a sombra. o
sabor. o segredo
(Ruy
Ventura)
a luz. o
sopro. o calor
surgiu,
primeiro, como um título breve, acompanhando a superfície da
montanha: a cor da terra, dentro do sangue, o suor do nascimento.
ficou, depois, entre faixas e melodias, sobre o lençol de água
onde permanecia esse rosto – o grito que revelou o mundo.
longe, o
forno. a palavra acalentava o corpo. sobre as ervas. debaixo de um
castanheiro. desenhou então nalguns grãos de trigo a luz que
restava sob o telhado.
a mão
afaga o cabelo. a face procura a face. a mão procura o barro.
recria, transcreve para sul este poema. a expressão ilumina as
videiras. o pastor ilumina a face. rejubila até atingir a altura. a
pedra permanece como legenda do tempo. transcreve um movimento de mãos,
em direcção à serra. a mãe acolhe o filho no seu manto. olha
esta criança como se quisesse reavê-la no seu seio.
um corpo
nasce nas mãos do oleiro. um corpo desce. procura a raiz das árvores,
a porta, a lareira. acenderá o mundo com o seu sopro. com a sua
voz.
o ouro.
a água. a madeira
Isabel do Menino Jesus
Maria
Fernandes
Frei
Francisco
não
toque, por favor, nas paredes do templo. a fuligem desenha palavras
que nenhum de nós poderá pronunciar. a água ressoa nos alicerces.
a água do banho que refez a chama. o baptismo reconstrói os
tecidos da mão. conduz o sangue, com a cinza, até muito perto da
raiz.
perplexa,
Isabel escutou a imagem – o barro das origens, a cabeça um pouco
inclinada, a paz e a ciência da mão segurando o rosto.
não
precisas consagrar o ouro nem a madeira. pedra ante pedra, as areias
desceram o vale. o chumbo derreteu a língua. compôs quanto restava
desse nome entre as casas e o quintal. os arcos alimentaram o
horizonte. até quanto?
Maria
interrompeu:
nada
disto consentiu a majestade, mesmo depois do clamor da voz. a
estrada que iniciámos subia sempre. ninguém aproveitou o andaime.
na parte mais alta do telhado vimos ambas o fim do mundo, a
formosura de um rosto no alto lugar da noite. assim se elevou a
torre, a lanterna sobre o poente, estátuas sem lugar na liturgia da
distância, uma faca – apontada ao coração –, o oitavo punhal
cravado na obscura intimidade do teu corpo.
o
silêncio enegreceu-lhes o rosto, a língua. uma pomba sobrevoou a
multidão. as palavras, o calor, na pedra, os veios da madeira.
junto da janela, as laranjeiras cortaram a figuração do sangue, um
pouco de saliva colando a alma à sapiência do lugar.
nunca
poderei esquecer o incêndio. antes do fogo, tudo profanaram. a
temperatura, o mármore, a luz e o sopro da viagem. rasgaram a face,
a sombra, o sabor, o segredo.
nem
Francisco nem Isabel ali ficaram. cobriram com vidro a circulação
do tempo, o canto do templo na memória e na linguagem. só à
direita, por uma frincha na porta, a respiração entra de novo. o
lume permanece. aprende o medo e a estação. o sangue sobrevive.
coagula entre o fogo e a madeira. o sopro vem. anuncia este
nascimento. a sarça nasce na voz desta criança. o sangue envolve a
alma – a substância da alma, depois da sede.
o fogo.
a pedra. a escuridão
Gregório
Magno (?)
