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Kurt Schwitters

 

TEMPO DE ADVENTO

 

(Ruy Ventura)

 

 

Fui buscar a minha filha ao infantário. Havia, por todos os espaços, enfeites de Natal. Fitei paredes e recantos. Barbas e mais barbas, árvores fingidas – mas do eixo e justificação da festa da Natividade, nem sombras. Do Menino Jesus, que tanto agradaria aos petizes (um entre iguais, pensariam...), nem vestígios. À entrada da sala da Sofia vi um conjunto de anjos, cada um com o nome de uma criança. Foi fraca compensação.

 

O cenário repete-se um pouco por todo o lado. Deus Menino é sinal de escândalo. A sua pobreza, fonte de fortaleza, não se encaixa na sociedade de consumo, onde todos somos vítimas de um anti-Cristo chamado “Aquisição”, que nos quer fracos e alienados. É preciso esconder (manipular, ridicularizar até) essa frágil criança que (se) tornou Deus presente. A ameaça é muito perigosa para o comércio do mundo.

 

Entrei em casa irritado. Tentei esbater esse mau sentimento com a leitura de um livro do poeta congolês Alain Mabanckou, Tant que les arbres s’ enracineront dans la terre. As suas palavras vieram no entanto ao encontro do que não me saía da cabeça. Traduzo: “eis que veio o tempo dos risos hipócritas / o tempo da mediocridade servida com todos os molhos / o tempo em que o homem já não descende do macaco / mas a ele retorna / o tempo dos vendedores ambulantes de quimeras / o tempo dos aprendizes de feiticeiro // eis que veio o reino dos homens vestidos de mentira / os novos Sísifos transportando o rancor / como insectos apocalípticos / condenados a rebolar trampa até à margem seguinte”. O bálsamo deste poeta vem da natureza (“eis contudo a montanha altiva / orgulhosa da sua altura // eis a montanha da alma / silenciosa guardiã da imensidade // eis a montanha que se cala há séculos / deseja apenas uma nesga de céu azul / erva sempre verde / orvalho matinal / um rebanho a pastar nas suas cercanias / pássaros de todas as espécies / a cantar”). As imagens de despojamento seduziram-me – sobretudo essa “montanha da alma, tão ligada à espiritualidade de São João da Cruz – mas não me satisfizeram completamente.

 

*

 

Dia santo. Conforme a tradição recebida dos antepassados serranos, pus-me a preparar o presépio. Não tinha musgos, nem me dispus a comprá-los na florista. Os musgos precisam de pedras – e as que existem nesta minha colina de exílio não prestam para o seu crescimento. Reciclei a caixa dum brinquedo, oferecido à Sofia no dia do seu baptizado, para montar o altar doméstico ao Deus Menino. Peguei em cavacos de azinho e ramos de sobreira para criar um cenário plausível. (Cheira a Serra de São Mamede... Anestesia a distância...) Dispus as peças, este ano de marfinite, bonitas mas sem arte, resistentes contudo aos possíveis avanços de uma bebé activa (as de barro ficaram a espreitar no móvel). Terminado o trabalho, dei por mim reconciliado. Pelo menos aqui tentamos que as coisas sejam de outra maneira.

 

Folheando livros na biblioteca, veio ao meu encontro um velho conhecido, Antonio Colinas. Involuntariamente quase, pus-me a traduzir um poema seu que – talvez sem querer – me desejou um Natal tranquilo. Com a mesma intenção aqui deixo. Um Natal feliz “Com o Deus escondido”:

 

Uma mulher e um homem ardem no seu silêncio. / Que fazemos tu e eu / aqui, nesta penumbra? // Tu escutas o meu silêncio / e eu escuto o teu, / e até parece que esquecemos / essoutro silêncio deste lugar sagrado / pelo qual estamos aqui, em princípio, / sem sequer sabermos para quê. / Talvez seja por esta ignorância, /  pela qual decidimos ir cerrando os lábios, / e cerramos os olhos como se / nada nos importassem as nossas vidas e o mundo. // Uma mulher e um homem ardem no seu silêncio, / buscam no seu interior / o que não encontram fora: / o escondido deus, o deus desconhecido, / esse ser, ou esse espírito ou silêncio, / que se cala mais do que ninguém há muitos séculos? / Ou fala-nos oscilando na chama do altar? // E, no entanto, há entre tu e eu / uma gozosa atmosfera, / pois algo vem e vai entre os nossos corpos, / da tua mente para a minha mente, / dos teus olhos fechados para os meus olhos fechados, / do teu silêncio para o meu silêncio. // Talvez o que flui de maneira tão doce / seja essoutro silêncio / do deus desconhecido que se esconde, / mas que, por vezes (é certo!), nos envolve / como fogo, pois vai e vem como música, / recorda-nos e prova-nos / que estar contigo aqui, / que viver é, simplesmente, um milagre.

 

 

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