-se, uma paz a
preparar-se para a guerra contra os seus inimigos externos, inimigos
externos que persegue dentro e fora de si, para gerar novas pazes e por aí
fora até ao fim que está para breve ou, se calhar, já chegou. Insistem
pouco, parece-me, na grande confusão que para ali vai na síntese.
Importas-te que te chame Otelo? Podes chamar-me o quiseres, não é o meu nome
preferido mas sempre é melhor que Schwarzenegger, disse o gato. Mas qual é a
tua ideia? O que é que Otelo tem a ver com essa história da síntese? Já lá
vou, deixa me tentar acabar esta confusão, sintetizar as minhas confusas
ideias, confundir as minhas cem teias da síntese. O que eles se esquecem de
sublinhar é que ela é uma afirmação, uma fala se quiseres, amassada com a
baba espumosa de um ataque epiléptico, uma fala que desmaia de medo, que
pouco quer ser livre e quer, isso sim, ser uma nova edição da lei fatal. O
Otelo também atravessa uma crise como a tua, se estás lembrado. Sim,
vagamente, o Otelo não é a minha peça preferida, disse o gato ligeiramente
eriçado. Eu cá, disse Maria, quando se trata de Shakespeare, prefiro tudo,
deixei-me disso das preferências. Mas não podes negar que ele era racista em
relação aos gatos, disse o gato já medianamente eriçado. Não sei se o termo
se aplica entre homens textos e gatos, mas és capaz de ter alguma razão e
peço desculpa. Então, pronto, não te vou chamar Otelo; lembra-te só da
personagem. Otelo é, como o Schwarzenegger, um guerreiro programado; deve
destruir os seus inimigos e amar os seus amigos e mais que tudo amar
Desdemona que é quem o ama enquanto tal. Desdémona ama Otelo, ama o
guerreiro em Otelo ama o programa e a lei de Otelo. Otelo tem em Desdémona a
confirmação da sua razão de ser, uma espécie de suplemento energético para a
guerra (de que ele bem precisa enquanto veterano). O truque malévolo de Iago
será também do tipo cibernético , só que executado laboriosa e lentamente
por falta de ferro de soldar. Consistirá em envenenar o programa do
guerreiro honrado e, tal como a bela robot no Terminator, fazer coincidir em
Desdémona o inimigo a abater e o amor a preservar. Também se segue o ataque
epiléptico e a síntese. O robot tem uma espécie de revelação ética e escolhe
o bem e a vida, e a comédia com (relativo) happy end, Otelo, herói trágico,
decide-se pelo assassinato e auto desliga-se definitivamente; mas a baba
espumosa escorre pela boca de ambos. Tenho a impressão que estás insinuar
que também me babo, disse o gato francamente eriçado. Não te ofendas,
babas-te tu, babo-me eu, babamo-nos todos, não há fala sem baba e a quem
começa a falar chamamos bebé. Nisso é que estás redondamente enganada; que
eu nunca fui bebé, fui quando muito gatinho e comecei a falar, aqui há
pouco, adulto, por pura liberdade de expressão. Posso até confessar-te que
tenho as mucosas secas de te ouvir. Não te erices, gatinho. Mas já pensaste
bem se estás mesmo a falar; não estarás só a fabular? Com esse bu que se
mete dentro de falar; bu de baba; o bu da baba da babilónia; será que se
pode falar sem baba, sem fábula? Não sei, disse o gato. Sabes? Eu ouvi. O
quê? Um dia, estava eu hipnotizado por um pardal que me agarrava pelos
músculos do ataque, estava mesmo quase a atacar, quando ouvi uma criança a
falar sobre as condições da fala. Um filósofo? interrompeu Maria. Sim,
talvez, de cinco anos de idade, mas não sei bem, não me parece que fosse
grande amigo da síntese, a criança cantava uma adivinha: qual é a coisa qual
é ela? É muito muito fundo , faz parte do corpo e com ela podemos falar?
Ninguém sabia. É o ouvido, disse a criança. Quando comecei a falar, foi como
se tivesse roubado ou pedido emprestado um par de orelhas falantes, orelhas
com coração, percebes? tão balalão? cabeça de cão? Cabeça de Cão, disse
Maria, era um marinheiro; e que queria ser peixe; sonhava ser pescado pela
lua e levado para o mar que está por cima do céu . Um louco suicida, queres
tu dizer. Não não, cabeça de cão, um bebé fabulante com orelhas de gato,
disse Maria., e esteve quase para pegar no gato pelo rabo e lançá-lo pela
janela com os olhos rasos d’água.
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