José,
o carpinteiro
a
mão desapareceu sob a madeira? a luz escondeu os dedos – ligando
o norte e o sul, o sul e o sudeste? a dor, debaixo de algumas
palavras, dividiu e recompôs o reflexo do vidro sobre os olhos. a
pedra renasce depois do negrume. o ouro envolve três quartos desse
rosto: – a legenda.
dissolvi
esta parte do meu corpo para melhor dirigir o olhar aos alicerces da
montanha. poderia subir, deixar entre os rochedos a chama que
iluminaria as asas e o farol. dissolvi, porém, o clamor, a cinza e
o testemunho. pedaços de metal ficaram como linhas na água e no
trevo, junto da parede.
que
ficou dos alicerces na tiara que ostentas sobre as veias? que
estilete registou sobre o ouro, entre a seda e o damasco, a palavra
– o rosto onde o gelo descreve o canto, negro, ecoando entre os
castanheiros e os filamentos de nojo na sarça e no navio onde tentámos
rever-nos?
a
luz atravessa a muralha entre excrementos e pastas de sangue. a
flama dirige a sua língua até muito perto de nós. o cabelo arde.
o som parece idêntico, mas guarda no interior a união entre o
rosto e a seara. mudamos de edifício, o lintel segura-nos no
tremor. as telhas estalam durante a noite. a mão escreve sobre a
cal a voz do imperador. transporta para dentro o peso da madeira –
tantos séculos sepultada a nascente.
olho
a imagem. as interrogações surgem nesta agenda. não consigo
encontrar uma única hora onde não estejam presentes o sangue e o
fogo. a mão desaparece. desaparece apesar do segredo. a veste alcança
o universo. a paixão revolve a legenda que procuramos colocar junto
do mapa para conseguirmos encontrar o destino. o friso estoura.
quebra cada um dos selos desta vinha e deste campo. um outro mar, a
cidade que vemos. a dança e a morte nos degraus do altar.
nenhuma
celebração nos redime. a tinta esconde apenas um pigmento mais
antigo. que nome possuo? grande, talvez, a linguagem dos pássaros e
das pedras, do tronco desta árvore, da lombada deste livro onde
escrevo sem cessar. tudo dissolvo com o tempo: a minha mão abençoando
o vazio, a tua mão acariciando essa criança crescida demais para a
idade, a mão do pastor a semear insectos nas águas e no futuro, a
mão do mártir atada à distância, os estigmas do fogo nessa mão
que segura a morte e a vida. tudo dissolvo. só assim sei reunir as
cartas que escrevi: respigo primeiro, procuro depois a essência –
uma sombra, o milagre do reencontro, a resistência e o desejo, a
assinatura e o alimento. a autópsia revela algumas palavras no estômago.
algumas palavras. o coração aberto sobre a cama. a língua
recolhendo na carne e na pintura o escopro e o cinzel para fabricar
o sopro e a memória.
a cal. a
cinza. o coração
Francisco
Gomes de Avelar
João
Galego
nada
mais desejei. reservei dentro de mim um terreno para guardar o rosto
e as palavras. o sangue espera pelo ferro e pela pedra. a alma
recebe a coroa do sono, aberta nos cinco lados que as asas
transformaram. à esquerda, as partículas destroem a prata, a
madeira, o mármore, a taipa. os sinos deixaram de tocar. embalaram
pela última vez o pensamento.
fechando
o livro, do norte acrescentaram:
os
verbos permanecem – dentro da voz e na pedreira que, de súbito, lança
sobre nós um peso imenso. a pólvora rebenta as veias. nascem
longe, no mar, corroendo os alicerces. a palavra defende o cimento
das ervas. por isso quiseste elevar do outro lado o templo da manhã.
e na madeira mandaste escrever a fronte onde a benção descobre
entre colunas vestígios de água na linguagem dos pássaros.
Francisco
sussurrou:
a
luta conserva-nos, meu caro, mesmo quando nos retiram o rosto que
deixámos sob a cinza. tu e teu filho foram, antes de mim, a ribeira
que transborda em pleno verão. junto do mar, perto do forte que
conserva a concepção do mundo. há muito sangue, muita poeira por
aqui. o caminho fica entre a chave e a fechadura, a tinta escorre
pela vertente e sobe, sobe sempre, mesmo quando as muralhas a
oprimem.
