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O NÃO-POETA
QUE EXISTE EM NÓS
(Renato
Suttana)
I
Costumo
provocar meus amigos que me enviam versos dizendo que em
determinados trechos de seus poemas a escrita do não-poeta (que
existe em cada um de nós) predominou. A primeira reação que os
vejo ter é, quase sempre, perguntarem – em tom abstrato – o que
é a “poesia”. Reação, como se vê, essencialmente não-poética,
gerada no âmago da alma do não-poeta que existe neles e que sempre
aflora nessas ocasiões. A segunda reação é iniciarem um debate,
de conteúdo igualmente abstrato, sobre o gosto da modernidade pela
ausência de limites, ou sobre o fato de que essa modernidade
aprecia misturar poesia e prosa num único todo – seja ele um
poema, um conto, um capítulo de romance ou um romance inteiro –,
porque assim deve ser. Nada menos poético e nada, portanto, mais de
acordo com as ambições do não-poeta que espreita em cada um e que
se manifesta, sempre, unicamente, para destruir a poesia (sugerindo
inclusive
a ideia de que poesia e prosa são a mesma coisa).
Em
princípio, se poderia dizer que o contrário da poesia não é a
prosa, mas a não-poesia ou a ausência de poesia (caso a ausência
de uma coisa possa ser tomada como sendo o contrário dessa coisa).
Tal como o contrário de um braço, de uma perna ou de um nariz não
é uma mão, uma orelha ou as nádegas, assim também se dirá que
poesia e prosa não se opõem uma à outra, porque são coisas de
natureza distinta. O que se opõe à poesia é a não-poesia –
aquela que o não-poeta, que existe em cada um de nós, insiste em
contrabandear para dentro dos nossos poemas, seja disfarçando-a na
forma de banalidades que “imitam” a descontração da linguagem
prosaica (que, se calhar, é prosaica mesmo e nada poética, como o
não-poeta – acompanhado pelos críticos – quer nos fazer
acreditar que seja), seja na forma daquele segundo terceto ou último
verso com que tentamos concluir o soneto inacabado e que o não-poeta
sussurrou em nosso ouvido, como uma chave de ouro (mas que não é,
na verdade, senão uma forma sutil de sabotagem cuja única intenção
é destruir o trabalho anterior), para dar fim não ao soneto, mas
à própria poesia.
O
não-poeta é legião e por isso está em toda parte. Ele é aquele
que impede, por exemplo, Bento Santiago de escrever os doze versos
faltantes do seu soneto gorado, os quais uniriam os dois versos já
escritos, como uma ponte ligando as margens de um rio (agravo que foi
vingado no século XX por Francisco Carvalho – poeta de verdade e
raramente vencido pelo não-poeta –, o qual, com habilidade e inspiração,
escreveu não um, mas mais de uma dezena de conjuntos de doze versos
bem medidos para suprir aquilo que o não-poeta sonegou ao
personagem de Machado de Assis). Nesse aspecto, sua tarefa é apenas
esta: impedir, não
permitir que a poesia
aconteça. E teria outra ambição além dessa? Provavelmente, não;
mas o não-poeta é um demônio hábil e poderoso, que alguns indivíduos
se propuseram a desafiar na época moderna (sendo vencidos, na
maioria das vezes, por suas forças superiores), fazendo disso,
inclusive, uma cultura (a
cultura dos não-poetas que escrevem poemas) e que, assim sendo,
dispõe de truques e ardis suficientes para enganar qualquer um.
