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OS AFORISMOS DE ANTÓNIO
RAMOS ROSA
(brevíssimo apontamento seguido de antologia)
(Ruy Ventura)
“Tentarei construir a
consistência num adágio
de sílabas
silvestres, de ribeiros vibrantes.”
(António Ramos Rosa,
“O Horizonte das Palavras”,
in Acordes)
Não sei se António Ramos
Rosa costuma escrever aforismos. Não sei sequer se lhe apraz ler
esses fragmentos de sabedoria, nascidos na noite do mundo ou da
síntese de textos saborosos que o tempo quis deixar para o futuro. A
literatura portuguesa com raízes no Romantismo não é farta em
escritores que procurem a concisão, a essência sempre fragmentária
de um aforismo. Não me parece que encontremos com facilidade vultos
com a dimensão de Schlegel, de Novalis, de Goethe ou de Cioran. Para
o conseguirmos, temos que entrar já no século XX, onde avultam as
figuras de primeira grandeza que são Fernando Pessoa e Teixeira de
Pascoaes. Poderíamos ainda recordar José Bacelar, José Rodrigues
Miguéis, Vergílio Ferreira ou Agustina Bessa-Luís – mas nenhum deles
possui uma produção aforística que possamos considerar, em qualidade
e em quantidade, semelhante à dos criadores de Heróstrato
e de O Bailado.
Igual panorama
encontramos na poesia de indagação filosófica. Como notou, e bem, um
conhecido ensaísta – os portugueses são, por natureza, líricos,
afastando-se quase sempre da escrita de poemas cuja principal missão
seja a sugestão de ideias e conceitos, através de uma sábia
articulação da palavra com o pensamento. A indagação lírica em
língua portuguesa nasce muito mais de uma representação do mundo e
da memória do mundo, ou então da libertação do verbo ao encontro da
criação de universos alternativos, com raízes no real ou num real
excessivo e alternativo. Como refere Vitorino Nemésio num dos seus
poemas mais conhecidos, a poesia (portuguesa) e a abstracção dão-se
mal, sendo frequentemente opositores mal disfarçados. Desta isotopia
nasceram obras tão fundamentais para o nosso lirismo contemporâneo
quanto as de Cesário Verde, Mário Cesariny, Ruy Belo, Carlos de
Oliveira, Armando Silva Carvalho ou Fernando Assis Pacheco.
Para encontrarmos uma
poesia que sintetize habilmente a abstracção e a concretitude, a
realidade e o sonho, voltaremos sempre a autores como Pessoa e
Pascoaes, aos quais deveremos sempre juntar alguns dos textos de
José Régio. Indagação filosófica encontramo-la nestes autores, mas
sobretudo em românticos como Alexandre Herculano e Antero de Quental
(onde o poema quase está ao serviço dos ideais) ou, mais
recentemente, nos poemas de Fernando Echevarría ou de Fernando
Guerreiro. Para encontramos na contemporaneidade de todas as
literaturas poetas como os dois últimos referidos, em estreita
ligação com a melhor lição do Romantismo alemão, profundamente
indagador das estruturas do Homem, do Mundo e da Linguagem que os
liga e reconcilia, temos que pensar nas obras de Roberto Juarroz ou
de C. Ronald, autor de língua portuguesa de nacionalidade portuguesa
que todos precisamos descobrir.
A poesia de António
Ramos Rosa representa na contemporaneidade um caso sui generis.
Para já, temos em mãos uma obra que dificilmente conseguiremos
abarcar na totalidade. Possuidora de uma assinalável coerência entre
a produção ensaística e a produção poética, vive na demanda
permanente de uma intensa liberdade do artista criador, concretizada
na plena liberdade concedida ao leitor do poema – a partir do
momento em que o poeta se deixa guiar pelas palavras, consciente de
que a poesia, permanente “aprendiz secreto”, nasce sempre que o ser
humano se deixa surpreender pelo verbo escuro e opaco, surpreendendo
de seguida que o lê:
“Diante da página
branca, o poeta é um ser despojado que ignora o que vai fazer,
porque nenhuma técnica, nenhum sentimento, nenhuma ética pode
predeterminar a eclosão do poema que é uma espécie de relâmpago
entre dois pólos (a linguagem e o silêncio ou a consciência e o
desconhecido) sem que, no entanto, a palavra atinja a plenitude
total, uma vez que ela é apenas o pressentimento de uma palavra
absoluta. (...) A poesia é uma invenção livre e aberta mas é ao
mesmo tempo uma insurreição vital, a eclosão de insuspeitadas
energias que se actualizam na palavra segundo um modo de organização
flexível e uma coerência não constrangedora para a sua incoerência
essencial.” (“A pobreza da poesia”, in A Parede Azul,
1991)
A lição parece próxima
da defendida pelo grupo de escritores que cresceram em torno da
revista presença. Colaborador, nos anos ’50, da
revista Árvore (que seguiu, de alguma forma, o ideário
da publicação coimbrã), não é estranha a António Ramos Rosa a defesa
intransigente da liberdade do artista criador, preconizada por José
Régio, João Gaspar Simões e outros escritores da primeira metade do
século XX. Menos estranha parece ser ao autor de A Pedra Nua
a defesa da “palavra essencial” levada a cabo por Adolfo Casais
Monteiro, que parece estar de alguma forma subjacente a algumas das
suas ideias sobre o fazer poético.
