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O SONHO COMO MÉTODO
LITERÁRIO (de I a IV)
(Ricardo Carranza)
I
Sonhar é como ver um filme, mas a
diferença entre um e outro é abismal; no sonho somos nós
os protagonistas, e sem a noção de um roteiro.
Assistindo a um filme, somos expectadores passivos
acompanhando a sucessão de imagens comoventes, mas que
estão lá enquanto nós estamos confortáveis na poltrona
de expectador. No sonho somos induzidos a reagir na
situação que nos envolve. Não há introdução, não há
desfecho. O sonho existe como reflexo do sujeito que
sonha.
Ditado pelo inconsciente, a linguagem
dos sonhos possui duas camadas; uma é percebida
diretamente, e outra, oculta, deve ser escavada
metodicamente. A primeira, frequentemente elíptica,
apresenta-se com as informações imprescindíveis através
de imagens fidedignas, comparáveis ao modelo real,
deslocadas de seu contexto e legíveis através de uns
poucos traços de luz. A segunda camada é de difícil
acesso até mesmo aos estudiosos do assunto. E por que
ocultar o que é preciso saber? O sonho tem a função de
nos induzir à vivência de desejos reprimidos. Imagine
uma criança que faz birra para comer. Os pais adotam
subterfúgios, umas brincadeirinhas para que o filho se
alimente. Da mesma forma, o inconsciente faz uso de
artifícios para que experimentemos alguma coisa que nos
é proibida em nosso estado de vigília. No sonho, ao
provarmos a guloseima lembramos que se trata – e como
não havíamos percebido de imediato! – daquela sobremesa
que mamãe nos preparava em nossa ditosa infância. E no
doce simbólico existirá o ingrediente sutil do desejo
reprimido, não raro de natureza sexual.
II
Recente ouvi o relato de um sonho de minha mulher Edite.
Ela estava na presença do pai na residência que acabavam
de construir. O clima era de satisfação porque sabiam
que a partir daquele momento as dívidas seriam pagas. Em
que lugar da casa vocês estavam, especulei? Na sala de
estar. O ambiente era claro? Ela foi lacônica – Sim. E a
aparência de seu pai? – Não sei, disse e
acrescentou com certa relutância, acho que mais moço um
pouco, talvez sessenta anos, mais ou menos. E a roupa?
Como ele estava vestido? Foi taxativa – Não sei. Ficamos
em silêncio. Nesse momento pensei que a morte do pai não
fora plenamente digerida, e muito provavelmente nunca o
será, e o sonho, nas suas imagens literais,
representaria a ponta do iceberg.
A linguagem dos sonhos, como a
boa literatura, é objetiva, atenta ao essencial. No
sonho da Edite, se a roupa do pai não foi notada, assim
como muitos outros detalhes, se eles estavam sentados
numa poltrona ou cadeira, por exemplo, é pelo fato de
ser irrelevante ao objetivo do sonho. Literatura e
sonho possuem muitos pontos de contato: a percepção e o
símbolo, e portanto a condensação, a elipse, e a
estrutura, porque sonho e literatura são sistemas de
detalhes que se articulam no tempo. Quando contemplamos
uma pintura nosso olhar passeia livremente, como quem
observa uma paisagem da janela, no que colhemos uma
sucessão de pontos luminosos que vão, aos poucos, se
constituindo na imagem da pintura, ou da paisagem vista
da janela, que vai ser impressa em nossa memória e que
vai ser reconsiderada no tempo. Mas ao abrir um livro
uma ordem se impõe. São palavras e frases e parágrafos
cuja compreensão depende da observância de um
determinado e único encadeamento. Homero, pai de todos
nós escritores, na sua Odisseia, descreve o acesso de
Odisseu a um palácio mediante o transpasse de sua
soleira dourada. Joyce, cuja obra Ulisses possui certa
relação com a matriz grega, descreve a saída de Bloom de
sua casa, citando apenas que a mão do personagem toca a
maçaneta. Como num sonho, não há menção ao batente,
fechadura, folha da porta, parede, cores, etc. O
conjunto se submete ao detalhe. O encadeamento dos
detalhes é o caminho da narrativa.