No
entanto, há poetas de verdade – temos de admitir – que fizeram
disso (do combate ao não-poeta que existe em cada um) uma cruzada e
um modo de estar no mundo. No Brasil, o nome que primeiro vem à
mente é, com certeza, o de João Cabral de Melo Neto – poeta de
valor, mas que passou toda a sua vida obcecado pelo seu demônio, até
ser vencido por ele nos seus anos finais (vide as entrevistas em que
admitiu ter parado de escrever porque não podia mais enxergar
os versos que escrevia na folha de papel). Quanto a este grande, aliás,
é curioso observar que, ao longo de mais de 60 anos, tudo o que a
crítica mais admirou e comentou a respeito de sua obra (de
verdadeiro poeta) – números, simetrias, sutilezas – foram
exatamente os restos de um combate (como ele mesmo teria advertido
aqui e ali) no qual a obra do não-poeta sempre compareceu, até o
ponto de fazer suspeitar que a vitória não foi assim tão absoluta
e que não teria acontecido apenas no final da vida do poeta,
mas bem antes, ao longo da sua trajetória de autor infinitamente comentado
pelos críticos. (É de lembrar, também, que ele, embora tenha
escrito muitas coisas, não cometeu a indelicadeza de tentar dizer
aos seus leitores o que é a poesia, cedendo às falácias do não-poeta,
que poderia tê-lo conduzido a isso.) Ocorre que um dos dons mais
impressionantes do não-poeta (que existe em cada um) é não só o
poder de calar a poesia, conforme suspeitamos, mas, mais
terrivelmente, o de meter palavras lá onde a poesia se calou; isto
é, de encher de palavras o espaço que a poesia deixou vago ao se
retirar – e de tanto mais palavras quanto mais largo for esse espaço.
É a pior não-poesia aquela que demora mais a ser dita?
Sobre
isso devemos meditar profundamente. Não há nada mais triste nem
mais constrangedor para quem lê versos na atualidade do que ver por
aí tantos indivíduos tentando convencer seus leitores (ou a si
mesmos) de que os despojos da luta devem ser mostrados. E há
aqueles, inclusive, que tentam convencer seus leitores (e a si
mesmos) de que certas coisas que o não-poeta sussurrou em seus
ouvidos, enquanto escreviam poemas, são de fato as mais
importantes; ou seja, aquelas a que se deve prestar maior atenção,
como se se tratasse do real coroamento de seus esforços. Seria esta
a vitória do não-poeta, sua glória maior, que faz com que a não-poesia
se imiscua lá, de algum modo, e seja tomada como um troféu?
Sabemos pouco a esse respeito. Mas não podemos deixar de nos
impressionar com versos como estes, de um poeta brasileiro de hoje,
que tanto nos levam a pensar: “(...) Para
escrever, despreparei-me / desesperei: escrevo sem parar, meu álibi,
meu escuro / de papel, às vezes bandeira. A letra varia, louca. /
Do garrancho apressado para pegar um flagrante / à caligrafia
medida, meditada. Entre uma e outra / vale-tudo – rabisco, reparo,
ruína. (...) Agora, digito, salvo / me perco, deleto, sem impressão.” Que
podemos dizer deles senão que provêm da mente profundamente não-poética
de um poeta que, já passado da maioridade e lutando contra o seu
demônio interior, se distraiu por um momento e sofreu uma estocada
decisiva?
Contemplar
de frente a face do não-poeta pode ser uma experiência traumática
para qualquer um, até porque nem sempre se é João Cabral de Melo
Neto ou Mallarmé (poetas que, em geral, costumam ser bajulados pelo
não-poeta que há em todo o mundo e que perversamente os emula,
como se assim se vingasse do fato ter sido derrotado por eles tantas
vezes ao longo da vida, e de modo tão fragoroso). Para se ter uma
ideia, basta pensar que o não-poeta (bem como o não-contista, o não-romancista
e o não-qualquer-outra-coisa) que há em todos nós gerou, no século
XX, a tradição da teoria dita literária – esta, sim, em seu
todo, profundamente antipoética, desde que sempre se preocupou em
se perguntar sobre o que é a poesia (e como ela é feita) em vez de mostrá-la –
enquanto os verdadeiros poetas prefeririam, mil vezes, apenas escrevê-la
e dá-la a ler. Inventar conceitos pode ser útil em diversas
circunstâncias da vida, mas, do ponto de vista do poeta verdadeiro, eles não
importam de maneira nenhuma. Seria tudo isso apenas uma maneira de ganhar
tempo, enquanto não chega a poesia verdadeira?
II
Há
poetas que, simplesmente, não dão ouvidos ao seu não-poeta
particular. São indivíduos impressionantes, sobretudo, e
profundamente poéticos, cujas criações nos deixam sempre a sensação de
que nossas perguntas e dúvidas são inúteis e destituídas de
objeto. Quanto a eles, podemos dizer que escrevem
apenas e que aquilo que escrevem é sempre poesia,
havendo no entanto entre eles alguns que, embora imunizados contra
as chicanas do não-poeta, gastam suas energias noutras atividades.
