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O
FLIBUSTEIRO
(Vincenzo
Quillici)
Foi
um pouco antes do jantar, depois de vir do escritório, que o Basile
teve a certeza de que era cornudo.
Era
uma segunda-feira. Basile – Basile Cambon, como o grande homem de
Estado – saía sempre depois de todos os empregados se
despacharem. A menina Capitoline, a dactilógrafa e recepcionista,
dissera-lhe como sempre com os seus olhinhos de carneiro mal-morto:
“Quer que feche, senhor
Basile?”. E ele, como sempre, respondera: “Não,
deixe estar. Vá andando que eu depois fecho tudo”. Toda a
gente, desde o Rimet, o estarola que também fazia as vezes de
caixeiro-viajante quando calhava, até à madame Sidonie, que a Casa
herdara da anterior gerência, sabia que ela estava apaixonada por
Basile, mas ele só se servia disso para lhe atirar para cima do
lombo uns leves trabalhitos inadiáveis. Também toda a gente sabia
que o patrãozinho Cambon, sucessor do velho Ignace, gostava muito
da esposa, a dona Renate filha dos Blondine das ourivesarias. Nem
constava que ele se desalinhasse até quando ia, o que aliás depois
do casório se tornara muito raro, aos serões das Folie Bergères.
Às
vezes até se davam ao trabalho de falar no casal perfeito que eram
Basile e Renate.
Comeu
a refeição quase em silêncio. De vez em quando, entremeado na
escassa conversa, um olhar saltava em direcção à face da esposa,
que com os lábios vermelhinhos e os cabelos arruivados aguentava
muito bem uma segunda e até uma terceira mirada. E o peitinho de
rola até lhe arfava, ela que era dada a fagueirices como Basile
muito bem sabia.
Aí
por volta da sobremesa, Basile percebeu quem era o destruidor do seu
lar: o Patrice, evidentemente, o tal que nas festas de aniversário,
de Carnaval e de antigos alunos do liceu, tinha o hábito de pôr um
monóculo e de imitar o Maurice Chevalier. Um tunante, é claro, mas
sabe-se como as senhoras românticas se pelam por tal género de
energúmenos.
Ainda
tentou dizer para si mesmo que ninguém iria reparar, que tal coisa
era na cidade o pão nosso de cada dia, que muitos dos seus
conhecidos também participavam de tal estatística. Mas nada o
consolava. Sentira assim como uma cabeçada no plexo solar e, quando
passara a Renate a tacinha da compota, até as mãos lhe tremiam.
Com
a classe herdada de seu pai, um homem honrado dos pés à cabeça,
fez que não reparava na evidência da traição. Mas o coração
estalava-lhe de comoção camuflada.
Foi
para o escritório, sem mesmo uma palavra para a esposa, que aliás
nem se deu conta do gesto: pairava noutros universos, claro, e o
nariz reluzia-lhe sem embaraços.
Passou
as mãos pelos seus velhos livros, seus companheiros de aventura. Do
armário tirou os calções de pano grosso, o casacão de alamares,
o chapeirão e o sabre. Ajustou, depois de bem enfarpelado, o par de
pistolas em cruz no cinturão largo de couro com a grande fivela de
prata. O papagaio estava, como sempre, no poleiro da cozinha: foi só
tirá-lo de lá e colocá-lo sobre o ombro.
Estava
pronto. Desceu ao quintal, o quintal grande e arborizado que a mãe
Cambon tanto ornamentara e melhorara. Acenou para o seu imediato,
com a larga mão aberta, o sinal de zarpar. E desta vez é que já não
voltaria.
Assim
como assim, afinal, no fundo nunca gostara muito de Paris.
(in “Contos do
Parque”)
(Tradução
de Nicolau Saião)
Nota: Amedée
Vincenzo Rouard Quillici nasceu
em Aubagne em 1967. Vive actualmente no Québec.
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