João,
o galego, concordou:
sei bem
que a nave, a nave esquerda, conduz aos braços do cruzeiro.
desceram para melhor tocarem esta terra. o sangue amassa a verdura.
procuro a escuridão para melhor fitar essa rua por onde subo todos
os dias. sem nunca encontrar o teu rosto para além do ouro e da
madeira. escrevo-te cartas. deixo essas cartas entre a pedra e a
argamassa – lamentação que nunca inscreverei, que ninguém
recordará no futuro. morro para encontrar a escuridão. regresso a
casa com a noite nos braços e entre os lábios um pouco de veneno
para conservar meu corpo entre as páginas do livro. nada sei
escrever. tudo consigo recolher entre as traves e os pilares da
ponte.
Francisco
comoveu-se:
comigo
a manhã nasceu de novo no oriente. por isso desenhei a estrela.
guardei os olhos. desembainhei a espada quando os sinos tocaram e
eram engolidos pela terra. a catedral esperou pela sua entrada.
revela os nove degraus por onde subi até encontrar a tua solidão.
conquistámos
de novo a segurança, o encontro que o fio foi tecendo sobre a capa.
a terra regressa. dissolve a alimentação das aves para melhor
ascender ao coração. a fortaleza desaparece. a vela também. o
sopro protege-nos. protege-nos porque sempre nos abandona.
a carne.
o campo. a solidão
Francisco
Bugalho
Cristovam
Pavia
não
pude, meu filho, receber no peito a carne e a madeira. nesta terra
reservei de antemão o espaço necessário para aumentares comigo o
fogo em que fui depositando a minha sede. perdeste a chave, eu sei.
mas fertilizaste com a tua mão o rosto dessa escultura virada a
nascente. na montanha, a água do tanque ficou límpida. nela
entalhaste o oiro e a agonia. o medo desfez a porta. colocou sobre
os músculos o lintel dessa torre, como se fora um tronco de
carvalho. o líquido assentou no coração. só então pudeste beber
desse cálice esculpido pelo mar e pela sombra.
recebi,
meu pai, o tempo e a sementeira.
procurei nesta terra um veio de água
para lavar e alimentar o coração. o campo enegrecia. fui
escutando, quando não conseguia vigiar, essa ponte sobre o mundo.
que lugar me pertencia? sem olhos, o verbo toldava o movimento. a água
corria. entre os lençóis postos de novo. colei retratos de gente.
desenhei mapas, paisagens e rostos. anotei com minúcia estradas que
se cruzavam comigo. contudo, o campo enegrecia. transportei a
humanidade inteira no peso dos ossos e da carne. atravessei a
corrente transportando sobre os ombros a viagem e o desespero. em
silêncio, tentei regressar. a semente ardia entre os dedos
queimando lentamente a pele e as unhas. espalhada pelo mundo, era
preciso reunir essa carne para com ela fertilizar o vale e a
ribeira. sobre o arco registei o cântico dos mortos. procurei uma
paisagem para alimentar o coração. diante da imagem tive de novo o
corpo reunido. o sangue desenhou no mármore o canto da devesa.
entre as ervas e a inscrição do medo
pude descansar.
o sopro.
o ventre. a imagem
Daniel
Costa
guardei,
minha mãe, na tua voz o último voo devorado pelo mar. seccionado o
coração, tentei elevar perante o vento o segredo da fala e da memória,
a circulação da carne sobre as ondas – sem ver sequer que não
podia atingir com tão frágil instrumento o calor dos líquenes e
da tua mão.
sobre
a montanha falava a linguagem dos pássaros (ou dos anjos). vestido
de negro, guardava sob o cabelo a velocidade e o horizonte.
ficava-me longe a nascente. a terra devorada por esta habitação.
por todas as moradas que o sopro fazia(m) recuar.
nada
ficou desse tempo. não mais respondi à mensagem nascida a poente.
