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POESIA, CRÍTICA,
PALAVRA (IV)
(Renato Suttana)
IV
A noção de palavra — qualquer que seja o sentido
a atribuir a esse termo — é bastante duvidosa, para não
dizer arbitrária, quando aplicada à obra literária.
Dizer que um poema é feito de palavras soa mais ou menos
como dizer que uma casa é feita de tijolos (ou qualquer
outro material); mas todos sabemos que uma casa não é
uma simples armação — um objeto — feita com tijolos,
metal, madeira e vidro. Embora o conceito de casa, em
geral, possa e deva implicar a presença desses
elementos, é correto pensar que o que entendemos pelo
termo remete a outras instâncias da experiência nas
quais as noções de construção e de materiais só entram
como elementos coadjuvantes. E a casa tem a
vantagem de remeter, em nossa mente, a um certo arranjo
material de coisas (concretas) que nos permite, ao
menos, formar uma imagem mental do objeto.
A poesia, no entanto, carece de semelhante suporte
(material) e, sempre que a mencionamos, tudo o que
alcançamos evocar é um conjunto (ou um tumulto) de
experiências a que aplicaremos um nome. Nesse conjunto,
considerando-se a experiência da leitura, uma certa
constância se manifesta, a qual remete à recorrência do
verso, da linguagem figurada e de outros fenômenos de
linguagem. Outras instâncias — que não sabemos definir
bem ou sequer podemos definir — ficam no entanto
subentendidas. E podem ser tão fundamentais que não
temos sequer ideia do modo como se relacionam com a
linguagem em si. Daí, portanto, se percebe a inadequação
que há em tentar definir a poesia (e a literatura)
recorrendo apenas à noção de linguagem (ou de palavra) —
a qual, se calhar, não tange nela coisa alguma de
fundamental (o que é o mesmo que dizer que um quadro de
pintura é apenas uma tela recoberta com manchas de tinta
— que ele é, de certo modo, mas isso não define a
pintura).
Isso não significa que não se deva refletir sobre a
poesia e sua natureza ou tentar defini-la nos termos
daquilo que chamamos de uma linguagem racional,
pois esse exercício terá, sempre, alguma coisa de
frutífero. Porém sentiremos sempre, acompanhando esse
esforço, o incômodo de pensar que, seja como for, a
tentativa de conceituar a poesia nada acrescenta a ela —
e não temos certeza de que se trata mesmo de algo que se
possa ou se deva conceituar. O fato de ela se apresentar
como alguma coisa que repele as definições (ou que delas
se esquiva) deveria nos ensinar sobre ela e sobre a
vida, tal como nos ensina sobre os limites e as
limitações da nossa própria linguagem. A poesia existe
— é o que tendemos a pensar, frequentemente. E basta que
exista para que ela, de certo modo, lance alguma
claridade sobre a nossa existência. E aqui não se deve
insistir muito nas tentativas de concebê-la como um
objeto passível de ser compreendido fora da experiência
a que ele (concebido como objeto capaz de receber um
nome) remete ou com a qual se conecta.
Talvez um dia venhamos a compreender a poesia não como
um tipo ou uma categoria da experiência que devamos
tratar sob a perspectiva de uma crítica, mas como um
modo da experiência que nos altera sempre que tomamos
contato com ele. A isso, portanto, se deveria remeter,
quando se enuncia o termo — poesia — sem pretensões de
abuscar dele até o ponto de pretender criar uma crítica,
ou uma linguagem específica para tratá-lo e
conceituá-lo. Cabe não tentar invadir os seus domínios
com instrumentos que são estranhos à sua natureza.
3-7-2021
V
A crítica literária trabalha com subentendidos. O fato
de haver nela tantos subentendidos mostra que a sua
atividade é da mesma natureza (imaginativa e fictícia)
que a da própria literatura — sobre a qual ela se
debruça nos seus estudos, em busca de compreensão. Mas o
que a distingue da literatura é o desejo, sempre
irrealizado, de falar outra linguagem: a da ciência, a
da sociologia, a da história ou da psicanálise, sempre
embargada pela sua natureza fictícia (cheia, pois, de
subentendidos).
A prova disso são os títulos pretensamente poéticos que
se aplicam hoje em dia a tantos estudos acadêmicos
publicados em todos os lugares e a linguagem falsamente
artística e sugestiva com que alguns de seus cultores
escrevem ensaios e resenhas. Querem ser poetas também?
Mas tudo isso é, no fim, simplesmente enjoativo, e a
impressão que se tem é de que se deve sair dali o mais
rápido possível, para que a mente não seja contaminada
por aquele gênero de ilusão ou desvario.
No entanto, uma ciência que assumisse um volume qualquer
de subentendidos para sustentar os seus fundamentos não
seria uma ciência. Também uma literatura que, por seu
turno, tentasse fundar a sua linguagem sobre esquemas e
fórmulas (à maneira do que o estruturalismo fazia há
algumas décadas) seria uma literatura falhada. O
fictício deveria englobar — como ficções — esses
esquemas e fórmulas. Uma ciência não pode ser imaginária
— é o que se sabe —, muito embora deva sempre recorrer à
imaginação para expandir os seus limites.
Cientistas de verdade, como Einstein, o compreenderam
muito bem. Do mesmo modo, uma literatura científica
— que abrisse mão de seu pressuposto imaginativo —
não poderia existir. Sempre lhe faltaria alguma coisa,
porquanto é da sua natureza abranger o imaginário, e
quem não entende isso não deve escrever poesia ou
ficção.
6-7-2021
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