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Max Ernst

 

"REVELAÇÃO" E OUTROS POEMAS DE H. P. LOVECRAFT

 

 

REVELAÇÃO

 

Num vale claro e risonho, que um sol gentil alumiava,

onde cada anseio ou sonho logo se realizava,

onde um pássaro cantor murmurava docemente,

minha alma, sem pranto ou dor, vitoriosa sobre a mágoa

(foi ontem mesmo, eu me lembro!), vagueava altiva e ridente.

 

O vale era verde e estreito, de verdes sombras coberto,

e ressoava satisfeito o som dos riachos por perto;

e a noite resplandecia de astros toda iluminada,

e Astarte no alto fulgia, lançando rios de luz

por entre as frescas ramagens, como num conto de fada.

 

Ali, entre luzes, cores, entre odores inebriantes

de gramas, avencas, flores, e entre os ramos circundantes,

grato aos dons da Natureza, devaneando, eu me deitava,

e então, notando a grandeza – que entre as nuvens se entrevia

a fulgir intensamente – do céu, por mais suspirava.

 

Ansioso, o verde afastando, abri um espaço no alto,

e um olho audaz releanceando, vi o céu despir-se no alto;

agora ignotas funduras brilhavam em frente a mim;

e, esplendendo nas alturas, para além das mais distantes

estrelas me conduziram asas de um sonho sem fim.

 

Esforçando-me, ofegando, nos espaços devassados,

e desejando, e aspirando, vi em vão os orbes dourados

soltos no céu luminoso. Por uma escada de luar

o abismo vertiginoso – louco, e cada vez mais sábio

e triste, a cada fracasso – do céu tentei escalar

 

Então, na improfícua guerra já farta de se bater,

minha alma tornou à terra, contente ao menos de ter

ainda um lar neste mundo. E agradáveis pensamentos

de amanhã, como o fecundo pensar dos tempos passados,

benditos e venturosos, ninaram os meus tormentos.

 

Mas, baixando, o meu olhar recuou diante do que viu;

prados, montes a queimar em negro horror descobriu;

terror nas ondas do rio; pois a clareira, despida

do seu abrigo sombrio por minha mão violadora,

sob o céu – maldita – ardia como uma terra perdida.

 

 

 

 

A NOIVA DO MAR

 

Altas, as negras falésias se elevam atrás de mim,

e a vasta areia em que piso é só um negror distendido:

mal se vislumbram as trilhas e as rochas que me recordam

dolorosamente os anos de um Nunca-Mais já perdido.

 

Batendo suavemente nas pedras, a onda produz

um som que ainda é para mim tão doce e familiar;

aqui – com sua cabeça pendida sobre meu ombro –

passeávamos, lado a lado, eu e Unda, a Noiva do Mar.

 

No amanhecer refulgente da juventude, encontrei-a,

doce qual vento a soprar sobre o mar frio e salgado.

Bem cedo o Amor enleou-nos com seus mais fortes grilhões:

ela feliz por ser minha, e eu por estar ao seu lado.

 

Pergunta jamais lhe fiz acerca de seu passado,

e ela jamais indagou de minha origem e andanças:

sem pensamentos e idéias, felizes só desses dons

do largo oceano e da terra, éramos como crianças.

 

Certa vez, quando brincava suave o luar sobre as ondas,

ficamos a olhar as águas lá do alto, sobre o rochedo,

seus cabelos adornados por uma trança de flores

colhidas junto a uma fonte do mavioso arvoredo.

 

Estranhamente ela olhava o mar inquieto a seus pés,

como dos sons absorvida ou da luz arrebatada;

então as ondas lhe deram o aspecto estranho, selvagem,

de um oceano bravio ou de uma noite encantada.

 

Friamente, ela afastou-se, muito atordoada, a chorar,

sozinha, em meio às legiões que ela porém bendizia,

e a descer, sempre a descer, a escorregar, quase caindo,

em direção ao oceano minha doce Unda fugia.