fotografei nesse segundo o prado e a tristeza. o vendaval sem voz
durante a tarde. que viagem sobrou da ilusão? cortei o fio
derradeiro para subir, sem medo, os nove degraus do firmamento. saí
dessa caverna para te deixar a minha voz, o meu vento e o meu
segredo. deixei na escuridão a luz e a alma para com elas alumiar o
corpo inteiro que vou desfazendo nos teus olhos para melhor
reconstruir o universo.
guarda,
minha mãe, na tua voz esse voo nascido sobre o mar. assim
continuarei decifrando a corrente que levou desta ilha à tua ilha a
flor da noite sobre a noite.
a
nave retorna em silêncio ao útero que um dia devorei. o asfalto
rebenta à nossa porta fazendo crescer no coração a planta desta
casa onde vivo. fotografei contigo ruínas e vestígios desse teatro
do mundo, quase a despenhar-se no oceano. recolhemos os dois pedaços
de tijolo e de argamassa, telhas há muito tempo sem água, pedaços
de madeira em que o fogo pintara a inscrição do medo. lembras-te,
mãe? de súbito ficamos ambos escutando o sopro e o sangue –
dissolvendo a floresta encoberta pelas ondas.
nesse
dia guardei na tua voz o fogo e o alimento. soube então que, mais
tarde ou mais cedo, teria que esculpir nesse ventre a minha imagem,
salvando para sempre do relâmpago o meu corpo, a minha fome –
essa memória.
tempestade.
a ruína. renascimento
Anónimo
resta
no meu olhar um traço negro. a estrada divide a tempestade, a
intensidade da fala na mata que circunda o coração. queimo esta
carne entre as árvores. nesta madrugada com fogo assomando por
entre os olhos. a inscrição guarda na memória o sangue coagulado.
o vidro rebenta nesses olhos a semente da angústia. dissipa nos
ossos o tesouro que alumiava a sombra e o relâmpago.
que voz nasceu
tão perto dessa morte? – perguntei. – entre duas lágrimas, desaparecem a flor e o
segredo. aquela nuvem sem água, avança e amortalha essa luz, sem
nome, no horizonte. amo esta face ressequida. sei que, por detrás
da constelação, aquela barca transporta o vulto de um fantasma.
nem Tiago nem Vicente ali viajam. nem Pedro nem André da pescaria
transportam sem temor o verbo intenso. apenas morte. entre o corpo e
os carvalhos. e o mar (mar de lume) afogando nas artérias a manhã.
o
silêncio quebrou os rebentos que nasciam no coração. a voz
precisava de sal para trazer sobre o túmulo o canto da floresta. a
sede chora aquele ventre rasgado
na infância. e a noite pronuncia:
dialoga
a minha mão na tua mão no interior da tempestade e da ruína. a
claridade nasce entre as cinzas que recortam do inverno o sol e a
alma. nada posso vislumbrar desse futuro nem desse livro perdido em
duas casas. a terra recebe o adubo que o vento dispersou. (nascerá
de novo a voz que escrevemos no ponto mais alto da montanha?) a
respiração corta o horizonte. o verde traz consigo a voz de um
sino repicando de novo entre os dedos. que olhar nos transfigura?
sob a ferida o sangue vai soprando. nesta manhã deseja circular.
a dor. o
tempo. a melodia
Gaspar
Coelho
Afonso
Álvares
Luis de
Morales
Fernão
Gomes
subimos
por fim até ao firmamento na dor cantada nesta noite onde as
palavras elevaram – no seu lamento – a celebração da luz,
atributo da voz e do tempo.
