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POR QUE NÃO SOMOS
ESCRITORES
(Renato Suttana)
(Páginas de um diário íntimo)
Quando as pessoas me falam de ter uma carreira de
escritor, de tomar parte no chamado mundo das letras,
e de me tornar conhecido nos meios, a impressão que me
vem é de que me convidam a escalar uma montanha tão
medonhamente alta e vasta quanto o Everest.
Definitivamente, pelo meu modo de vida e pelas minhas
características de personalidade, estou excluído desse
mundo e só posso olhá-lo a partir de fora, através de
janelas — muito embora tenha me preparado a vida inteira
para entrar nele. Há, pois, como em tudo, essa imensa
distância separando o querer e o realizar — não
obstante, no meu caso, eu não esteja certo de que quero
realmente entrar. Talvez queira apenas a literatura, que
muito raramente serve como salvo-conduto ou passaporte
para entrar onde quer que seja, quanto menos no referido
mundo das letras.
Há a vida nos chamando o tempo todo e nos desviando para
todas as direções. E há sobretudo as dificuldades, os
entraves e as impossibilidades que são características
da atividade de escrever e que, na maioria das vezes,
nos humilham e rebaixam até o ponto do desaparecimento.
Não é exagerado dizer que somos rebaixados e lançados ao
chão a cada poema que falha, a cada obra que se frustra,
a cada livro que não chega à publicação. Ademais, quem
se conhece a si mesmo e se compreende, tendo já
perscrutado por dentro o trabalho da escrita, sabe muito
bem que não há do que se orgulhar, pouco importando que
o mundo das letras seja feito geralmente de
vaidades e orgulho — poeira e vento —, os quais nem
sempre são proporcionais à qualidade da literatura
produzida pelos que nele penetram. Antes, quem se
conhece e meditou com sinceridade e desassombro sobre as
implicações de escrever, tende a hesitar na entrada, sem
saber se deve entrar ou se deve permanecer do lado de
fora — não raro propendendo mais a fugir do que a
colocar os pés ali dentro.
Por outro lado, frequentemente o que nos impede de
entrar não é a humildade (embora o esforço da escrita
nos humilhe cotidianamente, dadas as suas
peculiaridades), mas o nosso imenso orgulho. Porque é só
por orgulho que não entramos ou não queremos tomar parte
nesse luminoso mundo das letras — onde escrever
se converte às vezes numa atividade brilhante e o seu
tanto mundana, num sentido específico, e onde ser um
autor é vestir cotidianamente a fantasia do criador
(inspirado), a qual, se olhada de perto, em nenhum ponto
corresponde à realidade. Criar é, quase sempre,
atirar-se no vazio, sem rede de proteção ou paraquedas.
Faz parte da ideia de ser escritor — o que quer que isto
signifique — a injunção que nos obriga a carregar
cotidianamente uma espécie de fardo, que em muitos
aspectos se assemelha a uma cruz. Dessas coisas, porém,
o mundo das letras não se ocupa muito amiúde,
até porque há outras tarefas a executar, mais
interessantes talvez, não havendo tempo a perder com
assuntos de metodologia, angústias pessoais e,
sobretudo, questões de princípio.
De fato, só não entramos porque sabemos que dentro não
seremos bem-vindos ou correremos o risco de sermos
duplamente humilhados — e não o digo para desanimar os
principiantes. Haverá sempre uma mundanidade dos gestos
e dos atos a serem copiados nesse interior. Haverá o
brilho e o rumor e essa imensa distração que, se até
certo ponto beneficia a literatura, pode também
confundir os autores. Mas, se estivermos realmente
ocupados escrevendo, teremos também de nos dar conta de
que é necessário fugir aos serões e às assembleias, de
nos esquivarmos das festas e homenagens, das reuniões
deliberativas, e teremos de faltar aos chazinhos das
tardes e driblar as intermináveis discussões sobre as
dificuldades financeiras da instituição ou sobre a
necessidade de melhorar as receitas, etc., que consomem
enormes parcelas de tempo — tudo isso implicando, por
seu turno, um novo e talvez mais pesado quinhão de
humilhações e fadigas, ao mesmo tempo em que tende a se
difundir publicamente como sendo a verdadeira imagem do
que é ser escritor.
No mais, devemos reconhecer, sempre, que ali dentro não
seremos meros escritores, mas indivíduos civis, a que os
outros chamarão de autores e que os estudantes
tentarão entrevistar — com uma obra, ai de nós!, bem ou
mal realizada a ser incluída em nosso portfólio. Ou,
senão, permaneceremos do lado de fora, imersos neste
outro mundo de aqui, a que chamamos realidade.
Pensaremos que podíamos ter entrado para nos tornarmos
alguém de prestígio, em virtude da realização de
qualquer obra literária. Mas realizar uma obra é só um
outro nome para o naufrágio — desta vez neste outro mundo
(um oceano) onde todos vogamos à deriva.
3-5-2017
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