O
MUNDO ETERNO
Atenção
leitores! Alguns erros nas versões anteriores desta tradução
foram corrigidos aqui.
(Clark
Ashton Smith)
Chistopher
Chandon foi até a janela do seu laboratório, para olhar pela última
vez a solidão montanhosa que se estendia adiante, a qual com toda
probabilidade ele jamais veria de novo. Sem qualquer hesitação e,
no entanto, não sem algum pesar, ele contemplou o desfiladeiro
acidentado logo abaixo, onde a penumbra gótica dos abetos e dos açafrões
era atravessada pelo fio de prata de um pequeno córrego
rumorejante. Avistou a escarpa granítica à sua frente e os dois picos
mais próximos das Sierras, cujo cinza-azulado estava coberto pelas
primeiras neves do outono; e viu a passagem entre eles, que jazia
alinhada com a sua rota presumível através do contínuo espácio-temporal.
Então
se voltou para o estranho aparato cuja construção lhe custara
tantos anos de labor e de experimentações. Suspenso sobre uma
plataforma no centro do cômodo, havia um grande cilindro, semelhante a uma campânula de mergulho. As paredes mais baixas,
formando a base, eram de metal, e a metade superior era feita
inteiramente de um vidro indestrutível.
Uma
rede, inclinada num ângulo de quarenta graus, se estendia entre as
duas partes. Nela, Chandon pretendia atar-se com segurança,
garantindo a si mesmo toda a proteção possível contra as
velocidades inauditas do vôo que intentava fazer. Olhando através
do vidro, poderia observar com conforto qualquer fenômeno
visual que a jornada viesse a oferecer.
O
cilindro fora montado diretamente em frente a um enorme disco com
dez pés de diâmetro, sobre cuja superfície prateada havia uma
centena de perfurações. Por trás dele se distribuía uma série
de dínamos, desenhados para produzir uma força obscura, a qual,
por falta de nome melhor, Chandon chamara de força negativa do
tempo. Tal força ele a isolara, ao custo de infinitos esforços,
da energia positiva do tempo – essa gravidade quadridimensional
que gera e controla a rotação dos eventos.
A
força negativa, amplificada mil vezes pelos dínamos, ejetaria a
uma distância incalculável no tempo e no espaço atuais qualquer
coisa que se achasse em seu caminho. Não estava destinada a
permitir uma viagem através do passado ou do futuro, mas a produzir
uma projeção instantânea através da corrente temporal que
envolve todo o cosmo em seu fluir sempre inalterado e constante.
Infelizmente,
Chandon não fora capaz de construir uma máquina dotada de
mobilidade, na qual
pudesse viajar, como num foguete, e talvez retornar ao ponto de
partida. Ele deveria mergulhar audaciosamente e para sempre no
desconhecido. Mas tinha equipado o cilindro com reservas de oxigênio,
luz elétrica e calor, bem como com suprimentos de água e de
alimentos suficientes para um mês. Mesmo que seu vôo terminasse no
espaço vazio ou em algum mundo cujas condições fossem totalmente
impróprias à sobrevivência humana, ele ao menos viveria o
bastante para fazer uma observação completa dos arredores. Sua
teoria era, porém, de que a jornada não terminaria no mero éter,
mas de que os corpos cósmicos fossem núcleos de gravidade temporal
e que a diminuição da força propulsora permitiria que o cilindro
fosse atraído por um deles.
Os
perigos de sua aventura estavam mais do que previstos, mas ele os
preferia às certezas monótonas e seguras da vida terrena. Sempre o
exasperara um sentimento de limitação, que o fizera aspirar pelas
vastidões inexploradas. Ardia nele o pensamento de outros
horizontes além destes que nunca foram ultrapassados.
Com
um estranho tremor em seu peito, ele abandonou a paisagem alpina e
deu início à tarefa de se fechar no cilindro. Tinha instalado um
mecanismo de tempo, que automaticamente dispararia os dínamos a uma
hora determinada.
Amarrado
à rede com tiras de couro afiveladas sobre a cintura, tornozelos e
ombros, ele ainda tinha algo como um minuto de espera, antes que a
força fosse ligada. Nesses momentos, pela primeira vez, baixou
sobre ele, em torrente, todo o amplo terror e o sentimento dos riscos de
sua experiência. E sentiu-se quase tentado a se desatar e a
abandonar o cilindro antes que fosse tarde. Tais sensações eram
semelhantes às de quem está prestes a ser lançado através da
boca de um
canhão.