Gaspar,
o entalhador, lembrou ainda a Afonso, contemplando:
não
viste de antemão o percurso desta melodia. acompanhou no entanto o
nascimento das colunas, o cruzar das abóbadas, as estrelas que
semeaste por todo este mundo. ficaste, sustentando o lugar da música,
aguardando todos estes séculos a sua chegada à tua arquitectura.
desculpa-me,
Gaspar – pronunciou Morales, el divino – nenhum de nós esperou este
momento. de entre as notas, desde o local do nascimento, aquela voz
traçou uma outra veneração entre a dor e a alegria. imagens,
altares, retábulos e resplendores, a pintura nossa narrando a própria
vida, permaneciam na imperfeição que só a palavra e a melodia
conseguiram resgatar.
stabat
mater dolorosa – a tua voz traduziu durante a noite a angústia que
nos conduz, mas também a esperança, lendo nos sinais o brilho no
corpo e no gesto. o perfume desce pelos teus ombros, caminha pela
encosta ao encontro do rio e da terra.
nenhum
dos quatro respondeu: nem Gaspar, nem Luís, nem Afonso ou Fernão,
até aí em silêncio. as sílabas haviam nascido de um outro espaço,
numa casa onde eram apenas o alicerce. a (sua) obra ficara completa.
há porém um retábulo. uma pauta. permanecem ainda no início.
o peso.
a saudade. a despedida
Carlos
V
Tiziano
Vecellio
colocarás
o peso sobre a arca onde guardei a sombra e o coração – o navio
onde deixei a minha sede, local exacto para o sangue e para o medo.
nesse local crescerá aquela árvore que alimenta o fogo e a raiz
– de rosto nunca revelado. mesmo no retrato mais nítido, nada
vislumbro desse horizonte onde a água dissolve entre os carvalhos o
itinerário da última viagem. coberta de negro, a câmara deixa
passar a angústia – dissolve a pedra e a argamassa entre colunas
e vozes distantes.
não
vale a pena, majestade, verdes nessa janela o corpo abandonado. a
vosso lado permanece inteira a perfeição do amor e da doçura. o
sangue que partiu o recebestes por entre as unhas na circulação.
passa agora pelas vossas veias como vinho bebido no inverno. a pele
de ontem é a vossa pele, os olhos de ontem nascem quando vedes o
sol descendo p’ra lá da fronteira. ficai sabendo, senhor, que a
dura morte a destruístes no dia do encontro. o cálice na jornada
partilhado reencontra entre vós o mesmo rio que sabe unir as
margens desavindas.
nada
ficou senão poeira. mesmo no retrato vejo apenas a minha pele
secando, agarrada aos ossos que mal amparam a luz que tento
desenhar. desejei Isabel sempre a meu lado, regando minha alma com a
seiva que ardia em seu corpo todo o dia. tão pouco irriguei minha
memória com seus olhos de saudade e encarnação. quis o Altíssimo
separar da terra a melhor semente e o orvalho. comecei a secar nesse
momento. e apenas as tuas tintas e teus traços conseguiram ungir o
pergaminho sem vida para legar ao firmamento. no sopé da montanha
guardo agora a unção do silêncio e da madeira. registo na pedra a
esperança de uma morte sem tempo, com olhar – posto no cântico
que divide a cor, a sombra e o movimento. não sei quando, mas
colocarás teu peso sobre a arca do meu peito. a teu lado, o ourives
escutará a imagem da estrela e da trindade. não verá teu corpo no
ofício (só o sopro de tua mão ali estará), mas a seu lado a tua
voz presente receberá meu réquiem, sem palavras. meu corpo, à
distância, escutará o canto do ourives sobre a terra. meu sopro
terá percorrido a última vereda para norte. num dia de chuva,
descansarei minh’ alma sobre o sonho e a madeira. secarei estes
olhos para sempre na noite que acompanha a viagem. partirá meu
corpo nalgum dia cumprindo seu destino viajeiro. mas nesta terra e
nestes carvalhos ficarão meu odor, minha palavra, o alento que um
dia recebi no lado esquerdo deste sangue e desta alma. a sombra
descerá sobre esta casa. meu rosto ficará, p’la tua mão, como
terra que desliza até ao mar. Isabel a meu lado enfim estará
brilhando como água no deserto. a imagem é banal – bem sei,
amigo –, não serve p’ra pintura ou poesia. nesta terra deixo a
derradeira expressão do meu olhar, da minha prece. as frases ficam
secas, sempre iguais, como na guerra
– sem filosofia.
dor.
a memória. nascimento
José, o
carpinteiro
dissolvo
o sangue e a memória nesta criança que acolho sobre os braços.
