A
CARNE DOS MEUS VERSOS
ou
Patrice de Moraes – poeta
(Silvério
Duque*)
From
Wrong to Wrong the exasperated spint
proceeds
unless restored by that refining fire...
T.S.
Eliot
Não há maior perigo para um pregador do que se ver traído em sua
própria pudicícia. Em outras palavras, submeter-se àquela tentação
que tanto abomina e, contra ela, tantas palavras de ordem vocifera.
São Silvério, meu chará, entre o Cruel Belzário e o não menos
ardiloso Vigílio, escolheu o martírio pela fome a aceitar a tentação.
Longe de mim menosprezar o sacrifício do padroeiro de Ponza, mas
hoje, é de tentação que pareço querer me alimentar.
Por que digo isso?
Por obrigar-me, mesmo que tardio e brevemente, a falar de um amigo e
de seu trabalho. Obrigação que me é grata, prazerosa e segura; e
que não me traz a desagradabilíssima sensação de estar prestando
um favor, sem levar em conta as devidas qualidades do amigo. Foram
as qualidades deste amigo – entre tantas, a literária – que,
pelo contrário, o tornaram como tal.
E qual o problema?
Ser acusado de cair na mesma banalidade, autopiedade e bajulação
em que se diluem a quase totalidade de nossa atual produção literária,
principalmente por aqueles que, vendo-me falar das virtudes literárias
de alguém que me é de um ciclo pessoal de amizades, fechem os
olhos para as qualidades deste, como fecham para a inexistência de
qualidades neles, e alardeiem por aí que o inquisidor se deixou
cair em tentação e agora se apossa daquilo que melhor os
identifica: seus pecados.
Como quem enxerga um ácaro sobre o cisco nos olhos do irmão, mas não
enxergam, nem ouvem, um asno a rinchar frente as suas faces, baterão
nos peitos impregnados de arrogância burra, e dirão: crucifica-o!
Eu, no entanto, lhes direi: se disse algo de mal, dêem testemunho
do mal, mas se lhes disse bem, porque me batem? Vão, e clamam cada
um por seu Barrabás.
***
Falar de Patrice de Moraes é falar de um homem de extraordinário
talento, cuja produção poética, segundo o dizer de Jessé de
Almeida Primo, tranqüiliza a toda crítica “por não deixa-la em
dúvida quanto à sua qualidade [Sic]”, não restando
objeções ao seu domínio de um ofício de eleitos: a poesia.
Poesia sem medos: sem medo de mostrar suas influências, de apontar
para as fontes de onde se embebera, seja uma poetisa grega, morta a
mais de vinte e seis séculos ou um mineiro introspectivo, cuja
derradeira herança foi um livro de versos eróticos; seja um poeta
português que foi tantos ou um paraibano que não foi menos que único.
Poesia sem medo de mostrar sem disfarces e subterfúgios ou de
encontrar aquela liberdade presente nas formas fixas que só um
grande poeta sabe dar e reconhecer. Sem medo de não se mostrar
pessoal e sincera, sem perder a boa e velha veia fingidora. Sem medo
de ser poesia pura e depurada. Poesia como poesia deve ser. E para
ser possível obter algo assim faz-se necessário munir-se de três
grandes e indispensáveis requisitos: o talento a disciplina e o
amor ao que faz que a tudo obriga.
