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"OS QUARTOS", DE HENRIQUE PIMENTA
(Victória Almeida)
Cena um. Tomada um. A câmera transita por um quarto
típico de adolescente revoltado. Ambiente artificial,
mero cenário cinematográfico num set de filmagem. Assim,
inicia-se o terceiro conto da coletânea Ele adora a
desgraça azul (Editora Mondrongo, 2016, 190 p.),
do autor sul-mato-grossense Henrique Pimenta.
No conto, Pimenta traz à tona a nudez pictórica de uma
típica família tradicional brasileira de classe média. O
narrador onisciente, como um cinegrafista que abusa de close-ups,
ronda e sonda quarto por quarto, extraindo dos objetos
inanimados universos semânticos que o núcleo familiar
representado atribui a cada um deles.
Primeiramente, conhecemos João Pedro, um adolescente
problemático, mas promissor, clichê ficcional, que
transmite ao ambiente físico uma desordem emocional. Um
pôster na parede dos Sex Pistols, banda inglesa do
movimento punk, um ícone plástico, um caso de
esvaziamento cultural, já que o rapaz nem ao menos
consome a discografia da banda.
Logo à frente, quando o narrador-cinegrafista onisciente
inspeciona os demais objetos do quarto de João Pedro,
percebemos que a escolha da banda, além de se apresentar
como um símbolo funcional de revolta, remete a um
colonialismo cultural contundente. A bola de futebol
americano, o taco de beisebol, o domínio de “um inglês
de quem domina tudo”, um complexo de vira-lata que
invade ambientes nos quais os privilégios
socioeconômicos imperam.
Em seguida, a íris-lente, pupila-diafragma, do narrador
aponta para Priscila. Corte seco, intimista. Graduanda
de medicina, orgulho da família, inteligentíssima, a
filha perfeita e bem sucedida. Fecham-se as cortinas:
viciada em medicamentos. Sexualidade dissidente,
relacionamento conturbado com Roberta, que também
sustenta vícios. Relação cármica. Espiritualidade:
espiritismo, umbanda. Contrapontos deliciosos ao
moralismo e à intolerância religiosa própria de uma
nação evangélica.
Corte-seco-final: os pais se desentendendo.
Distanciamento físico e emocional, um esvaziamento do
Eros, esse desapaixonar típico, delicadamente sustentado
por um estado de comodidade: é aquele “ah, os filhos…”,
ou um “poxa, é tão burocrática a divisão de bens e o
estresse da mudança…”; mas quando a autópsia do defunto
é concluída, a estética do status acomoda as arestas
cortantes, e o cadáver se arrasta com um sorriso
plástico no rosto. Só mais um pouco…
“Os quartos” é uma narrativa interessantíssima, incluída
num livro em que outras peças atrairão, certamente, a
atenção do leitor. Nesse conto em especial, a
onisciência do narrador é, por certo, a escolha perfeita
para favorecer a visão dos ângulos e sugestão de pontos
de vista que o estilo reivindica -- estilo esse que
mescla cinematografia (movimento de câmera) com a
dramaticidade do teatro (abrir e fechar de cortinas),
invocando ainda o arquétipo do ator e atribuindo-o a
cada um dos personagens. Todos encenam em suas
caixinhas, nas ruas e nos retratos perfeitinhos, de
famílias perfeitinhas e intocáveis na vitrine. No
entanto, quando são guardados no estoque, quando as
cortinas se fecham e as câmeras se desligam, a
plasticidade se recolhe e o grotesco, sempre à espreita,
se liberta.
Portanto, desponta a velha hipocrisia da classe média,
com o seu colonialismo cultural e a sua vida de
aparências repleta de influências do neoliberalismo
norte-americano, e tendo a dissimulação como principal
artifício de transgressão do status quo. Esses elementos
coroam o conto de forma brilhante, dando uma sensação de
tridimensionalidade ao texto literário. Trata-se, pois,
de um crítica ácida e pertinente ao contexto
sociocultural, seja em nível micro (Campo Grande e
região), seja a nível macro (mundial), como retrato dos
sintomas das patologias contemporâneas.
Dourados-MS, julho
de 2024
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