Suspenso
num extraordinário silêncio, do qual todo som fora excluído pelas
paredes hermeticamente vedadas, ele se entregou ao desconhecido, em
meio às mais conflitantes conjeturas acerca do que ocorreria.
Poderia ou não sobreviver à passagem por dimensões desconhecidas,
numa velocidade que faria parecer vagarosa a própria luz. Mas, se
sobrevivesse, poderia alcançar num átimo as galáxias mais
distantes.
Seus
medos e conjeturas foram interrompidos por alguma coisa que veio com
a subitaneidade do sono – ou da morte. Tudo pareceu se dissolver e
se dissipar numa fulguração aguda, e então passou diante dele um
panorama fervilhante e fragmentado, uma babel de impressões inefáveis,
variadas e múltiplas. Era como se ele possuísse um milhar de olhos
com os quais apreendia num único instante o fluxo de muitos éons, o
tropel de mundos incontáveis.
O
cilindro parecia já não existir, e ele se sentiu como se não se
movesse. Mas todos os sistemas do tempo passavam por ele, que agarrava os retalhos e fragmentos de um milhão de cenas: objetos,
faces, formas, ângulos e cores dos quais se recordaria depois como
quem recorda as visões de delírio amplificadas e distorcidas que
certas drogas proporcionam.
Viu
as gigantescas florestas sempre verdes de líquen, os continentes de
grama de Brobdingnag, em planetas mais remotos que os sistemas de Hércules.
Diante dele desfilaram, como uma arquitetura cenográfica, as
cidades altíssimas que ostentam atmosferas suntuosas e variegadas
de rosa e esmeralda e púrpura, envolta nos raios convergentes de
triplos sóis. Contemplou coisas inomináveis em esferas não
catalogadas pelos astrônomos. Acorreu sobre ele todo o ciclo
tremendo e ilimitado da vida trans-estelar, o ciclorama das
morfologias inesgotáveis.
Pareceu-lhe
que os limites de sua mente tinham sido ampliados para incluir todo
o fluxo cósmico; que seu pensamento, tal como a teia de algum aracnídeo
colossal e divino, se estendia entre mundos e mundos, galáxias e
galáxias, por sobre o golfo tremendo do contínuo infinito.
Logo,
tão subitamente quanto começara, a visão terminou, sendo substituída
por alguma coisa de qualidade totalmente diversa.
Só
depois é que Chandon se deu conta do que tinha acontecido e pôde
perceber a natureza e as leis do novo ambiente para dentro do qual
havia sido projetado. A esse tempo (se se pode empregar uma palavra
tão inexata quanto “tempo”), ficou totalmente incapaz de
qualquer coisa além de uma impressão de visualidade contemplativa
– o estranho mundo para o qual ele olhava através da parede
transparente do cilindro: um mundo que poderia ter sido o sonho de
algum geômetra louco pela infinitude.
Era
como uma geleira planetária, adornada por formas de uma ordem
grotesca, banhada por uma luz branca e imóvel e obedecendo a leis
de perspectiva estranhas às do nosso mundo. As distâncias para as
quais ele olhava eram literalmente intermináveis. Não havia nenhum
horizonte, e no entanto nada parecia diminuir em tamanho ou
definição, por mais remoto que estivesse. Parte da impressão que
Chandon tinha era de que esse mundo se curvava sobre si próprio,
tal como a superfície interior de uma esfera oca, e de que as
imagens retornavam sobre sua cabeça depois de desaparecerem de sua
visão.
Mais
próximo dele do que qualquer objeto no cenário e preservando a
mesma distância relativa que em seu laboratório, ele percebeu uma
larga seção circular de entabuamento bruto – aquela porção da
parede do laboratório que ficara no caminho do raio negativo. Jazia
imóvel no ar, tal como se suspensa por um campo de gelo invisível.
O
espaço para além de entabuamento estava ocupado por inúmeras
fileiras de objetos que sugeriam tanto estátuas quanto formações
cristalinas. Pálido como mármore ou alabastro, cada um deles
exibia uma mistura de curvas simples e ângulos simétricos, os
quais pareciam incluir em latência um infindável desenvolvimento
geométrico. Eram gigantescos, com uma divisão rudimentar de cabeça,
membros e corpo, como se fossem criaturas vivas. Por trás deles, a
distâncias indefinidas, havia outras formas que poderiam ser brotos
ou florações de uma vegetação desconhecida.