(uma árvore floresce em pleno inverno, perto da luz que nos aquece
as veias.) dissipei a dúvida e o cansaço neste sorriso que domina
a minha voz. a madeira floresce neste ouro feito de lágrimas, de
sombra, de agonia. recordo agora, aqui, a longa fuga pelo deserto,
pelo sal, pela palavra. fugindo de mim mesmo encontrei neste menino
a esperança, o sol, a alma.
que
sobra hoje do encantamento, do calor e da luz na manjedoura? o rosto
de uma mãe tão perturbado p’lo nascimento desta alegria? o
sangue cobrindo este corpo? os anjos cantando, como água, no meio
da secura e da saudade? pouco sei desse tempo recolhido no menino
que guardo sobre os braços. transporto no silêncio do meu rosto
outro silêncio sem tempo nem lugar: o calor desta criança semi-nua
num mapa onde cabem terra e mar.
o silêncio.
a poeira. erosão
Rodrigo
de Lima (?)
o
silêncio resguardou toda esta noite. houve, de súbito, uma melodia
diferente – que nem a telepatia soube acompanhar. a pauta
escreveu-se, mas nenhuma arquitectura seria suficiente para ler essa
brisa subitamente interrompida. a melodia nasceu. nos intervalos
desse silêncio. uma voz veio de longe (do fundo dos tempos).
acompanhou-nos. traça dentro do teu corpo linhas que, nesta noite,
só tu podes decifrar. correspondência encaminhando a imagem,
difusa, cuja presença é essencial para que o navio chegue a bom
porto.
*
perturbou-se
a tua voz durante a noite. por detrás de toda a alegria. o coração
procurou encontrar outras viagens, que tento interpretar neste
momento. qualquer viagem é, no entanto, intransmissível. mesmo as
que têm, à partida, uma meta conhecida.
a
árvore cresce. dando apenas a adivinhar suas raízes. a terra (um
horizonte que nunca conseguirei vislumbrar) nasce dentro destes símbolos.
apontaste
uma legenda. a mão. afasta-se. não consegue ler se não um terreno
conhecido, embora tão longínquo. tenta encontrar nesta voz traços
de uma estrada tantas vezes percorrida. as estradas, como as
viagens, são entretanto sempre paralelas. não há caminhos
semelhantes. apenas veredas – por onde poderemos deambular à
procura de uma paisagem, inesperada.
encontrei
no silêncio uma narrativa que escreves sem saber. procuro lê-la.
guardá-la no bolso esquerdo da camisa. tentarei ouvi-la toda esta
noite. suspensa no interior do firmamento.
*
passo
nesta manhã sob o local do nascimento, ao contemplar a fechadura
desta porta.
a
porta abre-se. o automóvel chega. a mão esquerda entrega algumas
palavras. um instinto de morte. neste olhar abrindo sempre para essa
pequena felicidade – que o transforma.
existe
a última criança. resguardá-la-emos como a sombra, onde nos
refrescamos. nascerias no esplendor dos sons, mapas de uma viagem
sempre com regresso.
a
voz surpreende-nos. poderia ser de outra maneira?
estamos
cobertos por uma poeira que não conseguimos distinguir.
*
impede-nos,
por vezes, de ver o princípio de toda a realidade que nos cerca. há
objectos dentro deste nevoeiro. com nitidez vemos uma porta. e, na
porta, uma pequena alegria.
leio,
entre a raiz e o tronco da árvore, uma presença. a surpresa. o átrio
desaparece subitamente. um lugar sem espaço, ainda sem memória.
onde a memória aproxima este nascimento, sem tempo nem lugar.
