SONETO
De
minha pátria os muros eu mirava,
feitos
outrora, e então desmoronados;
da
carreira do tempo já cansados,
da
qual sua bravura caducava.
Saí
ao campo, e vi que o sol tragava
os
arroios do gelo desatados;
e
pelos montes a queixar-se os gados,
pois
com sombras ao dia a luz furtava.
Entrei
em casa, vi que, amarfanhada,
era
os despojos de um antigo lar,
meu
báculo mais curvo e menos forte;
vencida
pela idade a minha espada,
e
não encontrou coisa o meu olhar
que
lembrança não fosse já da morte
APRECIANDO
O AUTOR A SOLIDÃO E OS SEUS ESTUDOS
Retirado
na paz destes desertos,
com
poucos, porém doutos livros juntos,
vivo
em conversação com os defuntos,
os
mortos a escutar com olhos certos.
Se
não sempre entendidos, sempre abertos,
emendam
ou secundam meus assuntos,
e
em musicais, calados contrapontos,
ao
sonho de viver falam despertos.
Grandes
almas, que a morte nos suprime,
das
injúrias dos anos vingadora,
o
alto saber liberta que se imprime.
Escapa
em fuga irrevogável a hora,
mas
aquela o melhor cálculo estime
que
na lição e estudos nos melhora.
A
ROMA SEPULTADA EM SUAS RUÍNAS
Roma
buscas em Roma, ó peregrino,
e
não achas em Roma a mesma Roma:
por
um cadáver estes muros toma,
e
de si próprio túmulo o Aventino.
Onde
reinava jaz o Palatino;
gasta
o tempo as efígies e as retoma,
e
das batalhas o destroço assoma
mais
das idades que brasão latino.
Só
o Tibre ficou, cuja corrente,
se
cidade regou, já sepultura
chora-a
com um funesto som dolente.
De
tua glória, ó Roma, e formosura
fugiu
o que era firme, e hoje somente
o
fugitivo permanece e dura.
AMANTE
AGRADECIDO COM AS LISONJAS MENTIROSAS DE UM SONHO
Ai,
Floralva, este sonho me ocorreu. –
Digo-o?
Sim, pois foi sonho: eu te gozava.
E
quem, senão o amante que sonhava,
Juntara
tanto inferno a tanto céu?
Meu
fogo à tua neve e ao gelo teu,
Como
flechas opostas numa aljava,
Mesclava
o amor, e honesto é que os mesclava,
Mais
meu espanto, no desvelo seu.
E
eu disse: “Queira amor, ou queira a sorte,
Que
eu não durma jamais, se estou desperto,
Ou
durma, e não desperte – não me importo. ”
Mas
despertei do doce desconcerto,
E
vi que estava vivo com a morte,
E
vi que com a vida estava morto.
LETRILHA
SATÍRICA
Poderoso
cavaleiro
É
Don Dinheiro.
Ai
mãe, ao ouro me atrelo:
Meu
amante e meu amado;
Pois,
de puro enamorado,
Anda
sempre de amarelo;
Que,
pois, ou gordo ou magrelo,
Faz
tudo aquilo que quero,
Poderoso
cavaleiro
É
Don Dinheiro.
Nasce
nas Índias, honrado,
E
de lá o mundo o acompanha,
E
vem cá, morrer na Espanha,
Sendo
em Gênova enterrado;
E,
pois, quem o traz ao lado,
Não
é feio, mas faceiro,
Poderoso
cavaleiro
É
Don Dinheiro.
É
galante, é como um ouro,
E
tem matizada a cor;
Pessoa
de alto valor,
Tanto
cristão quanto mouro,
Pois
dá e toma o decoro,
E
derruba um foro inteiro,
Poderoso
cavaleiro
É
Don Dinheiro.
São
seus pais os principais,
E
é de nobres descendente,
Porque
nas veias do Oriente
Todos
os sangues são reais;
E,
pois, é quem faz iguais
O
grão duque e o pegureiro,
Poderoso
cavaleiro
É
Don Dinheiro.
Mas
quem não se espanta e pela
De
ver, glorioso e sem tacha,
Que
em seu círculo se encaixa
Dona
Blanca de Castela?
Porém,
que ao baixo dá sela,
E
o covarde faz guerreiro,
Poderoso
cavaleiro
É
Don Dinheiro.
Seus
escudos e armas nobres
São
sempre tão principais
Que
sem seus escudos reais
Só
há escudos de armas pobres,
E,
pois, que juntando cobres
Dá
cobiça ao próprio ferro,
Poderoso
cavaleiro
É
Don Dinheiro.
Por
contar tanto nos tratos
E
dar tão sérios conselhos,
Até
nas casas dos velhos
Gatos
o guardam de gatos.