Chandon
não tinha qualquer noção do tempo enquanto espiava através do
cilindro. Não se lembrava de nada, não imaginava nada. Não tinha
consciência de seu corpo ou da rede sobre a qual jazia, exceto como
imagens entrevistas na orla de sua visão. De algum modo, naquela
impressão estranha e gelada, sentia o dinamismo inerte das formas
ao seu redor: o trovão silencioso, os relâmpagos represados, como
de deuses catalépticos; o calor e a chama contidos no átomo, como
de sóis não acesos. Inescrutáveis, pairavam imóveis à sua frente,
como tinham estado por toda a eternidade e como continuariam a estar
para sempre. Neste mundo, não devia haver transformações nem
eventos: todas as coisas preservariam o mesmo aspecto e a mesma
atitude.
Como
notou depois, sua tentativa de alterar a própria posição na
corrente do tempo havia conduzido a um resultado imprevisto. Ele se
projetara para além do tempo em direção a um cosmo distante onde
o próprio éter talvez era um não-condutor da força-tempo e no
qual, portanto, eram impossíveis os fenômenos da seqüência
temporal.
A
velocidade extrema de seu vôo o tinha alojado na fímbria desta
eternidade, tal como um explorador ártico capturado pelo gelo
eterno. Ali, obedecendo às leis da intemporalidade, ele estava
condenado a permanecer. A vida, como a conhecemos, era impossível
para ele; e no entanto – desde que a morte envolveria uma seqüência
de tempo – lhe era igualmente impossível morrer. Estava fadado a
se manter na posição em que pousara, a reter o mesmo sopro de
respiração que tivera no momento do impacto contra a eternidade.
Estava preso a uma catalepsia dos sentidos, num nirvana brilhante de
contemplação. Parecia, segundo toda lógica, não haver escapatória
de tal apuro. No entanto devo agora relatar a coisa mais estranha de
todas – a coisa que era aparentemente inenarrável, que desafiava
todas as leis prováveis da esfera intemporal.
Penetrando
o campo glacial de visão de Chandon e cortando as fileiras de
figuras imutáveis e sem horizonte, começou a se intrometer um
objeto – algo que se movia como se ao longo de éons, que foi
aparecendo aos poucos com a lentidão de um milenar recife de coral
num mar cristalino.
Desde
seu aparecimento, o objeto era plenamente alienígena em relação
ao cenário: era, obviamente, tal como o cilindro de Chandon e os
escombros da parede, de origem não-eterna. Era negro e lustroso,
com algo mais que o negrume do espaço interestelar ou dos metais
exilados da luz no interior dos planetas. Impunha-se à visão com
uma solidez ultramaterial e, contudo, parecia repelir toda a
claridade cristalina, isolando-se do esplendor invariável de ao
redor.
A
coisa assumia a forma de uma cunha aguda e enorme, conduzida para
dentro do éter adamantino, e formando, pelo mesmo ato violento de
irrupção, uma nova imagem visual nos olhos paralisados de Chandon.
Desafiando as leis mentais do ambiente, levava-o a conceber uma idéia
de duração e movimento.
Em
seu todo, tratava-se de uma imensa embarcação em forma de fuso,
parecendo, comparado ao cilindro de Chandon, um cruzador oceânico
diante de um escaler. Flutuava à distância e separadamente –
verdadeira massa de ébano maciço, alargando-se no equador e
afunilando-se num ponto em cada extremo. A forma parecia calculada
para penetrar algum meio resistente.
A
substância de que era feita e a sua força motora estavam além das
conjeturas de Chandon. Quem sabe teria sido arrastada por alguma
concentração tremenda de força-tempo, com a qual ele brincara de
maneira tão ignorante e inepta.
A
embarcação invasora, totalmente estacionária, pendia agora entre
as fileiras de entidades estáticas que estavam mais à frente em
seu campo visual. Entre gradações infinitas, uma enorme porta
circular pareceu abrir-se em sua base, e da abertura surgiu uma espécie
de braço ou grua, feita do mesmo material negro. O braço terminava
em numerosas barras pendentes, que de algum modo sugeriam a
flexibilidade de dedos.
