o
peso. a saudade. a despedida
(Ruy
Ventura)
(em Yuste, ante o retrato de Carlos V de Tiziano Vecellio)
colocarás
o peso sobre a arca
onde
guardei a sombra e o coração –
o
navio onde deixei a minha sede,
local
exacto para o sangue e para o medo.
nesse
local crescerá aquela árvore
que
alimenta o fogo e a raiz
de
rosto nunca revelado.
mesmo
no retrato mais nítido,
nada
vislumbro desse horizonte
onde
a água dissolve entre os carvalhos
o
itinerário da última viagem.
coberta
de negro, a câmara deixa passar a angústia –
dissolve
a pedra e a argamassa
entre
colunas e vozes distantes.
não
vale a pena, majestade, verdes
nessa
janela o corpo abandonado.
a
vosso lado permanece inteira
a
perfeição do amor e da doçura.
o
sangue que partiu o recebestes
por
entre as unhas na circulação.
passa
agora pelas vossas veias
como
vinho bebido no inverno.
a
pele de ontem é a vossa pele,
os
olhos de ontem nascem quando vedes
o
sol descendo p’ra lá da fronteira.
ficai
sabendo, senhor, que a dura morte
a
destruístes no dia do encontro.
o
cálice na jornada partilhado
reencontra
entre vós o mesmo rio
que
sabe unir as margens desavindas.
nada
ficou senão poeira. mesmo no retrato
vejo
apenas a minha pele secando,
agarrada
aos ossos que mal amparam
a
luz que tento desenhar.
desejei
Isabel sempre a meu lado,
regando
minha alma com a seiva
que
ardia em seu corpo todo o dia.
tão
pouco irriguei minha memória
com
seus olhos de saudade e encarnação.
quis
o Altíssimo separar da terra
a
melhor semente e o orvalho.
comecei
a secar nesse momento.
e
apenas as tuas tintas e teus traços
conseguiram
ungir o pergaminho
sem
vida para legar ao firmamento.
no
sopé da montanha guardo agora
a
unção do silêncio e da madeira.
registo
na pedra a esperança
de
uma morte sem tempo, com olhar
posto
no cântico que divide a cor,
a
sombra e o movimento.
não
sei quando, mas colocarás
teu
peso sobre a arca do meu peito.
a
teu lado, o ourives escutará
a
imagem da estrela e da trindade.
não
verá teu corpo no ofício
(só
o sopro de tua mão ali estará),
mas
a seu lado a tua voz presente
receberá
meu réquiem, sem palavras.
meu
corpo, à distância, escutará
o
canto do ourives sobre a terra.
meu
sopro terá percorrido
a
última vereda para norte.
num
dia de chuva, descansarei
minh’
alma sobre o sonho e a madeira.
secarei
estes olhos para sempre
na
noite que acompanha a viagem.
partirá
meu corpo nalgum dia
cumprindo
seu destino viajeiro.
mas
nesta terra e nestes carvalhos
ficarão
meu odor, minha palavra,
o
alento que um dia recebi
no
lado esquerdo deste sangue e desta alma.
a
sombra descerá sobre esta casa.
meu
rosto ficará, p’la tua mão,
como
terra que desliza até ao mar.
Isabel
a meu lado enfim estará
brilhando
como água no deserto.
a
imagem é banal – bem sei, amigo –,
não
serve p’ra pintura ou poesia.
nesta
terra deixo a derradeira
expressão
do meu olhar, da minha prece.
as
frases ficam secas, sempre iguais,
como
na guerra – sem
filosofia.
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