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POESIA, FALSO
MISTÉRIO, RESISTÊNCIA
(Renato Suttana)
(Páginas de um diário íntimo)
O sentimento de falso mistério na poesia é uma coisa
bastante nociva, porque em geral dissimula uma intenção
de trapacear. Há o verdadeiro mistério, que advém quando
o poeta faz dele uma espécie de meta a perseguir, porque
precisa dele para estruturar a sua percepção do mundo e
da própria poesia. Sua linguagem, então, se dá a ver
como perquirição ou sondagem do desconhecido, mergulho
no incompreensível, como ocorre em certos poemas de
Blake, Fernando Pessoa ou W. B. Yeats. No entanto o
mistério insinuado quando não se tem intenção
(minimamente sincera ou consequente) de perscrutá-lo, ou
quando não se têm condições de sustentar uma atitude
razoável diante dele, ganha um aspecto de farsa: é,
apenas, o mistério fingindo-se mistério e tentando se
expressar com palavras forçadamente misteriosas.
É o que se nota, por exemplo, quando o falso
perscrutador descreve em poesia algum evento ou alguma
atividade que o levou à meditação sobre a arte. Tal
meditação, sendo geralmente sugerida pelo encontro com
outros escritores ou com a obra desses escritores, nada
mais é, muitas vezes, do que uma imitação esmaecida da
profundidade — ou de uma profundidade que não se pode
sondar, porque não se tem sequer uma noção de onde ela
esteja. Tudo se passa como se o imitador nos dissesse:
“Vejam, há alguma coisa misteriosa aqui, que eu não sei
bem o que é, mas que vocês, seja como for, haverão de
intuir por si mesmos, bastando que eu diga a vocês que
ela está aqui e que, sobretudo, eu sugira a vocês em
forma de versos pouco poéticos o tipo de emoção que ela
despertou em mim. No final, espero que a suscite em
vocês também.” E o resto é a prosa de sempre, agravada
pelo excesso de elipses, anacolutos, descontinuidades e
emoções sugeridas cuja intensidade não podemos aquilatar
(mas que tudo leva a crer que seja mínima, pois de outro
modo evocaria uma resposta poética qualquer).
Falsos mistérios prejudicam a poesia, todos sabemos,
embora os poemas falsamente misteriosos não possam
prejudicá-la. Os poetas parnasianos, que viam beleza em
coisas que eles não compreendiam bem, costumavam
escrever bons poemas, embora a beleza ou o mistério
daquilo que insinuavam não os pudesse ajudar. (Vide os
poemas de Alberto de Oliveira sobre a arte grega
antiga.) Os românticos se extasiavam diante da natureza,
e seus leitores provavelmente se extasiavam também (ou
fingiam extasiar-se, já que é de supor que muitos não
tivessem tempo para contemplações). Porém nós, do século
XXI, perdida a capacidade de nos extasiarmos com o que
quer que seja, já não nos emocionamos com os seus
arroubos e lemos os seus poemas por outras razões que
pouco têm a ver com o sentimento que os gerou ou que
pretendem exprimir (e disso os eruditos entendem bem).
Mas um poeta que escreve como se se emocionasse
é geralmente um sujeito aborrecido, e aqueles que
insinuam mistérios o são duplamente — haja vista essas
coleções intermináveis de poemas sobre viagens, lugares,
museus e obras de arte que surgem todos os dias e que só
não perecem tediosos para os seus próprios autores
porque, afinal, eles estiveram lá e se emocionaram com
alguma coisa. (Quem nunca leu um deles em sua vida?)
Vejam: aqui está João Cabral de Melo Neto com suas
pedras e suas facas, e aqui estão as belas lições que
podemos tirar de seus livros. Aqui está um belíssimo
poema de Carlos Drummond de Andrade sobre não sei o quê,
e aqui os meus sentimentos frente a ele — embora eu não
seja Drummond, e embora fosse muito mais adequado que eu
escrevesse os meus próprios poemas. No entanto escrever
os próprios poemas não está ao alcance de todos, uma vez
que não se pode fingir a emoção (embora se possa
pintá-la fingidamente); e há que considerar que as
emoções (ou os pensamentos ou a profundidade da
percepção) alheias nada podem carrear para dentro do meu
poema — e o leitor já está ocupado demais vivendo a sua
própria vida para se preocupar com tais coisas. Então a
esperança é de que a insistência produza frutos algum
dia. A expectativa é de que, colocando-me ao lado dos
fortes (como se fazia nos pátios das escolas
antigamente), eu também me tornarei forte e enfim serei
recompensado. Para todos os efeitos, não posso crer que
a Musa me traia nesse ponto — que ela me tenha trazido
pela mão até aqui (onde me tornei uma espécie de aficionado
ou viciado em poesia) para depois me abandonar,
dizendo que o resto do caminho eu deverei percorrê-lo
sozinho.
