anotações
(Ruy Ventura)
O ser humano não consegue suportar a abstracção,
porque ela é ou se aproxima do vazio. Do mesmo modo, um
hiper-realismo é perigoso, porque se torna na outra face da
abstracção total, reduzindo a capacidade de multiplicação de
sentidos, inerente a qualquer verdadeira produção artística.
Concreto e abstracto, real e irreal são conceitos impossíveis de
contornar, difíceis de delimitar e de definir. Seja como for,
rejeito qualquer forma artística que limite o enriquecimento do
mundo, só edificável na multiplicação infinita de sentidos através
da Arte.
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Tal como defendiam os cubistas, na poesia o
importante não é narrar ou descrever o que vemos ou vivemos (a
percepção, mesmo ficcionada, é sempre enganadora), mas introduzir,
pelas palavras, uma quarta dimensão na realidade – a do pensamento
–, seja ela transcendente ou de outra índole. Ao mundo (social,
animal, objectual, humano) acrescenta-se outro mundo – que nasce
do nosso conhecimento, empírico ou intuitivo, dessa realidade
material ou imaterial, do nosso pensamento sobre o universo, da
recepção irracional (?) da adesão de outros universos a esse
mundo. A expressão – sem a qual nada existe ou se constrói – não
se limita a imitar, a representar; exerce uma prospecção infinita
sobre o sujeito escrevente, sobre o ambiente que o rodeia, quer
exista quer não.
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Na Arte – logo, na Poesia – a realidade não deve
ser representada, mas investigada e apresentada, seja uma
realidade tangível/visível/material ou uma realidade
intangível/invisível/espiritual. Sobretudo, concretizar o inefável
e procurar a “espiritualidade” do mundo concreto. Concretizar o
concreto ou espiritualizar o inefável é chover no molhado,
empobrecendo a Arte.
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Uma realidade transcendente pode (e deve)
concretizar-se em actos e símbolos mediadores, para favorecer a
comunicação, isto é, a comunhão vertical e, de seguida, a
horizontal. Não pode (nem deve) submeter-se à imanência, à
matéria, à utilidade, ao poder autoritário: desaparece, passando
antes pela explosão e/ou pela erosão. Religião, Arte, Poesia,
Filosofia podem correr este risco – e correm-no todos os dias.
Vale-lhes a heterodoxia dos vencidos...
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É preciso descalçar os poemas, mesmo que os pés
sejam feios. Evite-se no entanto tirar as botas quando a falta de
limpeza lançará para o leitor somente um intenso mau cheiro.
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A poesia é para comer (dizia, tanto quanto me
lembro, Natália Correia). Logo, a poesia é um alimento. Nesta
refeição espiritual, teremos contudo de comer obrigatoriamente
apenas sopa (realismo, naturalismo, imanentismo...), por melhor
que seja? E os pratos de peixe e de carne? Quem proclama que só a
sopa é comestível e aceitável, quer reduzir os leitores à condição
de utentes da “Sopa do Sidónio”, ou seja, da “Sopa dos Pobres”...
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Cada vez me repugna mais a cedência à erosão no
entendimento poético. Já que as pessoas (quem?) não entendem a
metáfora nem os símbolos, então temos de dar-lhes coisas
“simples”, que de tão “simples” se tornam simplórias... Está a
acontecer à poesia o mesmo que já sucedeu ao romance? Banalização?
Um novo paradigma? Duvido. Se for, caminha no mau
sentido.
*
Atracção-repulsa sempre que vou a uma livraria e
me aproximo das estantes com livros de poesia. Medo do encontro e
das suas limitações? Não. Percepção da periferia.
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Por que me sentirei cada vez mais enojado quando
ouço ou leio as palavras “poesia” e “poeta”? Talvez por vê-las
emporcalhadas, metidas no balde da grande confusão onde tanta
gente (por ingenuidadade, por miopia, por relativismo ou por
maldade) não consegue distinguir a merda do estrume. Que fazer?
Não sei.
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Imaginar a partir da realidade e da sua leitura ou
construir imagens apenas numa elaboração mental abstracta,
desligada? Alguns querem obrigar-nos a escolher... Mas será
preciso?
*
Pratico uma arqueologia que me faz enquanto ser no
espaço a que pertenço. Nomes, vestígios materiais, sabores,
sentimentos – encontro de tudo enquanto escavo o mundo que me
rodeia e o microcosmos que sou. Nada me pertence, mas tudo me
pertence a partir do momento em que decido desvelar ou exumar o
que antes estava escondido, adormecido, esquecido ou, mesmo,
morto. Somos nós os agentes da descoberta e/ou da ressurreição
possível – porque, como um dia escreveu Fernando Batalha, “a
grande aventura é no interior que se desenrola”.