*
ficou
a meio esta noite. uma única lágrima, percorrendo todo o silêncio.
o espaço consegue estender-se. torna-se memória. a voz que alcançámos
num dos pontos mais altos da montanha.
procurámos
traçar dentro dos olhos um mar inteiramente nosso. figuras e
constelações, o segredo de uma aldeia vislumbrando outro país do
alto das torres do castelo.
a
linguagem será sempre outra. há momentos em que apenas o olhar
dialoga, onde os sons e as palavras comunicam a temperatura e o
vento. nenhum termómetro será capaz de medir este mundo, se não
reproduzindo a fotografia com legenda que tentaremos sempre
decifrar.
tornar-se-á
menos nítida, perante a lágrima, registando o silêncio? há uma
luz estranha nesta voz. tenta encontrar a escala perfeita, sem nunca
o conseguir. o caminho desvanece-se – como o vale em pleno
anoitecer. angústia e mistério. um corpo reparte a respiração.
até encontrar a melodia que procuramos. será este o lugar do
(nosso) nascimento? esta carta continua, apenas, no início.
*
as
imagens misturam-se. vejo, talvez, dois filmes ao mesmo tempo.
o
som prolonga-se. viaja na cabeça e nos lábios, sem que consiga
separar-me do seu voo. a praia em plena noite. as ondas chegando até
muito perto. aproximaram-se. conseguiram ler, melhor do que nós, a
oração que nunca chegámos a pronunciar. no outro lado, um corpo
procura decifrar, junto do coração, o resultado dessa operação
onde o deve e o haver apenas interpretam o sopro que nos acompanha,
embora à distância.
os
fotogramas misturam-se. neste resumo, alicerces e pilares fazem
adivinhar um edifício onde o futuro guarda na vida a sua legenda.
sobreiros, pinheiros, um viaduto em pleno Alentejo – são indícios
de uma narrativa onde o espaço conta pouco para um tempo sem
limites, dentro da viagem que traçamos em redor das emoções e do
cansaço. as imagens, essas, continuam com a viagem que não
queremos interromper. compõem outra realidade onde os astros e a
estrada prosseguem em paralelo dentro de nossa própria idade.
*
repito
os sons. de memória. permanece, no entanto, uma inquietação no
estômago, um leve arrepio nos braços. deixo de saber escrever.
sobretudo este mundo. uma metonímia permanece. uma parte da memória
está pelo todo que vivemos. dizendo muito pouco. comunicando, no
entanto, tudo.
avançamos
ou regressamos ao início? alguém saberá a resposta? é necessária
a dor e a soledade para que este caminho possa continuar e possamos
sair transfigurados de cada minuto.
é
impossível, porém, repetir o mundo. a caligrafia mudou: posição
do sol perante a janela, estrela que se dirige do nordeste para o
poente. uma porta chega. um poema enviado como mensagem na divisão
do olhar, na tarde do incêndio.
continuo
nesta noite a voz que levámos até à mais alta montanha do sul.
tocarei os sinos, amanhã? subirei à torre. entrada ou porta – da
alegria.
*
uma
planta. só durante a noite se revela. desconheço ainda o seu nome.
sei apenas (recordo) que guardava em frascos de tofina a sua essência:
a cor, dentro do verde, ora amarela ora violeta; o cheiro, dias
depois decomposto (havia perdido o contacto com a noite e com a
terra).
aguardaria
as horas necessárias até poder receber a música e a alegria.
consegui, porém, abreviar a luminosidade, colocando-a exactamente
entre as duas e as três da tarde. não foram precisas palavras.
nasceram da planta as sílabas essenciais para dizermos tudo quanto
a língua não entende. a noite é sempre mais clara. nascem nela os
sons que nos constroem (um galo, o chocalho ao pescoço de uma
ovelha).
venho
de outras margens do oceano. tenho que parar várias vezes, a meio
da emoção, hesitando entre duas palavras. não recordo o nome
desta planta. abre a sua flor com a noite. ou com a nossa passagem.