Sonhei que o meu cabelo era muito
longo, ralo e luminoso. Eu o penteava e alguns nós na
extremidade dos fios ficavam presos no pente. Como não
poderia desembaraçá-los, esta era a minha intuição no
sonho, eu tentava soltá-los dos dentes do pente. Tal
pente, como acontece frequentemente nos sonhos, não era
visível. Como num jogo de mímica, a ação de mexer no
cabelo era o bastante para a compreensão da presença do
pente (1).
A imagem do longo, ralo, claro e luminoso feixe de
cabelo, era central no sonho. Minha sensação no sonho
era de tranquilidade. Capaz de uma narrativa densa com
uma única imagem, o inconsciente seria o escritor
supremo.
O alto grau de síntese de um sonho é possível porque ele
emerge na consciência. Consciência que entendemos como
auto percepção, o sonho é seu desdobramento simbólico,
uma espécie de recado do inconsciente. E começa com a
adoção de um gancho extraído do real. No sonho da Edite,
o gancho veio de uma reunião sobre o inventário de uma
casa. E não era uma casa qualquer, mas justamente a casa
em que filha e pai atuaram juntos na sua construção.
Dado o contexto, o inconsciente atuou na consciência
onírica da Edite, porque o inconsciente é específico,
cada um tem o seu.
Voltando ao meu sonho, nele eu
sabia que se tratava do meu cabelo, apesar do
comprimento e aparência serem tão diferentes do meu
cabelo real, e de não estarem associados ao meu corpo.
Havia uma dissociação entre cabelo e sujeito. A
linguagem do sonho tem o poder de evocar, como na
ficção, toda a espessura de uma situação complexa
através de um único detalhe. É assim quando vemos uma
pessoa que conhecemos no mundo real. Basta um olhar e
toda a situação é compreendida em profundidade. Diante
da presença inesperada, nosso ânimo velado, para o bem
ou para o mal, aflora de imediato. No sonho da casa,
descrito acima, a situação toda era compreendida, em
profundidade, mediante a imagem do pai. A situação, em
toda a sua complexidade, repito, era entendida ou
intuída, de um golpe: todas as etapas da construção da
casa e a satisfação de sua conclusão, além da imagem do
pai, compreendida com um quase nada de informações
visuais. A linguagem do sonho evoca a imagem de
Hemingway para a literatura: como um iceberg, uma
pequena parte é visível em proporção a grande massa
submersa.
O sonho, com extraordinária
economia de meios, é uma porta de acesso ao
inconsciente, porque nele as coisas nos são apresentadas
diretamente, na sua camada aparente, e compreendidas de
uma vez, e de um único ponto de vista, que é o ponto de
vista do sujeito que sonha, e acima de tudo porque
imagem e símbolo se estruturam como sistema, esta
descoberta inestimável de Sigmund Freud. No sonho, o
sujeito se confronta com situações que lhe escapam do
controle, que rompem com sua autonomia. Muitas vezes são
imagens desagradáveis em flagrante descompasso com sua
percepção objetiva. O que nos é familiar, amistoso, na
vida real, em um sonho pode ser ameaçador. Também um
certo grau de desconhecimento, ou de inocência, estão
presentes no contexto do sonho. Quando acordamos não
temos dúvidas de quem somos e de onde estamos. No sonho
o sujeito não se desloca ao redor do pai ou do cabelo,
mantendo os exemplos já mencionados. Tal procedimento é
o comum no estado de vigília. No sonho não se trata de
uma imagem convencional, portanto, a ser investigada
pela percepção. Não temos esse grau de autonomia porque
no sonho somos, precisamos ser induzidos pelo
inconsciente que toma as rédeas consciente de nossos
desejos reprimidos. Diante de uma pintura, ou paisagem
natural, conforme exemplificamos anteriormente, o
observador se desloca ao seu bel prazer. Em um sonho, a
imagem se faz com poucos traços de luz e de imediato,
insisto neste ponto, sabemos o que vemos: é o meu pai, a
nossa casa, o meu cabelo, deslocadas do seu contexto
original, investidas de conteúdo simbólico. Na realidade
do sonho, as coisas não são o que parecem ser e o que
reconhecemos é sua identidade na realidade do sonho.