Para aliviar-se, chegam até a escrever sobre a poesia (críticos e
professores têm uma grande necessidade de ouvi-los) – isto é,
fazem teoria da poesia
–, entregando-se a certas lucubrações curiosas, complicadas ou
extravagantes, que nos distraem frequentemente, mas que não nos
ajudam a escrever a nossa própria.
Outros,
mais rigorosos, se abstêm de escrever (quando não escrevem poesia)
ou, para exercitar os seus dotes noutros setores da literatura, se
lançam à composição de contos, romances, peças de teatro e
outros mais.
Mas, sobretudo, evitam conjeturar sobre a poesia em si ou, quando o
fazem, é apenas se dedicando ao comentário das obras de seus
pares. E há também aqueles que, escrevendo com excelência –
como é o caso de Maurice Blanchot, Edmund Wilson ou Paul Valéry,
para citar só três nomes –, e se debruçando sobre a obra
alheia, têm o bom gosto de não resvalar para a indiscrição ou de
não penetrar no terreno que o não-poeta percorre tão
desimpedidamente: o terreno das definições, dos silogismos e da não-poesia
em geral (exceto talvez Valéry, que, perdido o senso da direção,
às vezes derrapa nas partes mais escorregadias), que apenas causa
urticárias no verdadeiro poeta. Quanto a isso, merecem o nosso
louvor, mas não há que negar que – talvez por isso
mesmo – o não-poeta não raro se apodere de suas teorias e
lucubrações para o seu propósito pessoal (que já sabemos qual é),
utilizando-as, valentemente, para – claro – desmantelar a
poesia.
Mas,
afinal, o que escreve o não-poeta, quando escreve? Muitos
responderiam que escreve prosa, porém estão enganados. Quem
escreve prosa escreve prosa, comandado pelo romancista ou contista
legítimo que existe nele. Já o não-poeta escreve apenas a não-poesia
de que sempre foi capaz e que não chega a ser um gênero especial
da literatura, até porque se manifesta apenas onde a poesia, tendo
tido intenção de se manifestar, falhou e não aconteceu (por
qualquer que seja a razão, mas suspeitamos que, sempre, por obra do não-poeta).
Não se trata de prosa, nem de má prosa tampouco, ou de outra coisa
qualquer: trata-se de não-poesia, somente – obra do não-poeta
que existe em cada um e que só pode ser combatido pelo poeta de
verdade, o qual, às vezes, não se dá ao trabalho de aparecer. É
ele que faz mancar o verso, que transforma o poema num amontoado de
conceitos ou numa exibição de habilidades técnicas, que nos faz
acoplar um segundo adjetivo ao substantivo quando um apenas teria
sido suficiente, que nos faz escolher uma expressão prosaica quando
a expressão poética
teria sido preferível (ou vice-versa), e assim por diante – pois
seu cabedal de recursos é inesgotável.
E é a ele, portanto, que devemos atribuir os nossos desastres.
Incapaz
de explicar de onde vem a poesia, a sabedoria antiga inventou noções, entre as quais a de que a poesia era inspirada
pelos deuses. Desbastada de suas conotações religiosas, tal ideia
progrediu no tempo, chegando um tanto enfraquecida à época atual,
que a converteu no conceito de inspiração.
Certamente, se perguntados, não poderíamos dar a ela nenhum
sentido preciso. Porém basta saber que, em muitos círculos, o uso
do termo se converteu numa espécie de tabu, e nos perguntamos se
isto se deu porque ele não responde à pergunta que o suscitou ou
se porque, surgindo de uma pergunta (que, desconfiamos, teria origem
nos arcanos mentais do não-poeta), aponta para qualquer coisa – a
poesia – que o não-poeta não quer ver ou quer desmoralizar.
Seja
como for, gostamos de imaginar ao menos que, nos dias atuais, por
força da verdadeira influência que exerce sobre tudo o que pensamos da arte de escrever
poesia o poder de convencimento do não-poeta – sempre à espreita
em toda parte e sempre pronto a nos fazer gastar nosso tempo com
perguntas irrespondíveis (e também a gastá-lo chegando à conclusão
de que, por serem irrespondíveis, merecem o nosso desdém)
– é uma noção que foi posta fora de circulação pelo próprio
espírito que a formulou, isto é, o espírito da não-poesia, este
que deseja sempre saber o que
é aquilo que não vê bem e que, com efeito, só é porque não
sabemos o que é.
3-2-2014
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