*
contarias
o segredo em poucas palavras. o texto desapareceu na memória. foi
escrito a sépia, muito claro. de súbito, um mundo emerge. a fita
revela imagens, sabores, uma data impressa sobre a pele. todos os
momentos contêm pormenores, alicerces, estilhaços que ficaram
entre o cabelo – para sempre.
a
fotografia imprime em poucos minutos toda uma vida em dispersão.
sob a estrada, junto das águas, olho apenas a nossa imagem. um
peixe nadando. os limos crescendo. é-nos entregue um pequeno coração,
onde vestígios consolidam (fazem oscilar) todo o edifício.
procuramos o mundo inteiro. encontramos uma ruína. procuramos
consolidar a tinta com que tudo foi escrito.
a
viagem teve o percurso necessário? abrir-se-á a janela pela manhã?
continuaria a desenhar esse rosto neste poema. o carteiro
aproxima-se.
*
a
nossa eloquência pouco respira dentro de água. ou entre os
castanheiros que restam na vertente norte da serra.
a
dor apresenta-nos. uma ferida faz-nos revisitar lugares, a habitação
do olhar mesmo se os olhos permanecem fechados. cada lugar – pedaço
de pele arrancado à superfície do nosso corpo – reserva uma
linguagem que não entendemos. o mistério (um acorde, a passagem
das mãos) conduz a uma resposta: a surpresa que nos leva a
contemplar o mundo entre o passado e o futuro.
seremos
um livro prestes a regressar à forma líquida ou sólida da origem?
escutamos um corpo cuja estranheza não conseguimos decifrar. a
eloquência permanece na água. os passos encaminham o canto ao
encontro do firmamento. a luz, um longo braço, onde nada
encontramos – e tudo consegues dizer.
*
uma
fotografia ficou por revelar dentro do verde, no olhar e na serra. a
objectiva não alcançou essa imagem, crescendo e desaparecendo ao
mesmo tempo.
não
encontro, nesta tarde, mais do que uma memória. nenhuma película
poderia registar esta presença. um vulto sentado naquela rocha,
como na saudade.
encontro
em todas as imagens este retrato tão pouco definido. o mundo avança.
só o coração parece ter parado para nos escutar. entendemos porém
outra linguagem que nenhum dicionário poderá encontrar. outra
linguagem: sons que notação alguma poderá deixar para o futuro.
nasce
assim a estranheza. espero, entre a sombra e a ruína, a frescura.
descreve a sua translação sem que sejamos capaz de desenhá-la.
fixaremos
a imagem? guardaremos os contornos de cada momento como se fossem
elementos que devolveremos à terra? uma fotografia ficou por
revelar. desenho que não distinguimos. uma melodia a que sempre
pertencemos.
*
naquela
noite, a meio do jardim, algumas palavras traçaram a sangue um
caminho diferente entre duas terras que não conheço. (nenhum
isolamento nos protege. as telhas estalam. o tecto é desenhado pela
água. o vento e o granizo quebram a vidraça.) apenas dois ramos se
moveram. o mundo ficou imóvel. a rapidez da erosão desfez o
terreno, a rocha, a estrada. tudo.
aberto
a sangue, entre dois lugares que não conheço, cada minuto traçou
uma legenda: a árvore cujo tronco estalou durante o verão. as
perguntas ficaram por responder. o caminho separou dois mundos, sem
que possível fosse analisar o sangue – ou a água.
a
melodia preenche este poema, tentando reunir os sons e os fragmentos
de uma temperatura estranha. o corpo desaparece dentro da cidade. as
raízes rebentam a calçada. olho este livro e nada me responde.
uma
casa cresceu. mas só aqui a posso encontrar.
formato
pdf
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