Todo sonho é uma montagem de percepção e símbolo.
Voltaremos mais adiante a esse ponto.
Sento na minha poltrona e começo
a leitura de um romance. Leio durante uma ou duas horas.
Continuarei depois a leitura ou abandonarei o livro,
caso a obra não me seja estimulante. Em um sonho a
autonomia normal da vigília é suspensa. O sonho não é
uma escolha. O inconsciente é autoritário como um médico
que nos examina e receita um determinado remédio e que
pode ser amargo. Penso que o inconsciente, como o nosso
bom médico, visa o bem da nossa saúde. Em um sonho somos
induzidos a seguir os acontecimentos, como em um livro,
mas com uma diferença crucial; na literatura, embora o
envolvimento ocorra a ponto de nos emocionar durante as
conquistas e derrotas dos personagens, sabemos que é
ficção. Na literatura, a qualquer momento, e sob
qualquer pretexto, posso largar o livro. Em um sonho é a
nossa vida que parece estar em jogo. A emoção está
presente em um índice elevado e fora do nosso controle.
Nesse aspecto o sonho é um destino. Quem não acordou, no
meio da noite, gemendo, de um pesadelo desesperador?
Lembro que o meu pai, nos últimos anos, tinha um sonho
recorrente. Ele sonhava com um cachorro debaixo da cama.
Não raro acordava, e a nós todos, gritando de medo
pânico. E era sintomático como ele estranhava o fato de
ter tanto medo de cachorro no sonho, sendo que no seu
estado de vigília o cachorro lhe era agradável. No sonho
o cachorro não era um cachorro, mas a aparência de um
cachorro investida de conteúdo simbólico. Esta é uma
questão central na linguagem do sonho. A distância entre
o sonho real e os sonhos na literatura é considerável
como veremos a seguir.
III
Com base nesse breve esboço, consideremos o sonho de
Stephen Dedalus no Ulisses de Joyce. Stephen, na Torre
Martelo, recorda que a mãe lhe aparecera depois da morte
– silenciosamente em um sonho. E nos descreve sua imagem
em largas pardas vestes funéreas, os aromas de – cera e
pau rosa, e – o hálito a cinzas molhadas. O sonho de
Stephen é um primor literário – devido ao grau de adesão
à narrativa e, muito especialmente, quanto às descrições
precisas das vestes da mãe – o visível, o ambiente
dominado pelos aromas e hálito – o olfato sensível, e a
coerência com o perfil do personagem, o jovem Stephen,
alter ego de Joyce, também é um escritor ou, ao menos,
pretenderia sê-lo. Em resumo: o sonho de Stephen é tudo
o que um sonho não é na realidade onírica.
A concepção do sonho da morte da
mãe de Stephen, imagem recorrente no romance, surpreende
pela complexidade sensorial. Eu tive a cabeça terapizada
durante alguns anos e pude colocar a questão numa sessão
mais informal. E a opinião da terapeuta coincidiu com a
minha, sonhos com cheiro devem ser muito raros – se de
fato são mensuráveis. Sou professor há mais de duas
décadas e coloquei a questão à sala; um aluno afirmou,
categórico, que seus sonhos tinham cheiro. E que cheiro,
perguntei? Sei lá, ele disse jogando os braços para o
alto, de um jardim.
Aparentemente Joyce desconsiderou
os avanços da psicanálise em seu tempo. A Interpretação
dos Sonhos, de Freud, é de 1900. Sabe-se, desde então, e
é típico o sonho de meu pai com o cachorro, descrito
acima, que em um sonho as coisas não são o que parecem
ser. Sabemos, pela sua biografia, que Joyce adotava uma
postura muito pessoal em relação à interpretação dos
sonhos. Há uma passagem, pelos menos, em que Joyce, em
carta, se propõe à interpretação de um sonho que ele
mesmo tivera mediante atribuições, a nosso ver,
espontâneas, para não dizer arbitrárias, como veremos
mais adiante. Joyce, literato até a medula, criou o
sonho – de Stephen, conveniente à sua narrativa. Não
propriamente um sonho, mas coerente com seu potencial de
ruptura, o príncipe Hamlet se depara com o espectro de
seu pai, o rei Hamlet, em armas. Depois, nos aposentos
da rainha, o fantasma apresenta-se em camisolão
(In-quarto, 1603). A descrição da vestimenta do rei, na
cena em questão, é suprimida na versão final do Hamlet.