 

O mar então se acalmou e, de um raivar tumultuoso,

passou a um leve marulho, enquanto Unda, divinal,

caminhou sobre as areias com gestos de gratidão,

e, acenando-me em convite, sumiu sem deixar sinal.

 

Perscrutei por longo tempo o lugar onde sumira.

Subiu a lua no céu e após baixou. E o fulgor

da manhã cresceu, cinzento, banindo a noite tristonha,

mas minha alma ainda sofria a sua infinita dor.

 

Percorri o mundo inteiro em busca da que eu amei,

andei por vastos desertos e naveguei pelos mares.

Certa vez, por sobre as ondas, no tumulto da procela,

entrevi um belo rosto que acalmou os meus pesares.

 

Desde então tenho avançado, sem achar paz ou sossego,

às cegas, aos tropeções, de mim mesmo mal consciente.

Até que chego ao lugar onde reboam as águas,

de volta à cena daquele Ontem perdido e dolente.

 

Deus! a lua avermelhada sobe das névoas do mar,

crescendo ominosamente à vista; estranho é o seu rosto

ao meu olhar torturado que, através das vastidões

de rutilâncias e azuis, mira o longe com desgosto.

 

Da lua desce uma ponte feita de ondas e de raios

que toda brilhante chega à praia onde estou, tristonho.

Quão frágil parece, e entanto que tentação não me vem

de atravessá-la e subir ao orbe de um doce sonho!

 

Que face é aquela que vejo em meio aos raios do luar?

Enfim terei encontrado a donzela fugitiva?

Cruzando a ponte de raios, os meus passos se aproximam

daquela cujo convite tão meigo me apressa e aviva.

 

Envolvem-me correntezas, e num vogar indolente

por essa estrada de luar procuro o seu rosto amado.

Ansiosamente me apresso, entre preces, ofegante,

num esforço de alcançar aquele vulto abençoado.

 

As águas, murmurejando, se fecham ao meu redor;

suave, a doce visão para mim põe-se a avançar.

Findou a minha procura: meu coração finalmente,

a salvo, repousa ao lado de Unda, a Noiva do Mar.

 

 

 

 

ASTROPHOBOS

 

No céu da meia-noite a se incendiar,

através da profunda imensidão,

vi certa vez, com sôfrega emoção,

o brilho de uma estrela singular,

que a cada novo ocaso retornava

e junto ao Carro do Ártico brilhava.

 

Ao seu fulgor belíssimo, dourado,

ondas de pura graça se mesclavam,

enquanto sonhos de êxtase baixavam

em mírrea névoa elísia misturados;

e aos acordes das liras, maviosos,

cantares lídios soavam, harmoniosos.

 

E – pensei – são cenários de deleite

onde moram os livres e os benditos,

e há nas horas tesouros infinitos,

que o feitiço do lótus mais enfeite;

e onde, líquido e doce como o mel,

flui o som do alaúde de Israfel.

 

Mundos de uma ignorada beatitude

ali – tal eu supunha – se acendiam,

onde a paz e a inocência se acolhiam,

junto ao trono supremo da Virtude,

e onde na luz bruniam homens justos

seus pensamentos límpidos e augustos.

 

E eu devaneava assim, quando à visão

sobreveio vermelha, atroz mudança,

em derrisão tornando-se a esperança,

e a beleza em desgosto e distorção,

as cordas em estranhas colisões,

e um caos imenso de espectrais visões.

 

Tornou-se rubra a estrela da loucura,

enquanto eu perscrutava o seu fulgor;

e o que foi alegria era amargor,

a Verdade expulsando à visão pura;

e espiavam mil demônios de olhos maus

por entre o brilho e a febre desse caos.

 

Agora sei que fábula encantada

essa áurea refulgência me contou,

e evito o que ontem vi e me enlevou

nessa longínqua treva constelada.

Mas eis que o horror, imóvel e inclemente,

ficará na minha alma eternamente. 

 

 

(Traduções de Renato Suttana)


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