Desceu
sobre a cabeça de uma das estranhas imagens geométricas, e a miríade
de barras, dobrando-se e estendendo-se com infinita mobilidade, se
enroscaram em volta do cristalóide como um feixe de correntes.
Então a figura foi arrastada para cima, como por meio de um esforço
hercúleo, e desapareceu totalmente, junto com o braço, no interior
da embarcação.
Outra
vez o braço emergiu, para repetir a abdução bizarra e impossível,
retirando outra daquelas coisas enigmáticas de sua eterna
imobilidade. E outra vez o braço desceu, e uma terceira entidade
foi apanhada, tal como se fosse o roubo de mais um outro deus de mármore
de seu marmóreo céu.
Tudo
isso se passou no mais profundo silêncio – a lentidão imensurável
do movimento sendo abafada pelo éter e nada criando que o ouvido de
Chandon pudesse apreender como som.
Após
desaparecer pela terceira vez com sua estranha presa, o braço
retornou, estendeu-se diagonalmente, atingindo um comprimento maior
do que antes, até que os dedos negros envolveram o cilindro de
vidro de Chandon e se fecharam em torno num irresistível abraço.
Ele
mal podia notar algum movimento, mas pareceu-lhe que as colunas de
figuras brancas e as paisagens sem horizonte e sem perspectiva
desapareciam lentamente de seu campo visual, como um mundo que
afundasse. Viu a grande massa de ébano da embarcação, em direção
à qual estava sendo arrastado pelo braço, até que ela ocupou todo
o seu campo visual. Então o cilindro foi alçado para dentro da
abertura trevosa, onde parecia que a luz não era capaz de penetrar.
Chandon
não podia ver nada, não estava certo de nada a não ser da
compacta escuridão que cercava o cilindro tal como o tinha cercado
a luz branca e acromática da intemporalidade. Sentiu à sua volta
algo como uma longa, tremenda vibração, uma pulsação silenciosa
que parecia se estender em círculos a partir de um centro dinâmico,
passando sobre ele e para além dele ao longo de écons, como se
proviesse de um coração titânico cujas batidas desafiassem a
eternidade ao redor.
Simultaneamente,
reparou que seu próprio coração começara a bater outra vez, com
a mesma prostração desse pulsar ignoto, e que o ritmo de sua
respiração obedecia àquela vibração cíclica. Em seu cérebro
entorpecido, despontou uma idéia de espanto – os primeiros sinais
de uma seqüência natural de pensamento. Seu corpo e sua mente começavam
a funcionar novamente, sob a influência do poder que tinha sido
eficaz o bastante para se introduzir no universo intemporal e retirá-lo
do éter petrificado.
A
vibração acelerou-se, estendendo-se em ondulações poderosas.
Tornou-se audível, como um martelar ciclópico, e Chandon de algum
modo concebeu a idéia de um maquinismo gigantesco, a girar e a
palpitar numa prisão subterrânea. A embarcação parecia estar
avançando com uma força irresistível contra uma barreira
material. Sem dúvida, estava se libertando da dimensão eterna,
abrindo à força o seu caminho de volta para o tempo. A escuridão
persistira por um momento, mais como uma radiação positiva do que
como ausência de luz. Por fim clareou totalmente e foi substituída
por uma iluminação brilhante e avermelhada. Ao mesmo tempo, a
vibração ruidosa, semelhante à de um motor, tornou-se uma palpitação
em surdina. Talvez a escuridão tivesse estado associada ao pleno
desenvolvimento da estranha força que tinha permitido à embarcação
mover-se e funcionar no meio ultratemporal. Com o retorno ao tempo e
a diminuição de força, desaparecera.
As
faculdades de pensamento, sentimento, cognição e movimento, sob
seus aspectos temporais corriqueiros, retornaram todas a Chandon tal
como se um dique fosse aberto. Ele se tornou apto a relacionar tudo
o que lhe havia acontecido e a inferir, até certo ponto, o
significado daquela experiência única. Com espanto e perplexidade
crescentes, estudou o cenário que a sua posição na rede lhe
descortinava.
O
cilindro, com as bizarras figuras cristalóides jazendo próximas,
pousou dentro de um recinto imenso, provavelmente o compartimento
principal da embarcação. O interior dessa sala era curvo como uma
esfera, e por toda parte se viam maquinarias gigantescas e
desconhecidas. Não muito longe ele viu a grua ou braço recolhido.