Poetas citadores — é como poderíamos chamar esse gênero
de autores. Mas acontece também que a citação se tornou
uma espécie de vício da época contemporânea, e aqui nada
podemos fazer. (Lembremos o conceito de intertextualidade
que ensinamos aos estudantes nos cursos de Letras,
tratando-o como se fosse uma coisa muito boa e útil.)
Vem das escolas, vem do modo como se educam os
estudantes para a literatura hoje em dia. Aprende-se nas
universidades e nas revistas de literatura, onde a
poesia é tratada sempre como se fosse um estado de
espírito, uma essência especial da linguagem ou um
efeito de certo modo de arranjar as palavras que, uma
vez decifrado, não deve mais atrair nossa atenção. Tudo
se resolve com o domínio de determinados truques (embora
a poesia se recuse sempre a ser só o efeito de algumas
citações). Eis, portanto, o ponto a que nos conduz a
prática da falsa contemplação dos falsos mistérios, que
não se sabe se estão lá realmente, mas que se insiste em
abordar.
*
De qualquer modo, todo poema que nos dá a impressão de
que poderia ter sido escrito de outra maneira
falhou em atingir o seu propósito. A poesia tem sempre
alguma coisa de uma necessidade. Ocorre (ao autor e ao
leitor) como uma fatalidade: ela não oferece
alternativas e tampouco as sugere. O poema é aquilo que
nos dá a ver a poesia. Quando não alcança dá-la
a ver, somos levados a pensar que ela esteja em outro
lugar ou que não tenha se realizado como tal. Certa
poesia de baixa voltagem dos dias correntes nos faz
inevitavelmente supor, quando a lemos, que as coisas não
estão em seus lugares corretos. Ora é o poema em versos
livres que nos induz a pensar que teria sido melhor se
tivesse sido escrito em versos medidos, ora é a métrica
frouxa, desleixada e claudicante que nos faz perguntar
se não se trata mesmo de versos livres, embora a
insistência em repetir um padrão de medida se faça notar
(até o ponto de se tornar constrangedora ou intrusiva).
No entanto, tudo isso só encontra solução quando o poeta
se entende com a Musa, que é teimosa e às vezes insiste
em não comparecer ao convescote.
Talvez seja por isso que toda vez que as pessoas se
reúnem para falar de poesia (como se tornou comum nestes
dias de quarentena, com os encontros via internet), elas
falam de outra coisa — seja lá o que for, mas
nunca tratam da poesia diretamente. Discutem-se temas e
assuntos. Fala-se da vida, dos projetos editoriais, das
questões sociais e das identidades (como se aprecia
tanto fazer nos meios eruditos), porém nunca se comete a
inconveniência (nem se tem o desplante) de perguntar a
alguém se aquilo que ele faz é de fato poesia ou
se ele — esse debatedor que se interessa por tantos
assuntos — tem certeza de que o que escreve contém
qualquer coisa que se aproxime dela. Falar de poesia é,
em tais ocasiões, sempre falar de um terceiro ausente,
de um hipotético "se" que, como aquele gato da física,
pode ou não estar lá. (Mas ninguém abrirá a caixa para
se certificar de que realmente esteja.)
*
O debate atual sobre a representatividade social da
poesia, sua relevância cultural e o seu poder de
expressar anseios coletivos deságua num equívoco. A
palavra resistência está na moda, mas o modo de
resistência proposto por quem julga ser este o papel da
palavra poética no mundo contemporâneo nos soa bem mais
como uma exortação à adesão. A poesia resiste, de algum
modo, mas só na medida em que preserva em si um
princípio de excelência íntima, de fervor pelo
imaginário e pela linguagem e de respeito à memória, às
aspirações e às tragédias coletivas de todos os tempos.
Isso a impede, pelo menos, de ser arrastada pelos
processos de polarização política, de publicização
desmedida de seus conteúdos e desmantelamento de suas
qualidades linguísticas — dos quais os críticos se
queixam hoje, ao ler a produção poética do mundo.
Do contrário — supondo-se resistente seja ao que
for — a poesia apenas adere às forças sociais e
culturais (temas, palavras de ordem, urgências
políticas, agenda setting) que inundam o debate
público da atualidade. Mas nada disso oferece, de fato,
qualquer resistência, a não ser aquela baseada num
desejo de tomar a posição política mais justa e
recomendável. Quem o faz, percebe-se, “flui” pelas
redes e pelos canais de comunicação disponíveis, flutua
sobre o caudal infinito da opinião e da polêmica, que
vai dar ao mar do esquecimento. Por outro lado, aqueles
que prezam por qualquer coisa que se aproxime do que se
poderia chamar de uma intransigência formal, ou respeito
à memória coletiva, ou devoção pelo imaginário, esses
evidentemente não terão opção a não ser permanecerem à
margem. (O que não quer dizer que também não serão
arrastados pelo fluxo quando as águas subirem.)
30-6-2021
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