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Francis Picabia, A mulher monóculo

 

SONETO SEM MEDIDA

 

(Sephi Alter)

 

 

os dedos, era preciso começar pelos dedos

uma vez que os outros tinham desaparecido

restavam os dedos como assunto, armas e instrumento de música

agora era aproveitar as unhas para escavar os cantos

sem nenhuma certeza quanto à casa nem

se erguida tombada existente imaginada

só dedos eram certos ou talvez um pouco a água e

havia fogo verdade seja dita, e noite, sim, a forma da ausência se armar em presente seria a noite, maneirismo vasto e negro.

e o vento contava uma história em chinês que não se percebia bem por cima do lago, amor nenhum

amizade nenhuma se esperava sob o peso das coisas 

principiar nos dedos (então vamos lá) até às pontas

já que outra saída não haveria

desenterrar uma tecla carregar num botão e mais nada

talvez florisse

 

 

 

 

e o coração do coração

a fazer vezes e usos

era um só mesmo aperto um

mesmo alívio aberto

de coração sem órgão

por trás do véu que

nem sangue vermelho nem sangue comum

mas só encarnado e sujo e puro e porco

e meu e teu e touro e

serpente e gazela e lagarto e

dança da alma das almas

retalhos de cor a bater

do coração no coração do coração

 

 

 

 

quando a suprema dor que não é bem o caso agora

porque nisto de supremacias que apertam muito sempre

perdi as batalhas do sofrimento e não na quero mas se vem

há-de ser o que for e o melhor é confessar desde já a ignorância

se bem que seja dor o que aqui canta não será bastante para fingir

intimidades com a morte por muito poder que prometa o fingimento

outros modos haverá de desafogar a pena como por exemplo lembrar

o arremesso de um avião de papel há tantos anos

que não pára de aterrar nas mãos um segredo de letras para a vida inteira

 

 

 

 

os pontos sobre os nomes que doem

pairam rasgados carregados com os tons das vozes cheias

de regresso na carrinha com toda a equipa cheias de

escolher uma vítima igual ao meu nome despida por todos e colada

contra o vidro em exibição das partes vergonhosas como o meu nome

chamado pela voz mais doce e sem pudor como uma amostra

os pontos no lábio rasgado no braço na testa que não se sente já

nenhuma destas dores nem o pulso quebrado nem a clavícula

cometimentos dextros assinalados em vento e cicatrizes

 

 

 

 

deixa-me pensar no jarro a esvair-se em vinho

pelo fundo rachado deixa-me sair ainda ao encontro

daquela formosura do jarro inútil e continuar a dizer

impropriamente bem do que já só vento vaidade ou

quando muito um hesitar antes de abrir

 

 

 

 

isto são maneiras de rodar sem rumo esperas sem esperança

vislumbres da revolução que tarda para sempre e o rol das vinganças

das cabeças cortadas que não se dão nestes ares nem nesta língua

machados aquáticos lâminas de água estranho país a desfazer-se

num dilúvio de mar sem fim por dentro num interior sem fim realidade

mais louca que a imaginação do louco isto aqui é nada à vista dos outros definidos

além do mar é nada desejo de terra sensível escura vermelho praia escura

onde o pensamento desse à costa e sentisse dores verdadeiras

no seu corpo esfarrapado dores ou algo mais firme do que estas saudades

 

 

 

 

se mudares o teu nome mudas o teu destino

disse e se o meu destino fosse mudar de nome

se até agora era mudar de nome a partir de agora será

outro quando mudas de nome o destino velho se era mudar de nome

cumpriu-se morreu

 

 

 

 

circuncida-me o pé

circuncida-me a canela

circuncida-me o pulso

circuncida-me o braço

circuncida-me o ombro

circuncida-me a boca

circuncida-me a testa

 

 

 

 

sem resposta parecia o mundo lá fora

uma voz sumidíssima aguda a desfazer-se

prometia agora um braço contra o lodo e logo se

apagava fantasma cinzento a juntar aos demais

cuidados da lembrança

 

 

 

 

a árvore de repente disfarçava-se de assunto

numa carga sem sentido mas que mesmo assim

queria ser ouvida quase gritava um verde que logo desaparecia

sem deixar rasto além de cinzas de falta de verde

e era o verão a vitória do sol e aquele verso do só

que diz as mortes nas vidraças verso que fica para eu nunca perceber

chegava agora com o disfarce da árvore

e vinha a propósito vinha mesmo a calhar nesta

falta de entendimento quente a pedir chuva

 

 

 

 

a memória apaga o sol daqueles dias antigos

escreve nuvens acinzenta o azul que de certeza havia

no carro junto ao rio até ao mar soavam

dizeres sábios de marinheiros que eu ouvia para logo esquecer

no cinzento gravado por cima de qualquer lindeza

ficou só a palavra estai uma espécie de vela estai e

toda arte se resumiu nesta ignorância

 

 

 

 

de repente a loucura começa querer dizer

a querer contar os pontos da cicatriz as

vinte e duas letras assinam o teu braço

estás secretamente escrito pela porta de vidro

tudo se conjugou para que os tendões fossem poupados

não temas os dedos ainda mexem

e o braço e a gordura assinalados esperam

a tua história para adormecer

 

 

 

 

agora ao que parece o corpo deveria ganhar peso

des dissolver-se precipitar-se fora do primeiro lago

aprenderia então os outros modos

alcançaria o limite da água

despertaria todos os adjectivos possessivos

bem cedo de manhã partiríamos juntos

reconheceria os que não me tocam

chamaria mãe ao resto

 

 

 

 

o náufrago pergunta pelo nome afogado

nada ao largo de luanda tenta alcançar a baía de cascais

de encontro à muralha as ondas quebram suaves

um hospital do outro lado talvez alívio para joelhos feridos

nada de médicos homens de bata branca mas cantores

olham debitam em coro uma maldição

aproximam-se do alpendre de microfone em riste

misturam a voz ao burburinho contente do maior número

 

 

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