Parecia que a força da gravidade agia em todas as superfícies
internas da embarcação, pois certas criaturas de aspecto peculiar
passeavam em frente a Chandon enquanto ele olhava, correndo paredes
acima até penderem do teto com um à-vontade de moscas.
Havia
talvez uma dúzia dessas criaturas à vista. Ninguém dotado dos
pressupostos biológicos terrenos poderia sequer tê-las imaginado.
Cada uma delas possuía um corpo vagamente globular, com o hemisfério
superior dilatando-se entre o pólo e o equador, para formar duas
cabeças cônicas e desprovidas de pescoço. O hemisfério terminava
em muitos membros ou apêndices, alguns dos quais eram usados para
caminhar e outros para a apreensão.
As
cabeças eram disformes, mas uma membrana cintilante e semelhante a
uma teia se estendia entre elas, tremendo continuamente. Alguns dos
apêndices inferiores, ondulando como tentáculos inquisitivos,
terminavam em órgãos que poderiam servir de olhos, ouvidos,
narinas e bocas.
Tais
criaturas emitiam uma luz prateada e pareciam ser quase translúcidas.
No centro das cabeças pontudas, uma mancha de carmesim brilhava
ardentemente e se apagava com uma regularidade pulsante; e os corpos
esféricos escureciam e clareavam como se seguindo o intercâmbio rítmico
das zonas de sombra que se estendiam como costelas sob suas superfícies.
Chandon sentiu que eram formadas de alguma substância não-protoplasmática,
talvez um mineral que se tivesse organizado em células vivas.
O
homem da Terra ficou paralisado diante de tudo aquilo. Entre
conjeturas vãs e fantasiosas, tentou sondar o mistério. Quem eram
essas criaturas e qual teria sido o seu propósito ao penetrar na
dimensão eterna? Por que teriam removido alguns de seus habitantes
juntamente com ele mesmo? Para onde estaria indo a embarcação?
Estaria retornando, em algum ponto do espaço e do tempo, ao mundo
planetário de onde teria zarpado em sua inusitada missão?
Ele
não tinha certeza de nada, porém sabia que tinha caído nas mãos
daqueles seres supercientíficos, os quais seriam navegadores exímios
do espaço-tempo. Tinham sido capazes de construir uma embarcação
com a qual ele apenas sonharia e talvez tivessem explorado e mapeado
todas as profundezas desconhecidas, planejando deliberadamente sua
incursão pelo mundo congelado e distante.
Se
eles não o tivessem resgatado, ele jamais teria escapado à condenação
da intemporalidade, em direção à qual fora arremessado mediante o
seu desajeitado esforço de atravessar a corrente secular.
Meditando,
voltou-se para os gigantes que eram seus companheiros.
Mal podia reconhecê-los sob a luz vermelha: seus pálidos ângulos
e planos pareciam ter sofrido um sutil rearranjo, e a luz estremecia
sobre eles em reflexos sangüíneos, conferindo-lhes um calor
estranho, uma sugestão de vida. Mais do que nunca, davam a impressão
de força latente, de dinamismo congelado.
Então,
de repente, percebeu um movimento inequívoco numa das
entidades-estátuas e reparou que ela começara a mudar de
forma! A substância fria e marmórea pareceu fluir como mercúrio.
A cabeça rudimentar assumiu uma forma embrionária, indefinida, tal
como se pertencesse ao quase-deus de um mundo alienígena. Os
membros se acenderam, e novos membros de função indeterminada
foram expostos. As curvas e ângulos simples se multiplicaram com
misteriosa complexidade. Um olho em forma de diamante, refulgindo
com um fogo azul, apareceu na face e foi rapidamente seguido por
outros. A coisa pareceu passar, em poucos instantes, pelo processo
inteiro de alguma evolução há muito suspensa.
Chandon
viu que as outras figuras estavam sofrendo alterações singulares,
embora em cada caso o desenvolvimento subseqüente fosse todo
individual. As facetas geométricas começaram a se abrir como botões
e fluíam em linhas de beleza e grandiosidade celestiais. A palidez
boreal se enchia de uma iridescência não-terrestre, com tons
opalinos que chispavam e estremeciam em padrões vivos, em arabescos
compridos, em hieróglifos irisados.
O
observador humano sentiu a insurgência de um élan imensurável,
de um intelecto superestelar nesses seres memoráveis. Um
estremecimento de terror, elétrico, sinistro, percorreu-o. O
processo a que ele assistira era verdadeiramente incalculável,
tremendo. Quem ou o que poderia limitar e controlar as atividades
desatreladas desses Eternos, uma vez despertos de seu sono?
