"REVELAÇÃO" E OUTROS
POEMAS DE H. P. LOVECRAFT
REVELAÇÃO
Num vale claro e risonho, que um sol
gentil alumiava,
onde cada anseio ou sonho logo se
realizava,
onde um pássaro cantor murmurava
docemente,
minha alma, sem pranto ou dor, vitoriosa
sobre a mágoa
(foi ontem mesmo, eu me lembro!),
vagueava altiva e ridente.
O vale era verde e estreito, de verdes
sombras coberto,
e ressoava satisfeito o som dos riachos
por perto;
e a noite resplandecia de astros toda
iluminada,
e Astarte no alto fulgia, lançando rios
de luz
por entre as frescas ramagens, como num
conto de fada.
Ali, entre luzes, cores, entre odores
inebriantes
de gramas, avencas, flores, e entre os
ramos circundantes,
grato aos dons da Natureza, devaneando,
eu me deitava,
e então, notando a grandeza – que entre
as nuvens se entrevia
a fulgir intensamente – do céu, por mais
suspirava.
Ansioso, o verde afastando, abri um
espaço no alto,
e um olho audaz releanceando, vi o céu
despir-se no alto;
agora ignotas funduras brilhavam em
frente a mim;
e, esplendendo nas alturas, para além
das mais distantes
estrelas me conduziram asas de um sonho
sem fim.
Esforçando-me, ofegando, nos espaços
devassados,
e desejando, e aspirando, vi em vão os
orbes dourados
soltos no céu luminoso. Por uma escada
de luar
o abismo vertiginoso – louco, e cada vez
mais sábio
e triste, a cada fracasso – do céu
tentei escalar
Então, na improfícua guerra já farta de
se bater,
minha alma tornou à terra, contente ao
menos de ter
ainda um lar neste mundo. E agradáveis
pensamentos
de amanhã, como o fecundo pensar dos
tempos passados,
benditos e venturosos, ninaram os meus
tormentos.
Mas, baixando, o meu olhar recuou diante
do que viu;
prados, montes a queimar em negro horror
descobriu;
terror nas ondas do rio; pois a
clareira, despida
do seu abrigo sombrio por minha mão
violadora,
sob o céu – maldita – ardia como uma
terra perdida.
A NOIVA DO MAR
Altas, as negras falésias se elevam
atrás de mim,
e a vasta areia em que piso é só um
negror distendido:
mal se vislumbram as trilhas e as rochas
que me recordam
dolorosamente os anos de um Nunca-Mais
já perdido.
Batendo suavemente nas pedras, a onda
produz
um som que ainda é para mim tão doce e
familiar;
aqui – com sua cabeça pendida sobre meu
ombro –
passeávamos, lado a lado, eu e Unda, a
Noiva do Mar.
No amanhecer refulgente da juventude,
encontrei-a,
doce qual vento a soprar sobre o mar
frio e salgado.
Bem cedo o Amor enleou-nos com seus mais
fortes grilhões:
ela feliz por ser minha, e eu por estar
ao seu lado.
Pergunta jamais lhe fiz acerca de seu
passado,
e ela jamais indagou de minha origem e
andanças:
sem pensamentos e idéias, felizes só
desses dons
do largo oceano e da terra, éramos como
crianças.
Certa vez, quando brincava suave o luar
sobre as ondas,
ficamos a olhar as águas lá do alto,
sobre o rochedo,
seus cabelos adornados por uma trança de
flores
colhidas junto a uma fonte do mavioso
arvoredo.
Estranhamente ela olhava o mar inquieto
a seus pés,
como dos sons absorvida ou da luz
arrebatada;
então as ondas lhe deram o aspecto
estranho, selvagem,
de um oceano bravio ou de uma noite
encantada.
Friamente, ela afastou-se, muito
atordoada, a chorar,
sozinha, em meio às legiões que ela
porém bendizia,
e a descer, sempre a descer, a
escorregar, quase caindo,
em direção ao oceano minha doce Unda
fugia.
