HABITAÇÃO DO TEMPO
(Ruy
Ventura)
fortaleza
que
fortaleza guarda a altura desta torre?
por
entre as grades, ao longe,
o teu
olhar vislumbra outro coração.
sem
cor, sem sombra, sem sopro
de
vento desalinhando os cabelos.
entre
casas e árvores
desenharam rostos e palavras,
com
ouro,
mas sem
oiro –
silvando por dentro, na distância
entre o
entulho e a memória.
uma
fenda recorda-nos ruínas –
há
tanto tempo sem água.
e no
largo vão
por
onde mal passa essa imagem
a chuva
aquece a luz
desses
olhos que não podemos ver –
acolhendo sob o arco a lonjura
e a
respiração da carne.
Trujillo –
torre-mirante das Jerónimas (sécs. XIV-XV)
sopro
que
vento atravessa a fortaleza?
perto
(muito perto) a gruta, sem vento,
acolhe
poeira sobre poeira, vestígios
de ouro
e de sangue, por entre o lixo
e os
musgos enegrecidos.
sobre o
peito, esta imagem.
sobre
os tecidos (do peito)
a
legenda deste canto
inclinado sobre o mar.
virada
à corrente, a imagem dissolve
a
maresia, veios e traços que a pedra
dispensa neste mundo –
mãe de
um corpo ausente
que
hoje repousa
sob as
raízes desta serra.
guardo
o fogo e o vento.
fecho o
diafragma deste corpo,
a força
e a aragem
e tento
elevar sobre o bosque
este
saco com cores e palavras.
recolho
a sombra e o caminho.
chegarão à outra vertente – sem vento?
que
sopro atravessa a fortaleza?
leio e
releio. seguro entre as mãos
o corpo
e a esperança, a longa oliveira
deitando sobre a fonte.
o sol
ilumina o vidro baço.
não
espera (nem deseja) regressar.
Portinho da Arrábida –
forte de Santa Maria (séc. XVII)
memória
mal
oiço o som do alaúde em tua casa.
não
consigo ver a pomba
voando
sobre a cinza,
no
sepulcro da ruína e desta alma.
exumei
com os olhos
o
mosaico que rodeava, talvez, esse coração –
mergulhado na água e na melodia.
séculos
depois, encontro esse rosto
tão
cedo escondido.
desenhado no mármore.
como
numa fotografia.
esse
sorriso escavando a penumbra da nave –
a
iluminação das lágrimas
no
interior do vidro.
Mérida
–
estela funerária de Lutatia Lupata (séc. II d. C.)
nudez
nem
ouro, nem prata.
árvore
verde.
nu,
esse teu corpo breve,
livre
de sombras –
como no
dia do baptismo.
ainda
sem nome.
sem voz
ainda –
e uma
voz presente.
sem
tempo,
propondo outro tempo
sem
presente.
teu
filho,
maior
do que um rosto
quase
escondido.
teu
colo,
acolhendo o mundo inteiro –
o peso,
a leveza,
a
obscuridade, o brilho
da
montanha.
não
encontro negrume
nessa
face.
somente
a negra luz
do sal
da terra,
no
forno que aquece o coração.
fria,
apenas a manhã
em que
partimos –
o cume
da manhã
sobre a
nascente.
nem
ouro. nem prata.
a cor e
o calor da madeira.
os
pigmentos dessa alma
hoje
encobertos –
abertos
neste livro
e neste
lume.
Guadalupe –
Virgem com o Menino,
escultura românica em madeira (séc. XII)
alimentação
que
água alimenta hoje essa cisterna –
entre
ervas, ossos, fumo e maresia – ?
talvez
a do baptismo. talvez a que um dia,
sobre
os telhados, hoje desaparecidos,
alimentava o sono e a escuridão.
sem sal
(talvez sem sal), secaram
sobre
as mãos a cal e a sombra.
sangue
e suor desceram a colina.
com
sede. com fome. sem voz
sem
vento.
a terra
desce ao interior nos dias mais frios.
engole
os olhos, o verniz, o mármore,
a
madeira – cabelos e saliva
sem
fonte onde beber.
ninguém
dará pelo segredo
escavado nessa rocha –
grãos
de trigo.
rebentariam num telhado, morto, da cidade.
que
nome guardariam nesses silos
que
hoje apenas resguardam a memória?
longe
(perto, mas demasiado longe) –
a mão e
o útero abençoam todo o campo.
estenderam sobre o bosque e sobre o vale
a água
e a habitação do tempo.
