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Paul Signac

 

anotações

 

(Ruy Ventura)

 

 

O ser humano não consegue suportar a abstracção, porque ela é ou se aproxima do vazio. Do mesmo modo, um hiper-realismo é perigoso, porque se torna na outra face da abstracção total, reduzindo a capacidade de multiplicação de sentidos, inerente a qualquer verdadeira produção artística. Concreto e abstracto, real e irreal são conceitos impossíveis de contornar, difíceis de delimitar e de definir. Seja como for, rejeito qualquer forma artística que limite o enriquecimento do mundo, só edificável na multiplicação infinita de sentidos através da Arte.

 

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Tal como defendiam os cubistas, na poesia o importante não é narrar ou descrever o que vemos ou vivemos (a percepção, mesmo ficcionada, é sempre enganadora), mas introduzir, pelas palavras, uma quarta dimensão na realidade – a do pensamento –, seja ela transcendente ou de outra índole. Ao mundo (social, animal, objectual, humano) acrescenta-se outro mundo – que nasce do nosso conhecimento, empírico ou intuitivo, dessa realidade material ou imaterial, do nosso pensamento sobre o universo, da recepção irracional (?) da adesão de outros universos a esse mundo. A expressão – sem a qual nada existe ou se constrói – não se limita a imitar, a representar; exerce uma prospecção infinita sobre o sujeito escrevente, sobre o ambiente que o rodeia, quer exista quer não.

 

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Na Arte – logo, na Poesia – a realidade não deve ser representada, mas investigada e apresentada, seja uma realidade tangível/visível/material ou uma realidade intangível/invisível/espiritual. Sobretudo, concretizar o inefável e procurar a “espiritualidade” do mundo concreto. Concretizar o concreto ou espiritualizar o inefável é chover no molhado, empobrecendo a Arte.

 

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Uma realidade transcendente pode (e deve) concretizar-se em actos e símbolos mediadores, para favorecer a comunicação, isto é, a comunhão vertical e, de seguida, a horizontal. Não pode (nem deve) submeter-se à imanência, à matéria, à utilidade, ao poder autoritário: desaparece, passando antes pela explosão e/ou pela erosão. Religião, Arte, Poesia, Filosofia podem correr este risco – e correm-no todos os dias. Vale-lhes a heterodoxia dos vencidos...

 

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É preciso descalçar os poemas, mesmo que os pés sejam feios. Evite-se no entanto tirar as botas quando a falta de limpeza lançará para o leitor somente um intenso mau cheiro.

 

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A poesia é para comer (dizia, tanto quanto me lembro, Natália Correia). Logo, a poesia é um alimento. Nesta refeição espiritual, teremos contudo de comer obrigatoriamente apenas sopa (realismo, naturalismo, imanentismo...), por melhor que seja? E os pratos de peixe e de carne? Quem proclama que só a sopa é comestível e aceitável, quer reduzir os leitores à condição de utentes da “Sopa do Sidónio”, ou seja, da “Sopa dos Pobres”...

 

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Cada vez me repugna mais a cedência à erosão no entendimento poético. Já que as pessoas (quem?) não entendem a metáfora nem os símbolos, então temos de dar-lhes coisas “simples”, que de tão “simples” se tornam simplórias... Está a acontecer à poesia o mesmo que já sucedeu ao romance? Banalização?

Um novo paradigma? Duvido. Se for, caminha no mau sentido.

 

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Atracção-repulsa sempre que vou a uma livraria e me aproximo das estantes com livros de poesia. Medo do encontro e das suas limitações? Não. Percepção da periferia.

 

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Por que me sentirei cada vez mais enojado quando ouço ou leio as palavras “poesia” e “poeta”? Talvez por vê-las emporcalhadas, metidas no balde da grande confusão onde tanta gente (por ingenuidadade, por miopia, por relativismo ou por maldade) não consegue distinguir a merda do estrume. Que fazer? Não sei.

 

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Imaginar a partir da realidade e da sua leitura ou construir imagens apenas numa elaboração mental abstracta, desligada? Alguns querem obrigar-nos a escolher... Mas será preciso?

 

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Pratico uma arqueologia que me faz enquanto ser no espaço a que pertenço. Nomes, vestígios materiais, sabores, sentimentos – encontro de tudo enquanto escavo o mundo que me rodeia e o microcosmos que sou. Nada me pertence, mas tudo me pertence a partir do momento em que decido desvelar ou exumar o que antes estava escondido, adormecido, esquecido ou, mesmo, morto. Somos nós os agentes da descoberta e/ou da ressurreição possível – porque, como um dia escreveu Fernando Batalha, “a grande aventura é no interior que se desenrola”.

 

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Destilaria de milhares de leituras (muitas sem nada a ver com a poesia, outras bem longe dos livros ou da palavra escrita), a aguardente que deito do alambique, frouxa ou forte, é o resultado da fermentação e cozedura de sedimentos acumulados sobre a voz e sobre o pensamento.

Dívidas, tenho muitas – tantas sem saber a quem. Fora e dentro dos livros, sei que nunca conseguirei pagar os empréstimos contraídos voluntária ou involuntariamente.

Nem xamã nem periodista, aborrece-me sempre a monotonia das vias-rápidas e das auto-estradas. Tento caminhar por percursos variados e compósitos. E se gosto de deambular por praças e avenidas, sinto-me melhor quando percorro ruas e travessas, quando atravesso com vagar quelhas e veredas pouco frequentadas.

 

 

 

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