A poesia do homem que dá
propriedade literária a O Grito Claro surpreende-nos
pela sua estranheza, sobretudo quando interpreta o silêncio através
dessa palavra “pobre”, “nua” e “viva”, concretizando linhas de fuga
que, como refere Gilles Deleuze, são sempre a essência de uma
desterritorialização. Ao contrário de alguns modismos que hoje por
aí imperam saturando o lirismo com simulacros de poesia da
experiência e do quotidiano, os textos de António Ramos Rosa, não
sendo abstractos, parecem desejar quase sempre a inteira liberdade
de quem lê, sendo por natureza o corpo dessa “liberdade livre”. Não
representam nem propõem novos mundos – inauguram até ao infinito a
multiplicação de realidades interiores, nascidas na experiência
pessoal e quase intransmissível, quantas vezes nascida na
contemplação de uma epifania, de quem se aproxima de cada uma das
centenas de produções que ele vem publicando, em livro, desde 1958.
Ética, reconciliação com
o mundo, catarse, iluminação interior vêm sempre depois – da
experiência de leitura. “Das grandes ceias estão as sepulturas
cheias”, parece dizer-nos sempre António Ramos Rosa cada vez que
lemos um dos seus poemas, seguindo um amigo também poeta com que há
anos venho contactando. Na aparente discursividade dos seus textos
há sobretudo a procura de essências, nascidas nos intervalos do
silêncio, pois só através delas se atingem as raízes da árvore que
somos, a realidade primordial que urge descobrir, para melhor
encontrarmos a realidade que somos, para melhor lutarmos contra a
entropia do tempo erosivo e destruidor:
“O princípio criador
realiza a máxima transformação possível no nosso tempo, dado que
cria uma imagem correspondente à realidade primordial e una, ainda
não separada pela consciência, uma realidade que só a personalidade
criadora é capaz de criar a partir da sua totalidade. Toda a arte
tem por função regenerar a existência, o que implica virtualmente a
revolução da sociedade.” (“O princípio criador”, in A
Parede Azul, 1991)
Volto ao início. Não sei
se António Ramos Rosa alguma vez escreveu aforismos. (Não conheço
toda a sua obra; apenas algumas centenas de poemas, a que
periodicamente regresso. Durante alguns anos tentei afastar-me –
desconfiado perante os epígonos que ia gerando, talvez sem saber.
Aproximar-me de novo, no momento certo, veio trazer-me de novo o
sabor de uma poesia estrutural dentro do lirismo de língua
portuguesa. É certamente banal uma afirmação como esta, mas agora e
sempre necessária.) Mas será isto importante? Com este apontamento
quis apenas partilhar uma experiência de leitura. Ao caminhar pelos
vários livros que tem publicado, dei-me conta de uma crescente
dimensão filosófica na sua poesia – adivinhada já na importante obra
ensaística que foi edificando. À medida que fui concretizando a
velha e sábia regra beneditina (“lege et relege”), registei um
conjunto de fragmentos. Aforismos? Adágios? Não sei classificá-los –
nem isso me interessa. A fragmentação é de minha inteira
responsabilidade, pois cada uma das frases, cada um dos versos ou
textos é parte integrante de poemas mais vastos. A leitura aqui
fica, partilhada. Os aforismos, retirados por mim à nascente, aqui
permanecerão.