E,
porque rompe recatos
E
abranda o juiz mais severo,
Poderoso
cavaleiro
É
Don Dinheiro.
E
tem tanta majestade
(Mesmo
entre desgostos fartos),
Que,
se o transformas em quartos,
Não
depõe a autoridade:
Antes,
pois dá qualidade
Ao
mais grandioso e ao rasteiro,
Poderoso
cavaleiro
É
Don Dinheiro.
Nunca
vi damas ingratas
Aos
seus gostos e afeições,
Que
ante as caras dos dobrões
As
suas fazem baratas;
E,
porquanto faz bravatas
Com
sua bolsa, matreiro,
Poderoso
cavaleiro
É
Don Dinheiro.
Mais
valem em qualquer terra
(Observa
o quanto é sagaz!)
Os
seus escudos na paz
Do
que mil broquéis na guerra,
E
que, se ao pobre ele enterra,
E
faz próprio o forasteiro,
Poderoso
cavaleiro
É
Don Dinheiro.
LAMENTAÇÃO
AMOROSA E DERRADEIRO SENTIMENTO DO AMANTE
Não
me aflige morrer, nem recusado
Tenho
o fim do viver, ou pretendido
Alargar
esta morte, que nascido
Com
ela e a vida foi o meu cuidado.
Sinto
ter de deixar desabitado
Corpo
do amante espírito querido,
Deserto
um coração sempre incendido,
Onde,
reinando, o amor foi hospedado.
Meu
ardor dá sinais de fogo eterno,
E
de tão longa e sofredora história
Há
de ser escritor meu pranto terno.
Lisi,
está a me dizer ora a memória,
Que
se tal glória eu a padeço inferno,
Que
chame ao padecer tormentos glória.
PERSEVERA
NA EXAGERAÇÃO DE SEU AFETO AMOROSO E NO EXCESSO DE SEU PADECER
Da
alma nos fundos claustros a ferida
Calou-se;
mas consome árdua e febrenta
A
vida, que nas veias me alimenta
A
chama das medulas estendida.
Bebe,
hidrópica, o ardor a minha vida,
Que
ora cinza amorosa e macilenta,
Cadáver
do formoso incêndio, ostenta
Em
fumo e noite sua luz perdida.
À
gente fujo, e horror suponho o dia;
Dilato
em largas vozes negro pranto,
Que
a surdo mar a minha pena envia.
Entre
os suspiros vãos da voz do canto,
Na
confusão minha alma se extravia,
Meu
coração é reino só do espanto.
PROSSEGUE
NO MESMO ESTADO DE SEUS AFETOS
Meu
senso ocupa amor e os meus sentidos:
Absorto
estou em êxtase amoroso,
Não
me concede trégua nem repouso
Esta
civil peleja dos nascidos.
Espraiou-se
o caudal dos meus gemidos
Pelo
grande distrito, e doloroso
Do
coração, em seu penar ditoso,
E
afogou-me as lembranças em olvidos;
Ruínas
sou todo, e todo padecer,
escândalo
funesto dos amantes
que
de lástima fazem seu prazer.
Os
que hão de ser e os que já foram antes
Comparem
sua saúde ao meu gemer
E
invejem minha dor, se são constantes.
ZOMBA
DOS QUE COM OFERTAS QUEREM GRANJEAR DO CÉU PRETENSÕES INJUSTAS
Para
comprar os fados mais propícios,
Tomas
a divindade por vendeira
E
vais com o melhor touro da ribeira
Ofertar
cautelosos sacrifícios.
Pedes
felicidades aos teus vícios;
E
para a tua nau rica e usureira
Vento
dosado e onda lisonjeira,
Merecendo
bem antes precipícios.
Para
que exceda a conta teu tesouro,
Tua
ambição, não Júpiter enganas,
Que
deitou as montanhas sobre o ouro.
E,
quando a ara no quente sangue banhas,
Escrutas
as entranhas de teu touro,
E
está escrutando Deus tuas entranhas.
CHAMA
PELA MORTE
Vem
já, medo dos fortes e dos sábios,
Dirá
a alma indignada com gemido
Já
entrada nas sombras, e do olvido
Se
fartarão enfim meus secos lábios.
Por
tal maneira Cúrios, Décios, Fábios
Foram;
por tal há de ir quanto é nascido;
E,
se queres a alguém ser merecido,
Com
a vida põe fim aos meus agravos.
Esta
lágrima ardente com que miro
O
negro cerco, que afinal me acua,
É
natureza só, não sentimento.
Com
o primeiro ar este suspiro
Comecei,
e o pesar meu se conclua,
Porque
me deva todo ao monumento.
(Traduções
de Renato Suttana)
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