Shakespeare, como Joyce, talvez percebesse que não
cairia bem ao personagem trágico ter a aparência moldada
pela sua vida privada; um rei espectro de camisolão não
seria um personagem trágico.
A imagem em um sonho é semelhante
a um ideograma, tendo em conta que a junção de imagens
rege a síntese. Vale lembrar o exemplo de Décio
Pignatari: sol entre ramos de árvore significando Leste.
(cf. PIGNATARI, Décio. Informação, Linguagem,
Comunicação. São Paulo: Perspectiva, 1968.)
Mas no ideograma, árvore é
árvore, sol é sol. São imagens convencionadas e
necessariamente isentas de ambiguidade. Em um sonho, a
fusão se dá através de uma imagem visível, e outra,
simbólica, oculta. A imagem no sonho é instável, ela não
se fixa porque possui mais de um significado por trás da
aparência. O inconsciente lança mão da ambiguidade como
forma de superar barreiras culturais e assim realizarmos
a vivência de um desejo reprimido.
Na abertura do Ulisses, Stephen,
na Torre Martelo, recorda o sonho com a mãe; e no
episódio Circe, a mãe, em terrífico estado de
decomposição – a cara carcomida e desnasada, verde de
mofo tumbal, retorna para assombrar o filho. No sonho de
Stephen, no início do livro, e depois no ambiente
alucinatório de Circe, a mãe ainda é a mãe e a dimensão
simbólica do sonho é novamente desconsiderada.
Parece-nos razoável pensar que A interpretação dos
sonhos, de Freud, simplesmente não seria adequada ao fio
condutor da narrativa de Joyce.
Sonhos significam ruptura. É um
desafio conduzi-los de forma consistente na narrativa de
ficção. Na Odisseia de Homero, o sonho é representado
pela estadia de Odisseu na terra dos lotófagos. A
ruptura da identidade do personagem se deve à presença
da flor de lótus. Kafka e Borges enfrentaram o desafio
apagando a linha que divide o sonho ou pesadelo da
vigília, como em A metamorfose e Aleph. Lewis Carrol
manteve a distinção entre os dois planos, tanto em Alice
no País das Maravilhas como em Alice Através do Espelho.
Grandes escritores muitas vezes adotam uma abordagem
pessoal na inserção do sonho à narrativa de ficção.
Vejamos alguns deles.
Selecionei um sonho de Joyce documentado em sua
biografia.
“Tive um sonho curioso depois do balé russo. Sonhei
que havia um pavilhão persa com dezesseis quartos,
quatro em cada andar. Alguém cometera um crime, e
entrou no andar de baixo. A porta abria-se para um
jardim florido. Ele esperava escapar, mas quando
chegou à soleira uma gota de sangue caiu nela. Eu
sabia o quanto ele estava desesperado, porque subiu do
primeiro andar até o quarto, esperando que a cada
soleira sua ferida não deixasse cair outra gota. Mas
ela sempre aparecia, um oficial a descobria, e
pontualmente nos dezesseis aposentos a gota caiu.
Havia dois oficiais em trajes de brocados de seda, e
um homem com uma cimitarra, que o vigiava.
Você pode psicanalisar isso?
Eu vou. Os quartos representavam os doze signos do
zodíaco. As três portas são a Trindade. O homem que
cometera o crime sou evidentemente eu. A gota de
sangue deixada em cada soleira era cinco notas de
francos que tomei emprestado de Wyndham Lewis (com
quem Joyce passara a noite anterior). O homem com a
cimitarra representa minha esposa na manhã seguinte. O
pavilhão com treliças azul-claras era como uma caixa.”
(cf. ELLMAN, Richard. James Joyce. São Paulo:
Globo, 1989, p.674.)
Proust, neste sonho em que o personagem Saint-Loup,
depois de uma ruptura com sua amante, aguardava uma
carta ansiosamente, sonha que está sendo traído.