O mar então se acalmou e, de um raivar
tumultuoso,
passou a um leve marulho, enquanto Unda,
divinal,
caminhou sobre as areias com gestos de
gratidão,
e, acenando-me em convite, sumiu sem
deixar sinal.
Perscrutei por longo tempo o lugar onde
sumira.
Subiu a lua no céu e após baixou. E o
fulgor
da manhã cresceu, cinzento, banindo a
noite tristonha,
mas minha alma ainda sofria a sua
infinita dor.
Percorri o mundo inteiro em busca da que
eu amei,
andei por vastos desertos e naveguei
pelos mares.
Certa vez, por sobre as ondas, no
tumulto da procela,
entrevi um belo rosto que acalmou os
meus pesares.
Desde então tenho avançado, sem achar
paz ou sossego,
às cegas, aos tropeções, de mim mesmo
mal consciente.
Até que chego ao lugar onde reboam as
águas,
de volta à cena daquele Ontem perdido e
dolente.
Deus! a lua avermelhada sobe das névoas
do mar,
crescendo ominosamente à vista; estranho
é o seu rosto
ao meu olhar torturado que, através das
vastidões
de rutilâncias e azuis, mira o longe com
desgosto.
Da lua desce uma ponte feita de ondas e
de raios
que toda brilhante chega à praia onde
estou, tristonho.
Quão frágil parece, e entanto que
tentação não me vem
de atravessá-la e subir ao orbe de um
doce sonho!
Que face é aquela que vejo em meio aos
raios do luar?
Enfim terei encontrado a donzela
fugitiva?
Cruzando a ponte de raios, os meus
passos se aproximam
daquela cujo convite tão meigo me
apressa e aviva.
Envolvem-me correntezas, e num vogar
indolente
por essa estrada de luar procuro o seu
rosto amado.
Ansiosamente me apresso, entre preces,
ofegante,
num esforço de alcançar aquele vulto
abençoado.
As águas, murmurejando, se fecham ao meu
redor;
suave, a doce visão para mim põe-se a
avançar.
Findou a minha procura: meu coração
finalmente,
a salvo, repousa ao lado de Unda, a
Noiva do Mar.
ASTROPHOBOS
No céu da meia-noite a se incendiar,
através da profunda imensidão,
vi certa vez, com sôfrega emoção,
o brilho de uma estrela singular,
que a cada novo ocaso retornava
e junto ao Carro do Ártico brilhava.
Ao seu fulgor belíssimo, dourado,
ondas de pura graça se mesclavam,
enquanto sonhos de êxtase baixavam
em mírrea névoa elísia misturados;
e aos acordes das liras, maviosos,
cantares lídios soavam, harmoniosos.
E – pensei – são cenários de deleite
onde moram os livres e os benditos,
e há nas horas tesouros infinitos,
que o feitiço do lótus mais enfeite;
e onde, líquido e doce como o mel,
flui o som do alaúde de Israfel.
Mundos de uma ignorada beatitude
ali – tal eu supunha – se acendiam,
onde a paz e a inocência se acolhiam,
junto ao trono supremo da Virtude,
e onde na luz bruniam homens justos
seus pensamentos límpidos e augustos.
E eu devaneava assim, quando à visão
sobreveio vermelha, atroz mudança,
em derrisão tornando-se a esperança,
e a beleza em desgosto e distorção,
as cordas em estranhas colisões,
e um caos imenso de espectrais visões.
Tornou-se rubra a estrela da loucura,
enquanto eu perscrutava o seu fulgor;
e o que foi alegria era amargor,
a Verdade expulsando à visão pura;
e espiavam mil demônios de olhos maus
por entre o brilho e a febre desse caos.
Agora sei que fábula encantada
essa áurea refulgência me contou,
e evito o que ontem vi e me enlevou
nessa longínqua treva constelada.
Mas eis que o horror, imóvel e
inclemente,
ficará na minha alma eternamente.
(Traduções
de Renato Suttana)
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