Certamente ele estava em presença de seres aparentados aos deuses,
aos demônios ou gênios dos mitos. Presenciar tudo aquilo era como
abrir os vasos submersos de Salomão.
Viu
também que a maravilhosa transformação tinha sido percebida pelos
donos da embarcação. Essas criaturas, surgindo de todas as partes
do interior esférico, começaram a apinhar-se em torno das
entidades atemporais. Seus movimentos mecânicos, espasmódicos, o
erguer e o baixar de certos membros que terminavam em órgãos
semelhantes a olhos, traíam uma excitação e uma curiosidade
inumanas. Pareciam inspecionar as formas transfiguradas com um ar de
biologistas experientes que estivessem preparados para um tal evento
e agora assistissem à sua consumação.
Os
atemporais – pareceu-lhe – também estavam curiosos em relação
a eles. Seus olhos flamejantes devolviam o olhar dos tentáculos
periscópicos, e certos apêndices estranhos, em forma de chifres,
de suas altas coroas começaram a tremer de modo inquisitivo, como
se recebessem impressões desconhecidas. Então, subitamente, cada
um dos três pôs para fora um único braço sem juntas, emitindo no
ar, em forma de leque, sete longos raios de luz roxa em vez de mãos.
Os
raios, sem dúvida, eram capazes de receber e de produzir impressões
tácteis. Lenta e deliberadamente, como dedos tateantes, eles se
estendiam, e cada um dos leques, curvando-se aereamente onde
houvesse uma superfície redonda, começou a brincar, num fulgor rítmico,
em torno da criatura de cabeça dupla que se achasse mais próxima.
Esses
seres, como se alarmados ou desconfortáveis, recuaram e procuraram
evitar os raios. Os dedos roxos estenderam-se, circundaram-nos, sem
poderem ser evitados, percorrendo em volta deles zonas cada vez mais
abrangentes e compactas, como para explorar toda a sua anatomia.
Desde as duas cabeças até os discos almofadados que lhes serviam
de pés, os seres eram fustigados inteiramente por anéis fluidos e
estrias de luz.
Outros
membros da tripulação, fora do alcance dos raios curiosos,
recuaram para uma distância ainda mais segura. Um deles levantou
alguns de seus membros num gesto rápido e enfático. Pelo que
Chandon pôde ver, a criatura não tocara em nenhum dos maquinismos
da embarcação. Mas, como se obedecendo ao gesto, um enorme
mecanismo, arredondado e parecido com um espelho, começou a girar
em seus caixilhos, logo acima, ao redor de eixos potentes.
O
mecanismo parecia feito de alguma substância pálida e brilhante,
nem vidro nem metal. Cessando a rotação, como se tivessem alcançado
o foco pretendido, as lentes emitiram um raio de luz homogênea, que
de algum modo lembrou a Chandon a cintilação fria e imóvel do
mundo eterno. Esse raio, atingindo as entidades atemporais, produziu
efeitos fortemente repressivos.
Imediatamente
os raios tateantes desistiram da perquirição e retornaram para os
braços sem articulações, que por sua vez se retraíram. Os olhos
fecharam-se como jóias escondidas, os padrões opalinos tornaram-se
frios e baços, e os seres estranhos, meio divinos, pareceram perder
seus ângulos complexos, para recobrar sua quietude original de
cristais imóveis. No entanto, de algum modo, estavam vivos ainda,
retinham ainda as linhas nascentes de sua eflorescência
sobrenatural.
Em
seu medo e seu espanto perante esse quadro miraculoso, Chandon
automaticamente se libertara das ataduras de couro, erguendo-se da
rede, e estava de pé com a face colada à parede do cilindro. Tal
mudança de posição foi notada pela tripulação, que por um
momento voltou para ele todos os tentáculos-olhos, erguendo-os e
baixando-os, enquanto acompanhavam a involução dos Atemporais.
Então,
em resposta a outro gesto enigmático de um dos membros, as lentes
gigantes rodaram mais um pouco, e o raio glacial começou a mudar e
a se alargar, até que atingiu o cilindro, incluindo em seu
descolorido alcance as figuras dinâmicas.