Uma vez em minha casa, vencido pela fadiga, adormeceu
um pouco. Mas de súbito começou a falar, queria
correr, impedir qualquer coisa, dizia: “Eu estou
ouvindo... Não, não faça...”. Despertou. Disse-me que
acabava de sonhar que estava no campo, em casa do
sargento-mor. Este procurava afastá-lo de certa parte
da casa. Saint-Loup havia adivinhado que o
sargento-mor tinha em casa um subtenente muito rico e
muito devasso e que ele sabia que desejava muito a sua
amiga. E de súbito, no sonho, ouvira distintamente os
gritos intermitentes e regulares que a sua amante
costumava soltar nos instantes de volúpia. Quisera
forçar o sargento-mor a levá-lo até o quarto. E este o
retinha para impedi-lo de entrar, enquanto aparentava
um ar ofendido com tamanha indiscrição e que Robert
afirmava jamais poderia esquecer.
– Meu sonho é idiota –
acrescentou sufocado.
(cf. PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido – O
caminho de guermantes, v.3, pag.136. São Paulo:
Globo, 2007.)
Para que o sonho se articulasse à narrativa, Proust
exclui a condensação, a ambiguidade e o estranhamento,
característicos dos sonhos reais, e nos apresenta um
sonho verossímil, razoável, e consequentemente plano.
Gostaríamos de registrar aqui nosso desconhecimento de
sonhos sensíveis ao som, ao menos de nossa parte eles
inexistem. Nossos sonhos são constituídos unicamente de
imagens carregadas de emoção.
Agora comparemos um e outro com este da senhorita
Elvira, um dos muitos personagens desolados do romance
de Camilo José Cela – A colmeia. É um longo e delirante
sonho, mas vamos mantê-lo na íntegra por uma questão de
coerência e porque consideramos sua leitura estimulante.
A senhorita Elvira rola na cama, está desassossegada,
impaciente, tem um pesadelo atrás do outro. A alcova
da senhorita Elvira cheira a roupa usada e a mulher:
as mulheres não cheiram a perfume, cheiram a peixe
rançoso. A respiração da senhorita Elvira é ofegante,
entrecortada, seu sono é violento e desagradável, seu
sono de cabeça quente e pança fria faz o vetusto
colchão queixar-se com rangidos.
Um gato preto e meio pelado,
que sorri enigmaticamente como se fosse uma pessoa e
que tem nos olhos um brilho assustador, atira-se de
uma enorme distância, em cima da senhorita Elvira. Ela
se defende a pontapés, a socos. O gato é atirado
contra os móveis, repica como uma bola de borracha e
salta de novo em cima da cama. O gato tem o ventre
inchado e vermelho como uma granada, e, do furo do
traseiro, venenosa, fedorenta e de mil cores, sai-lhe
uma flor que parece um penacho de fogos de artifício.
A senhorita Elvira cobre a cabeça com o lençol. Em
cima da cama, uma multidão de anões se masturbam
enlouquecidos, com os olhos revirados. O gato se
insinua, como um fantasma, descobre o ventre da
senhorita Elvira, lambe-lhe a barriga e ri em grandes
gargalhadas, umas gargalhadas de tirar o ânimo. A
senhorita Elvira está espantada e o atira para fora do
quarto: tem de fazer um grande esforço, o gato pesa
muito, parece de ferro. A senhorita Elvira procura não
esmagar os anões. Um anão grita “Santa María! Santa
María!” O gato passa por baixo da porta, achatando o
corpo como uma tira de bacalhau. Olha sinistramente,
como um verdugo. Sobe na mesa de cabeceira e fixa os
olhos na senhorita Elvira, com um jeito sanguinário. A
senhorita Elvira não se atreve nem mesmo a respirar. O
gato passa para o travesseiro e lambe-lhe a boca e as
pálpebras, suavemente, babujando. A língua é morna
como uma virilha e suave como o veludo. Desata-lhe a
camisola com os dentes. O gato mostra seu ventre
pelado, que lateja compassadamente, como se fosse uma
veia. A flor que sai do seu traseiro está cada vez
mais viçosa, mais bela. O gato tem a pele suavíssima.