Quando me refiro a poesia de Patrice de Moraes, refiro-me a uma
poesia que sempre se quer cinética, que pretende romper os limites
da impressão simplória e alçar à consubstanciação da mais pura
e didática alegoria, ou seja, uma poesia que substitui o abstrato
pelo aparentemente concreto, ou, como melhor definiu Coleridge,
citado por César Leal
em seu Os
cavaleiros de Júpiter, uma “transposição de noções
abstratas para uma linguagem de cores”. Assim, cada poema de
Patrice faz-se de imagens intencificadoras, dentro de um
sistema que permite muito bem a isso; uma imagem representando um
conceito ao qual se pretende, ou, simplesmente, comunicar, por meio
de imagens puras e gradativas, o despertar dos sentidos, onde certas
questões, como a do erotismo, são bem menos um assunto do que uma
maneira de metaforizar, como nos dirá Jessé de Almeida Primo:
“nesse sentido, sua poesia é tão erótica quanto toda poesia de
qualidade deve ser, pouco importando seu assunto”. Mas é,
evidentemente, o próprio poeta quem nos dá o melhor exemplo:
... Sentindo o mastro lhe
beijar a vinha
e vagarosamente introduzir-se,
regia com a batuta da espinha
– num compasso de ardor a reproduzir-se –
os flexos movimentos circulares
da anca, finalmente a inserir-se
na orquestração direta desses ares
venosos, ambiciosos, compulsivos...,
que com os seus audazes serpentares
deliberadamente progressivos
alimentava a fome de ida e vinda
do amante – cada vez mais em agressivos
e impiedosos penetrares... Ainda
que um deles ameaçasse desistência,
a carne lhe diria: “Isso só finda
quando eu sentir a glória, a quintessência
do gozo pretendido desde o início!
(...)
(Patrice de Moraes, Predileção in Eurótico, Ed.
Eros, 2005, p. 56-57)
Sem se importar em florear de prosaísmo a sua poesia no mesmo tempo
que se mostra profundamente preocupado com o apuro formal e a cadência
rítmica de seu poema, Patrice de Moraes não almeja a nada mais o
que ser poeta, não representando nada mais do que uma etapa
superior da poesia de um homem que domina inteiramente os mecanismos
de expressão. Não restam dúvidas de que Patrice de Moraes pode
planejar o poema e fazê-lo da maneira que ele bem entenda, mas
sempre como um artista, como um criador, nunca como um artífice, um
mero construtor, um simples “imendador” de artifícios. O mundo
refletido em sua poesia é sempre um mundo real, um mundo que parece
“saltar para a vida” ao invés de se afogar em ideais vazios, de
uma simbologia que parece querer mais fugir as coisas do que a elas
servir.
Esta penetração (palavra complicada para quem se arrisca a
analisar um poeta do erotismo) que Patrice faz na realidade, é algo
que é feito por todo grande escritor e o bardo conjacuipense não
me parece uma exceção a isto; porém, é preciso lembrar que a
grande obra poética é resultado das somas entre as generalidades
abstratas do pensamento e a realidade concreta do mundo; se Patrice
ficasse apenas numa destas coisas, sua obra estaria longe de ser
considerada uma forma de arte; como consegue unir estas duas
variantes em um mesmo processo e num resultado consistente, é
poeta. Toda arte possui um mundo seu que não vem nem do mero
mergulho na realidade circundante, nem se fazendo caricatura desta
mesma realidade, mas de um mundo onde estas coisas se fundem e se
anulam, à criação de algo com unidade entre o absoluto e o
relativo. Estas coisa são tão óbvias, e tão fáceis de ver, que
me angustia saber que muitos de nosso “poetas” contemporâneos
passem, em sua teoria e prática, ao largo destes preceitos e que,
para piorar, ainda encontrem bons poetas que atestem estas coisas tão
inexistente neles, validando algo que, se muito for alguma coisa, é
pura grosseria versada; e mal versada. Fico a me perguntar se,
quando um bom poeta faz algo assim, se ele o faz por ultrapiedade ou
por automasoquismo? Mas como nem tudo são flores, muito menos um
roseiral, vamos
em frente.
Jessé
de Almeida Primo, na apresentação do livro Eurótico, de
Patrice de Moraes, objetiva-se em dizer que os poemas de Patrice não
são simples veículos de expressão sentimental ou de devaneios,
cuja beleza é muito mais um acidente do que o resultado de uma
elaboração, sendo esse um dos motivos pelos quais a maioria dos líricos
têm vida curta, muito pelo contrário, são veículos de pensamento
e meios pelos quais muitas coisas são ditas. Certamente, Patrice de
Moraes não busca uma “palavra poética” vã, meramente
ornamental, pois não há beleza que perdure no vazio, mas mostra-se
determinado a alcançar aqueles que servem a um propósito, o mesmo
que ficará depois de lido o poema, fechado o livro, recostada a
cabeça. Por isso mesmo Patrice não parece temer o discurso, porque
não pode cair num reino de abstrações puras, por isso sua poesia
trás, mesmo carregada de lirismo, a força de um pensamento
concreto e, assim, sua poesia se enche de um profundo “tom
professoral” que, ainda segundo o Jessé Primo, traz, a obra de
Patrice, uma idéia de “corporalidade”, como se verá no uso que
o poeta de Conceição do Jacuípe faz da forma.