O
homem da Terra teve a sensação de ser capturado pela torrente imóvel
de alguma coisa que era indizivelmente densa e viscosa. Seu corpo
pareceu congelar, seus pensamentos se arrastaram com dolorosa lentidão
através de algum meio resistente que permeava o seu próprio cérebro.
Não era a suspensão total dos processos vitais que o seu contato
com a eternidade acarretara. Era, antes, a desaceleração desses
processos, a sujeição a algum ritmo indizivelmente retardado de
movimento temporal e seqüência.
Anos
inteiros pareceram transcorrer entre as batidas do coração de
Chandon. O simples dobrar de seu dedo mínimo teria levado
qüinqüênios. Através do tempo tediosamente esticado, sua mente esforçava-se
para formar um único pensamento: a suspeita de que seus captores
tivessem se alarmado com sua mudança de posição e exercessem
alguma turbulenta demonstração de força sobre ele, tal como sobre
os Atemporais.
Só
depois de mais algumas décadas é que ele concebeu outro
pensamento: que ele mesmo fosse, talvez, tomado como um dos seres
semidivinos pelos alienígenas que viajavam no tempo. Tinham-no
encontrado na eternidade, entre as colunas imensuráveis, e como iam
saber que ele, tal como eles próprios, viera originalmente de um
mundo temporal?
Com
seu senso de duração alterado, o homem da Terra não podia formar
uma concepção apropriada da extensão da viagem no espaço-tempo.
Para ele, foi como uma outra eternidade, pontuada a intervalos de
lustros pela rumorejante vibração da maquinaria. Para a sua percepção
visual retardada, a tripulação da nave parecia mover-se com incrível
morosidade, por gradações imperceptíveis. Ele, junto com seus
estranhos companheiros, tinha sido segregado pelo raio congelante
numa prisão de tempo lento, enquanto a nave ela mesma mergulhava
nas dimensões sem fundo da infinitude secular e cósmica!
Finalmente
a viagem terminou. Chandon sentiu o alvorecer gradual de uma
luminosidade insinuante que substituiu o brilho rubro da embarcação
por uma aguda brancura. Por gradações infinitas, as pareces
tornaram-se perfeitamente transparentes, junto com os maquinismos, e
ele notou que a luz provinha de um mundo exterior. Imagens imensas,
multiformes e intrincadas, começaram a brotar com a morosidade da
própria criação sobre o esplendor coruscante. Então – sem dúvida
com o fim de permitir a remoção dos cativos – o raio retardador
foi desligado, permitindo a Chandon recobrar suas faculdades normais
de cognição e movimento.
Ele
descobriu uma visão impressionante através da parede translúcida,
cuja transparência se devia talvez ao completo desligamento da força
motriz da embarcação. Viu que a embarcação repousava sobre uma
área em forma de diamante, cercada por colunas arquitetônicas cuja
magnitude se impunha como um peso inamovível aos seus sentidos.
Lá
em cima, num céu laranja de sonho, distinguiu as volutas bulbosas de
pilares atlânticos com capitéis em plataforma, miríades de
estranhas torres em forma de cruzes; avistou, com espanto, a
maravilha misteriosa de cúpulas antinaturais, que se pareciam com
pirâmides invertidas. Viu os pináculos espiralados que pareciam
suportar um fardo inacreditável de terraços, as paredes oblíquas,
como escarpas estriadas de montanhas, as quais formavam a base de cúmulos
inimagináveis. Todos eram feitos de algum tipo de pedra negra e
brilhante, algum tipo de mármore extraído de um Érebo ultracósmico.
Interpunham suas massas pesadas, ameaçadoras e sinistras, entre
Chandon e as chamas de um sol oculto que seria incomparavelmente
mais brilhante que o nosso.
Cegado
pelo clarão e atordoado por essas altíssimas construções,
consciente também de uma opressão incomum em todas as suas sensações
corporais, sem dúvida devida ao aumento de gravidade, o homem da
Terra voltou sua atenção para o espaço à sua frente. A área em
forma de diamante – via agora – estava apinhada de gente
parecida com a tripulação da nave. Como insetos gigantescos,
prateados, de corpos globulares, afluíam de todas as direções
para o pavimento escuro. Formando um cordão em torno da nave, havia
espelhos colossais, da mesma espécie que aquele que emitia o raio
retardador. As pessoas que chegavam paravam a uma curta distância,
deixando um espaço vago entre as máquinas de raios e a embarcação,
como se para o desembarque da população e dos prisioneiros.