Uma luz ofuscante começa a inundar a alcova. O gato
cresce até se transformar em um tigre delgado. Os
anões continuam a sacudir-se desesperadamente. Todo o
corpo da senhorita Elvira treme com violência. Ela
ofega enquanto sente a língua do gato lambendo-lhe os
lábios. O gato cada vez mais se estica. A senhorita
Elvira vai perdendo a respiração, e tem a boca seca.
Suas coxas se entreabrem, primeiro cautelosamente,
depois sem nenhuma cerimônia...
A senhorita Elvira acorda de
repente e acende a luz. A camisola está empapada de
suor. Sente frio, levanta-se e cobre os pés com o
casaco. Os ouvidos zumbem um pouco e, como nos bons
tempos, os mamilos se mostram rebeldes, quase altivos.
Com a luz acesa, a senhorita Elvira adormece.
(cf. CELA, Camilo José – A colmeia,
pag.284,285,286. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.)
O que nos parece interessante no artifício de Cela é que
ele não pretende ser razoável. O sonho ou pesadelo da
senhorita Elvira é um desfile de imagens, apoteótico,
selvagem. Entretanto nele se desenha, passo a passo, a
transformação do gato em objeto de desejo da senhorita
Elvira a ponto de fazê-la excitar-se. Coerente com a
linguagem dos sonhos, o gato é ambíguo, ainda que
presumivelmente coerente com as necessidades imediatas
de uma senhorita Elvira que, solitária e literalmente
famélica, encontra no inconsciente, traduzido como
pulsão sexual, sua única possibilidade de realização. A
imaginação desenfreada de Cela não seria incompatível
com um Dalí, ao mesmo tempo, se o espanhol Cela tivesse
lido, e talvez o tenha, teria gostado do episódio Circe,
do Ulisses de Joyce.
No cinema, consideramos
fascinantes os sonhos em Morangos Silvestres, de
Bergman, e em O Sacrifício, de Tarkovski. Bergman
concebeu um sonho cuja lógica agrega valores à história,
e, ao mesmo tempo, tem o peso do absurdo. A imagem do
relógio sem ponteiros, a carroça que se desintegra, o
defunto no caixão que estende à mão a Isak Borg que
percebe, aterrorizado, que se trata dele mesmo vivo e
morto, colocam-no, e a nós inclusive, frente ao
inevitável: o tempo não é um fluir contínuo e infinito,
em algum momento ele cessa. Em Sacrifício, último filme
de Andrei Tarkóvski, há uma notável situação
intermediária. De forma hábil, Tarkóvski apaga a linha
do sonho e da vigília, e nem sequer nos antecipa o
sujeito do sonho. Depois da longa e densa sequência do
sonho, Alexander incendeia a própria casa, então síntese
entre símbolo e percepção. Tarkóvski conseguiu, com
maestria, colocar o sonho de ficção no mesmo patamar de
ruptura do sonho real.
Agora relatemos um sonho transcrito tão logo acordei. É
tão óbvio que procuramos ser fieis ao sonho, antes que
desaparecesse, quanto é provável que o preenchimento de
lacunas, que se confundem com a memória do sonho, como
ocorre em todo relato de um sonho seja, mais que
provável, incontornável. Como sempre o real é o que não
para de se bifurcar.
Meu editor esculpia em um tronco de madeira. A
escultura, que tinha a forma dúbia de uma figura humana
– uma cabeça ou o corpo de uma mulher, brotava do tronco
bruto na cor clara da madeira descascada. A escultura
assentava-se no presumível chão. O editor e sua
escultura estavam no centro do ambiente que era fechado,
escuro. A escultura, agora visível na sua totalidade, e
o escultor-editor, percebido com uns poucos traços de
luz e sombra, permaneciam próximos. Havia a intuição da
presença da água. Uma parte de uma grande barra de
chocolate embalada em alumínio surgiu; sem uma
localização espacial definida, ela era percebida como
num close cinematográfico. O editor avançava com o seu
trabalho de escultor. Uma nova parte de uma grande barra
de chocolate, também sem uma localização espacial
definida, e um pouco menor que a anterior, surgia
envolvida em papel azul. Os dois chocolates eram alguma
coisa de muito especial. Eu os via como imaginação no
sonho. A embalagem da segunda barra, e que correspondia
ao papel externo da embalagem convencional de um
chocolate real, estava respingada de água e mal
embrulhava o chocolate o que me deixava intrigado.