“A música começa / no
deserto do não” (Voz Inicial, Lisboa, 1960)
“Há um caminho que te
conduz até ao sono, ao nível do mar.” (Sobre o Rosto da Terra,
Covilhã, 1961)
“A linguagem é uma
página de sinais esquecidos. Depois de todas as imagens, depois da
última palavra, permanece o amor frágil de uma imagem suspensa,
como que interdita sobre a aresta de um obstáculo. É a imagem que se
apaga, que se perde, e no entanto caminha para o desconhecido e
ganha o sombrio fulgor da palavra transfigurada.” (Quando o
Inexorável, Porto, 1983)
“Devoramos o livro e com
os olhos cegos de brancura transformamos a impossível leitura na
escrita de uns signos imediatos que nos devolvem a linguagem da luz
apagada pela luz.” (Quando o Inexorável, Porto, 1983)
“Escreve-se sempre com
as mãos nuas mas a nudez e a transparência da página é que permitem
a penetração no obscuro, a revelação do invisível.” (Quando o
Inexorável, Porto, 1983)
“Há palavras carregadas
de noite e de ombros surdos / e há palavras como giestas vivas” (Gravitações,
Lisboa, 1983)
“A palavra mais viva é a
mais inesperada é a palavra nua” (Gravitações, Lisboa,
1983)
“O poema é um arbusto
que não cessa de tremer.” (Volante Verde, Lisboa,
1986)
“A verdade é semelhante
a uma adolescente / vibrante, flexível, em radiosa sombra.” (Volante
Verde, Lisboa, 1986)
“o mundo é uma brecha um
esplendor um redemoinho.” (Volante Verde, Lisboa,
1986)
“Apreender com as
palavras a substância mais nocturna / é o mesmo que povoar o deserto
/ com a própria substância do deserto” (O Livro da Ignorância,
Ponta Delgada, 1988)
“O que somos agora é a
sombra do que somos / em nocturnas letras de um idioma branco.” (Acordes,
Lisboa, 1989)
“Na serena encantação
as paredes resplandecem / e na realeza do instante o espaço
doura-se.” (Facilidade do Ar, Lisboa, 1990)
“Quem grita surdamente /
não pertence / à partitura do tempo. / Quem grita em altos gritos /
não pertence / à sinfonia das nuvens.” (Estrias,
Lisboa, 1990)
“Também de rasgões é
feito o poema / entre uma possível estrela e a carne dolorosa” (A
Intacta Ferida, Lisboa, 1991)
“O trajecto / mais breve
/ de uma sombra a outra / pode ser / outra sombra” (Oásis
Branco, Lisboa, 1991)
“Há uma nudez / que
assombra / há outra / que fulmina / e há a que ilumina” (Oásis
Branco, Lisboa, 1991)
“Oferece o teu hálito ao
presságio / para além do limiar das palavras / para transformar o
segredo incomunicável / na iniciativa de um gesto inaugural” (Pólen-Silêncio,
Porto, 1992)
“Nada mais delicado do
que o tecido do olhar” (Delta seguido de Pela
Primeira Vez, Lisboa, 1996)
“Todo aquele que abre um
livro entra numa nuvem / ou para beber a água de um espelho / ou
para se embriagar como um pássaro ingénuo” (Delta
seguido de Pela Primeira Vez, Lisboa, 1996)
“O livro é redondo como
uma serpente enrolada / e formado de fragmentos onde lateja o sangue
de um pulso / que já não é de um autor que nunca o foi / e que será
sempre o ritmo do que está a nascer / irrigando o nada e os terraços
sobre os abismos” (Delta seguido de Pela
Primeira Vez, Lisboa, 1996)
“Quem escreve nunca está
só na sua solidão de asceta” (À Mesa do Vento seguido
de As Espirais de Dioniso, Guimarães, 1997)
“Somos apenas cúmplices
da nossa inabilidade / e dos ornamentos com que a revestimos / para
parecer que somos e ser o que parecemos” (Pátria Soberana
seguido de Nova Ficção, Vila Nova de Famalicão, 1999)
“A pátria é a ideia mas
também matéria / de ser quotidiano sob o arco do tempo / Ela é a
tranquila vivacidade da obra / que cada um realiza através dos
obstáculos / e a grávida vontade de modelar o mundo” (Pátria
Soberana seguido de Nova Ficção, Vila Nova de
Famalicão, 1999)
“Se a pátria é uma
herança ela é também o espaço que está à nossa frente / em que temos
de projectar as suas dinâmicas linhas / em que vibrará o ritmo do
nosso sangue e da nossa respiração / porque ela será a realidade do
que em nós é a irrealidade do nosso ideal” (Pátria Soberana
seguido de Nova Ficção, Vila Nova de Famalicão, 1999)
“A meditação não é mais
do que a contemplação de uma matéria que contém em si o excesso da
sua energia calma e a densidade materna que envolve todas as
interrogações e torna supérfluo e intruso o pensamento.” (O
Aprendiz Secreto, Vila Nova de Famalicão, 2001)
“Não há segredo mais
supremo nem mais simples do que esta relação vital entre o corpo e o
espaço, entre o alento e a paisagem, entre o olhar e o ser.” (O
Aprendiz Secreto, Vila Nova de Famalicão, 2001)
“O deus do real não está
no interior do sujeito, no círculo fechado da confusa intimidade,
mas no rosto dos outros e é através desses rostos que se perspectiva
a construção humana de uma comunidade viva e essencialmente aberta.”
(O Aprendiz Secreto, Vila Nova de Famalicão, 2001)
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