Sesimbra –
castelo (sécs. XIII e XIV)
segredo
que
torre espreita nesse lume que não vejo?
sem
regra, o alicerce silencia o veneno –
horas e
horas sem fogo. séculos e séculos
sem
força para descobrir a morte
no
campo que hoje não vigia.
torre –
ou apenas a legenda do tempo?
verbo
segurando o devir e a sombra – desta terra?
jamais
subirei essa escada. escavaram o alicerce.
encheram-no de flores, de folhas mortas,
de
entulho – vozes e raios de sol sobre o lado esquerdo
e um
mastro com (h)eras e flamas
silvando a alegria.
torre e
castelo que não vejo. facho que oiço
sem
palavras, a crepitar sobre o bosque,
iluminando vestígios que não encontro.
a fonte
alumia. a efígie obscurece –
mesmo
escondida sob os ramos.
sobre a
rocha, a memória permanece.
assim.
em segredo. como a cal –
segurando essa palavra.
Carreiras –
sítio do Castelo
encarnação
em que
palavras leste a semente desse brilho?
no
verbo que ele guardou no teu silêncio?
no
coração, ardendo na memória?
ergues
os olhos, saciando
o
cálice em que deixámos a nossa sede.
sobre o
ouro, sobre essa madeira,
brilha
uma mão que a luz soprou no mar,
iluminando a seiva dessa árvore.
(não
guardo mais que o brilho -
na
memória.)
outra
árvore encarnou no tronco antigo
- nesse
lugar, sem nome, tão presente.
que
água nova bebeste na palavra,
no
sopro e no segredo da manhã?
mesmo
sem sede, bebeste a chama viva
que
incendeia esta imagem.
mesmo
sem fome, guardaste no teu seio
a luz e
o sangue,
o vinho
- e o coração.
Bordeira –
Virgem da Anunciação,
escultura em madeira policromada (sécs. XVI-XVII)
iluminação
que mão
avança
no
negrume dessa tinta
quando
a carne brilha,
mesmo
oculta nessa sombra?
a tinta
não interrompe
a luz
intensa
que do
olhar
dirige
esta viagem.
nem
mar, nem vento
- nem
essa brancura
que
recorta os alicerces
e as
paredes -
conseguem melhor voo
nesta
tarde.
apenas
essa mão,
velha -
e perfeita -,
segurando-nos
no ouro
e na madeira,
esses
olhos vigiando
a
fortaleza
(pedra
e sangue,
carne e
tempestade) -
e o
segredo de um nome
(o
nosso nome)
escorando
nosso
fogo
e nossa
sede.
Carrapateira –
Virgem com Menino,
escultura em madeira policromada (séc.XV/XVI)
veneração
a porta
esconde-se.
(um
rosto entre as acácias. um rosto
dentro
da face que a madeira
e a mão
registam e apresentam.)
o sopro
procura o silêncio
para
fazer crescer a voz –
a
carpintaria talhando, golpe a golpe,
esse
rosto, essa porta,
na
linha que se faz
com
fragmentos de tecido,
de
palavras, olhando pela janela
o campo
– imenso.
a
abóbada desceu
até
junto do homem.
(deambula pela casa.)
foi
preciso dividir a nave
entre a
voz e o firmamento.
este
corpo – a flor junto da imagem.
o rosto
acompanha-nos.
a porta
abre um universo inteiro.
permanece a veneração,
a nave
vivendo o pão e o segredo.
dentro,
a voz, o sopro,
edificam a palavra
neste
lugar onde tudo se encontra:
um
ramo, uma lâmpada,
o
rosto, no jardim –
mais
vasto do que o mar.