Pensava que o chocolate perdera seu valor. O editor, sem
um gesto ou palavra, dizia que isso não tinha
importância e voltava ao seu trabalho com o tronco de
árvore. Um pequeno grupo observava o andamento do
trabalho do editor-escultor, sem que fosse muito bem
delineado no ambiente escuro e inundado, embora a água,
como sempre, fosse apenas pressentida. Eu observava com
interesse o trabalho do escultor-editor com a vaga
sensação de que poderia contribuir, de alguma forma, com
a escultura. O trabalho do escultor-editor poderia ser
retomado a qualquer momento.
IV
Existe algo em comum entre a palavra valise (portmanteau
word) de Lewis Carrol, as aglutinações de James Joyce, o
ideograma chinês e a linguagem dos sonhos? Pela ordem,
Carroll pode ser considerado o pioneiro na adoção de
palavras que formam uma nova palavra, na medida em que
fez dela um método. Joyce fez deste método o núcleo de
seu Finnegans Wake. Em Carroll, entretanto, o sentido da
palavra inventada desloca-se ao nonsense, em Joyce é um
recurso espacial, coisas distantes são deslocadas de seu
contexto encadeando-se à narrativa. Parece improvável
que uma narrativa possa ser conduzida, de forma
coerente, mediante construções verbais ambíguas, mas
Joyce, em alguma medida, conseguiu a proeza no seu
Finnegans Wake. Continuando, o ideograma chinês faz da
associação de imagens a raiz da comunicação de uma ideia
ou um conceito abstrato. Sua representação
gráfica, no longo processo histórico social da
linguagem, assumiu um grau de simplificação que a
analogia, na maioria dos casos, perdeu a conexão formal
com a coisa que a originou. A linguagem dos sonhos
guarda certa semelhança com todos os exemplos até aqui
mencionados e, ao mesmo tempo, possui uma peculiaridade
que a distingue de todos eles. Como o sonho possui uma
função, a vivência de uma emoção reprimida, sem a
anuência do sujeito que sonha, a linguagem dos sonhos é
necessariamente ambígua. Freud nos fala de um sonho em
que chamava uma pessoa pelo nome de outra. Tratava-se de
duas irmãs que Freud conhecia e, no íntimo, as achava
muito parecidas. Freud destacou este sonho como um
exemplo de condensação e deslocamento, características
da linguagem dos sonhos. Mas o que diferenciaria a
condensação e o deslocamento nas palavras valise ou no
ideograma em relação à linguagem dos sonhos? Embora o
aspecto nos leve a aproximá-las, o conteúdo as
contradiz. A linguagem dos sonhos, ditada pelo
inconsciente, adota a percepção justamente para driblar
a atenção do sujeito que sonha. O inconsciente, fazendo
uso de um gancho, que Freud teorizou como sobre
determinação, faz uso de uma situação para
introduzir outra, como as duas irmãs no sonho de Freud,
a casa no sonho de Edite, o pente e o cabelo no meu
sonho, condensando percepção e símbolo para que o
sujeito que sonha possa ter a experiência do desejo
reprimido, admitida sua função necessária à saúde
mental, sem que o sujeito que sonha sinta-se ultrajado
ou perturbado com a constatação do quão pouco
civilizados somos se tivermos consciência de certos
desejos mais profundos. Não resisto à tentação de citar
a tragédia de Édipo que dormia com a rainha, aspecto
exterior, na mais santa ignorância, desconhecendo que se
tratava de sua mãe, o conteúdo profundo dissimulado. Se
Édipo fosse um longo e monstruoso sonho toda a força da
tragédia se desmoronaria no momento que o sujeito que
sonha acordasse. Mas o princípio do sonho, imagens
ambíguas que encerram um desejo reprimido, foram
extraídas de Sófocles por Sigmund Freud. Lacan deu um
passo de gênio desmontando o duplo – percepção e símbolo
no sonho, considerando significante e significado como
unidades autônomas.
