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POESIA, CRÍTICA, PALAVRA (I)


(Renato Suttana)


I

Escrevi em algum lugar, há tempos, que a única razão de existir da crítica literária é atuar no mundo como guardiã de livros. Parece-me ilusória a asserção pública de que a crítica tem qualquer função no campo da criação literária. E talvez estejam enganados aqueles que afirmam que ela — a crítica — existe para garantir um certo padrão de qualidade no âmbito da produção, agindo como má consciência dos escritores e do público em relação a seus gostos e opções particulares. Mas também me parecem enganados aqueles que defendem que sua razão de ser esteja no esforço que se empreende, em todas as épocas e culturas, para separar os bons e os maus livros. Essa função é exercida pelo próprio público. E o trabalho definitivo de separação e consagração das obras realmente valiosas será realizado pelo tempo ou, mais propriamente, pelo suceder-se das gerações de leitores.

Em sua própria época, a crítica apenas pode oferecer aos bons livros uma espécie de custódia temporária, que lhes garantirá o direito de circulação, atraindo para eles a atenção dos leitores — mas ela mesma não poderá torná-los (os livros) melhores, nem poderá tornar mais sábios e mais sagazes os seus leitores e apreciadores. Toda vez que tenta exorbitar daquele papel, ela fracassa, porque tudo o que pode e alcança produzir é apenas crítica também: a crítica não cria a boa literatura (que sempre surge de outros setores da atividade literária). Ou seja, não se pode ter expectativa de que, a partir dela, uma literatura apreciável surgirá (ou, sequer, uma crítica razoável). Isso se dá não só porque a criação literária é de outra ordem, como também porque (e todos os indícios o comprovam) não se tem notícia de que apenas por ter lido bons livros de crítica alguém tenha se convertido num bom escritor. É mais que sabido que, para escrever bons romances e poemas legíveis, se faz necessário ler romances e poemas (e não, portanto, estudar os livros da crítica literária, que muitos bons autores sequer se dão ao trabalho de folhear).

Tudo isso demonstra que a crítica não tem lugar no universo da criação literária, muito embora se possa dizer que sem crítica interna (ou inerente ao ato criativo) não existe boa literatura. Mas aqui é possível que estejamos a falar de outra coisa — da crítica que o escritor deve exercer sobre a sua própria criação, no que concerne aos seus próprios livros, muito diversa (bem se vê) daquela que se tenta exercer frente à literatura escrita por outrem. A razão de tudo está em serem tanto a escrita quanto a leitura instâncias essenciais e inerentes das obras literárias, sendo impossível defender que qualquer ingerência externa possa atuar sobre ambas. Essas afirmações equivalem a dizer, pois, que, tal como não pode formar escritores, a crica também não pode formar leitores, não obstante possa ensinar estes últimos a perceber, nas obras que leem, aspectos que às vezes lhes escapam por motivo de distração ou de pouco saber, quase sempre ligados a certas necessidades de conhecimento e erudição que não estão disponíveis para todos. Do mesmo modo, pode-se dizer que a crítica está apta, frequentemente, a fazer os autores perceberem aspectos de suas obras que a eles mesmos lhes passam despercebidos (fenômeno do qual existem registrados vários testemunhos). No entanto seria muito acreditar que a crítica possa converter maus poetas em poetas talentosos (quando muito, ela os desestimula a continuar), ou inspirar de tal maneira escritores sofríveis que estes se convertam em gênios literários — não havendo provas de que Dostoiévski, Clarice Lispector ou William Faulkner se tornaram grandes autores só por terem lido críticas a seu respeito.

Isso é ponto pacífico. Mas talvez seja impróprio também invocar escritores de tamanha importância só para dizer que a crítica não pode formá-los (tal como ainda hoje não pode formar o que quer que seja a não ser críticos literários). Não obstante, os exemplos são instrutivos pelo que trazem de constrangedor e assim talvez ajudem a entender o fenômeno paralelo de ser a crítica uma atividade vicária, a necessitar da existência dos grandes autores para subsistir e se justificar — muito embora a crítica acadêmica, com os seus estudos sobre todos os assuntos, possa ter a ilusão hoje em dia de estar se emancipando dessa necessidade —, ao mesmo tempo em que nega tal existência (ou seja, não admite, conforme se faz hoje, a ideia de existirem grandes escritores, estando proibido nos meios acadêmicos pronunciar a expressão gênio literário).

Esta é também a razão da má vontade e da verdadeira animosidade com que vemos os escritores serem tratados nos ambientes da crítica (penso especialmente na universitária), onde são bem-vindos apenas na medida em que estão ali para comprovar com suas obras certos postulados da crítica dos quais, por uma estranha inversão de fatores, essas obras passam a ser vistas como derivações. A literatura é tolerada, por assim dizer, na exata proporção em que existe uma crítica disposta ou apta a explicá-la; mas tal crítica só se desenvolverá na medida em que adaptar os seus pressupostos àquilo que supõe ser a literatura. Ou então se constituirá e se solidificará de tal modo que tudo aquilo que ela não saiba ou não possa explicar deva ser empurrado para a sua margem e jogado no porão das curiosidades inexplicáveis.

Significa esta última afirmação que a crítica se move devagar, muito embora esteja sempre disposta a alargar o leque da sua tolerância, buscando abranger também aquilo de denomina de margem. Mas se trata sempre de uma tolerância, de um sursis que se concede às obras para que possam orbitar ao redor da crítica, e não o contrário.


(Parte 2)


 

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