Portalegre –
igreja “velha” de S. Brás
(hoje Casa-Museu José Régio)
calor
surgiu,
primeiro, como um título breve,
acompanhando a superfície da montanha –
a cor
da terra, dentro do sangue,
o suor
do nascimento.
ficou,
depois, entre faixas e melodias,
sobre o
lençol (de água?)
onde
permanecia esse rosto
– o
grito que revelou o mundo.
longe,
o forno. a palavra
acalentava o corpo, sobre as ervas,
debaixo
de um castanheiro.
desenhou então nalguns grãos de trigo
a luz
que restava sobre o telhado.
a mão
afaga o cabelo.
a face
procura a face.
a mão
procura o barro. recria,
transcreve para sul este poema.
a
expressão ilumina as videiras.
o
pastor ilumina a face.
rejubila até atingir a altura.
a pedra
permanece
como
legenda do tempo. transcreve
um
movimento de mãos
em
direcção à serra.
a mãe
acolhe o filho no seu manto.
olha
esta criança como se quisesse
reavê-la no seu seio.
um
corpo nasce nas mãos do oleiro.
um
corpo desce. procura
a raiz,
a porta, a lareira.
acenderá o mundo com o seu sopro.
com a
sua voz.
Covas
de Belém (Portalegre) –
“Nossa Senhora de Belém”,
escultura em barro (séc. XVIII)
nascimento
sopra-nos do barro. ilumina
o
cabelo, a voz da montanha.
(sobre
a mesa, a cinza deste corpo.)
a
cidade cresce. sem casas.
a
respiração queima – lentamente –
os
olhos, as unhas, a mão.
o
sangue.
a chama
permanece. tão pequena.
o calor
repousa sobre o musgo.
uma
lágrima irrompe pela manhã.
a
gilbardeira coloca, sobre o peito,
um
pouco de alegria.
nos
olhos e no cabelo
(nesta
mão)
as
imagens reverdecem.
o fogo
tece-nos, mesmo à distância.
o vento
apaga (acende?)
essa
chama nascida no interior
da
montanha.
a
criança sopra –
o barro
que somos. a palavra
aquece-nos. a flama
aquece
o coração. e o mundo.
(sobre
a mesa, a cinza desse corpo.)
o corpo
navega. flutua.
desenha
na terra essa criança
nascida
sobre as águas.
Carreiras –
presépio em barro, arte popular (séc. XX)
legenda
que
mão, ou que pedra,
apagaram dessa face
a
legenda do tempo
e do
lugar?
apenas
de perfil
o rosto
se vislumbra,
ausente
–
hoje e
nessa hora
em que
pagaste à terra
a
última (?) viagem.
que
arado lavrou
a
cidade nesse dia?
que
junta soube unir
às
margens desse rio
a
direcção do sol
e o
curso desse vento?
dissolvida na memória, a imagem
deixa
apenas adivinhar suas raízes:
alguns
traços sem sombra,
uma
palavra
que o
corpo vai roendo
sem
pronúncia,
sem
geografia.
Carreiras –
moeda romana cunhada em Mérida (séc.
I d. C.)
regresso
(para António Cândido Franco)
depositaste na pedra
o teu
olhar sem sombra
para
melhor suportares
o peso
desses ombros,
recuperando a cinza
que
ficou sobre o oceano.
(assaltam-te vozes
e
corpos sem saudade.
tento
afastá-los
projectando sombras
nestes
muros sem tinta.)
não
carregas o mundo.
não
sobes ao alto da montanha.
não
defendes o tecto desta casa –
que
hoje te pertence
na
areia do deserto.
regressarias –
não
tivesses sobre os ossos
o
chumbo do nascimento,
essa
armadura que te sepulta
entre
fome e fogo,
entre
fogo e fortaleza.
Lagos
–
“Dom
Sebastião”,
escultura em pedra de João Cutileiro (1970)
representação
a
transparência da pedra
esconde
do homem
o tempo
e as palavras.
em
redor da face
uma
narrativa absolve-nos
do
esquecimento
difundindo – entre a mão
e a
imagem – uma força antiga
que só
agora podemos contemplar.
a
ilusão do tacto
aproxima-nos dos olhos.
a
amêndoa ilumina
esse
corpo em silêncio.
a palma
recobre o caminho.
(a
transparência
da
pedra
acolhe-nos.)
nenhum
martírio nos consola.
basta-nos o testemunho
de uma
mão que não vemos
para
acreditarmos na passagem
das
lágrimas sobre o rosto.
um
rosto (o nosso?) sobrevive
nesta
parcela de mundo.
a sua
sombra protege-nos
da
fome, nesta tarde sem sombra.
que
face guardaremos
quando
a pele secar
e
bebermos do último vinho?
Lisboa
–
esculturas em alabastro
(Nothingham,
séc. XIV)
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