(cf. SÁ, Patrícia Noronha de. Tradução
e Interpretação de Sonhos. Disponível em:
https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/22354/22354.PDF).
Recordemos o inexaurível exemplo
de Édipo: a rainha, percepção direta, se desloca de seu
conteúdo simbólico, a mãe do herói trágico. Édipo, em
busca do conhecimento, termina por reconduzi-los,
inconscientemente, à sua condição original. Conscientes
do crime que cometiam, filho e mãe selam o desfecho
trágico.
Sobre a autonomia entre percepção
e símbolo: sonhei que estava enviando um correio que,
por ser muito complicado, não era admitido pelo
funcionário que o recebia. Depois de muitas peripécias,
tão rápidas quanto fugidias, o funcionário resolveu
empenhar-se, e a complicada remessa assumiu a forma de
seu conteúdo exterior: uma porção de formulários em
folhas duplas entremeadas de papel carbono, abas de
envelopes, recibos, enfim, mil folhas que se amontoavam
num calhamaço de pouco volume, por se tratar de um papel
muito fino que lembrava o papel de seda, além de abas de
papel craft que, como é característico da linguagem dos
sonhos, eram visíveis e fugazes, mas sem contribuir para
o volume de papéis que pareciam muito leves e um tanto
espalhados. O sujeito que sonha sentiu-se grato pela boa
vontade do funcionário e pensou em recompensá-lo, mas o
dinheiro – escasso e obtido com dificuldade, e o maço de
folhas que se constituíam na remessa, que
contraditoriamente estava aberta, e não lacrada como são
as cartas em geral, confundia o sujeito que sonha, e o
dinheiro acabou caindo no chão, próximo ao funcionário,
e desaparecendo em seguida. Ainda uma vez o sujeito que
sonha pensou no dinheiro como a correspondência que não
havia chegado ao seu destino e o esqueceu.
Esta, em linhas gerais, a descrição do sonho. Quanto ao
significado, consideramos, livremente, que a carta é a
condensação de duas situações contraditórias: uma carta
que, de fato, esperávamos da aposentadoria, e as
remessas de originais que enviamos a concursos e
editoras. A carta da aposentadoria, necessária ao saque
do benefício, se condensa com as cartas enviadas aos
concursos. Ambas têm como denominador comum o traço
humano de ansiedade. E a aposentadoria representa o fim
de um período, e as remessas o possível começo de um
novo período. Seja qual for a interpretação do sonho do
correio, tratando-se de uma leitura feita pelo sujeito
que sonha, pensamos que o acento tendencioso não é
deliberado. Mas o sonho é real porque se bifurca.
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(1)
Semanas depois de ter escrito este ensaio, estava
lendo a Gramática Normativa de Napoleão Mendes
de Almeida, buscava exemplos de metáfora na seção
figuras de linguagem. Na passagem em que o autor cita
os dentes de um pente, como uma centelha, eu recordei
o meu sonho no qual o cabelo é a imagem central e o
pente, embora o instrumento da ação de pentear, não
era visível. Penso que pelo menos três questões estão
implicadas neste insight. Primeiro, a elipse dos
dentes do pente, que associamos ao ato de morder,
componente agressivo oculto no sonho. Segundo, o papel
da ambiguidade na imagem condensada do sonho: o pente,
que serve para desembaraçar o cabelo não cumpre a sua
função, porque trava nos fios que deveria
desembaraçar, caracterizando a condição de impasse.
Terceiro, em se tratando de um cabelo longo, subsiste
o símbolo da vaidade, e a falta, porque além do pente
é necessário que se desembarace os fios com as mãos –
falta de um necessário apoio? (No filme Baleias de
Agosto, a personagem, bastante idosa, pede à
irmã, igualmente idosa, uma confirmação sobre a beleza
de seus cabelos – se eles ainda são tão bonitos quanto
as penas de um ganso. Aqui, para a personagem, a
vaidade é um de seus últimos redutos de vida.)
Publicado com
autorização do autor.
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