A forma nada mais é do que a elaboração interior de uma poesia,
ela é o resultado final da idéia que um poema carrega, por isso,
do contrário ao que muitos pensam, a forma não trabalha em causa
próprio, mas é a idéia contida no poema que se adequará à rima,
a métrica e ao ritmo. A freqüência com que a forma fixa,
principalmente o soneto, a parece na obra de Patrice de Moraes, só
vem a mostrar o quanto que o poeta procura seu entendimento e depuração,
porque nenhuma espécie de poema em que se dividem os gêneros líricos
exigem um auto nível de concretude e de pensamento reflexivo como
exige o soneto, porque não há maior propriedade em um soneto que
teor reflexivo, por maior que seja o lirismo que e ele carregue.
Escrever um bom soneto não é fácil. Especialmente um soneto que
se queira moderno, pois nenhum movimento, por incrível que possa
parecer, habilitou e reabilitou o soneto como o Modernismo e, de lá,
por diante. A natureza “moderna”, e, acima de tudo, a natureza
poética, dos sonetos, como dos demais poemas de Patrice de Moraes,
encontram-se implícitas nas questões existências que ele suscita,
metaforizadas, na grande maioria das vezes, em seu erotismo:
Apresento-me para esta mulher
com meu e minha alma desnudados
para mostra-lhes os famélicos pecados
que esta carne insaciável tanto quer
Revelo minhas tendências animais
de lamber, de cheirar, de introduzir
os recursos que podem permitir
chover na zonas equatoriais
Convicta do que eu quero e do que eu faço,
convida-me a traçarmos um compasso
nas linhas da maior libertinagem...
Apaga do papel toda razão
fazendo-me chegar a conclusão
de usamos idêntica linguagem.
(Op. Cit. p. 19)
Como qualquer um perceberá, pelo menos os dotados da mais básica
inteligência, que a obra de Patrice é dotada de uma grande
qualidade, que vai da escolha dos temas a intimidade com a “mecânica
dos versos”. A impressão que se tem ao ler seus poemas e de se
está diante de uma tela repleta de cores e formas que vai ganhando
movimento à proporção que se é olhada, ou melhor, lida. Sua
poesia tem domínio lingüístico, onde conceitos se perdem e se
acham, influências se revelam ou se disfarçam, formas podem ser
usadas ou reinventadas, mas nunca se afasta daquilo que a torna
verdadeiramente poesia. Sem dúvida, a sua lógica poética, como a
lógica poética tout court é reinventar a realidade de onde tudo
se origina, porque a vida é pouca; por isso precisamos de poetas, e
de bons poetas, como Patrice de Moraes.
***
Quanto aos “escribas e fariseus, hipócritas!”, nada melhor para
eles do que aproveitarem a apropriada ocasião da Semana Santa e ler
o que a Bíblia diz, no versículo 14, do 23º capítulo do
Evangelho segundo S. Matheus, a respeito deles.
Candeias/Feira de Santana, 28/31 de março de 2010.
*
Silvério
Duque é poeta,
professor, licenciado
em Letras Vernáculas
pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), músico
profissional, já coordenou e Escola de Música da Sociedade Filarmônica
Euterpe Feirense e crítico literário, escrevendo para vários
jornais e periódicos. É autor de O crânio dos peixes (Ed.
MAC/2002), Baladas e outros aportes de viagem (Ed. Pirapuma, 2006);
o seu próximo livro, Ciranda de sombras,
está no prelo.
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