Agora,
como se obedecendo a algum mecanismo oculto, uma enorme porta
circular se abriu na parede inconsútil. O braço recolhido começou
a estender-se e cobriu um dos seres atemporais com sua rede de tentáculos.
Logo a misteriosa entidade, até então imóvel e passiva, foi
carregada através da abertura e depositada no pavimento do lado de
fora.
O
braço retornou e repetiu a operação com a segunda figura, a qual,
nesse meio tempo, aparentemente notara a cessação do raio
retardador e parecia menos submissa do que a sua companheira.
Ofereceu uma resistência algo hesitante e começou a inchar
enquanto os tentáculos a envolviam, exibindo pseudópodes e lançando
raios tateantes que tocaram delicadamente na malha apertada. Porém,
em instantes, esse segundo ser se juntou a seu companheiro no mundo
exterior.
Ao
mesmo tempo, uma espantosa mudança começou a manifestar-se na
terceira figura. Chandon sentiu como se presenciasse a epifania de
algum deus há muito recolhido e velado, o qual agora mostrava o seu
verdadeiro aspecto, ao romper a crisálida da matéria. A transformação
que ocorreu foi como se alguma rija estalagmite desabrochasse numa
forma indescritível de nuvem e fogo. Num momento apocalíptico, a
coisa pareceu expandir-se, arremessar-se para o alto, mudar de substância,
desenvolver órgãos e atributos que só poderiam pertencer a um estágio
supermaterial da evolução. Éons de vida estelar, de vida terrena,
da lenta alquimia dos átomos, foram abreviados naquele único
instante.
Chandon
não podia formar nenhuma idéia clara do que estava acontecendo. A
metamorfose escapava por demais ao alcance interpretativo dos
sentidos humanos. Ele viu alguma coisa elevar-se à sua frente,
enchendo a embarcação até o teto e pressionando terrivelmente
contra a superfície curva e transparente. Então, com violência
incalculável, a nave se partiu em mil fragmentos alados, brilhantes
e vítreos, os quais uivaram com uma nota alta e aguda de coisas
torturadas enquanto voavam e se precipitavam em todas as direções.
Antes
que os últimos fragmentos caíssem, o cilindro do tempo foi
apanhado e elevado no ar como por uma mão poderosa. Se o gigante o
tinha agarrado com um de seus membros não-humanos ou se o cilindro
fora erguido por força magnética, Chandon nunca o saberia. Tudo o
de que se lembraria depois era de uma subida leve e aérea, na qual
experimentou um alívio súbito e completo da pesada gravidade
daquele planeta desconhecido.
Ele
pareceu flutuar rapidamente até uma altura difícil de estimar,
devido à ausência de uma escala familiar, e então o cilindro
pousou no ombro nebuloso do Atemporal, estabelecendo-se ali com a
segurança com que teria pousado na borda de algum mundo distante,
isolado e altíssimo no espaço.
Achou-se
além de todo espanto, surpresa ou confusão. Como num sonho cataclísmico,
ele se entregou aos desdobramentos do rápido milagre. Espiando lá
do alto, viu logo acima, como o mais elevado topo de alguma montanha
escarpada, exibindo sóis tempestuosos em lugar de olhos, a cabeça
do ser que havia despedaçado a nave do tempo e se erguera sobre as
ruínas como algum gênio rebelde recém-libertado.
Muito
abaixo, discerniu a área negra em forma de diamante, coberta por um
enxame daquele povo prateado. Do pavimento se elevaram para o céu,
como as nuvens de uma monstruosa explosão, as formas crescentes e móveis
dos outros atemporais. Tumultuosas, aterradoras, ciclônicas,
postaram-se ao lado do primeiro, para completarem a trindade
rebelde. No entanto, por mais vastos e altos que tivessem se
tornado, as construções à sua volta eram ainda mais altas; os pináculos
com os terraços, a multidão de pirâmides, as torres cruciformes
pareciam ainda encará-los, em meio à atmosfera cintilante e
ardente, como guardiões colossais e negros de algum inferno
transgalático.
Mil
impressões acorreram a Chandon. Sentiu as energias divinas e
ilimitadas, despertadas de seu sono eterno, que agora afloravam com
tamanha violência no tempo. E sentiu, a lutar contra elas, num
esforço de subjugá-las e restringi-las, as radiações irritantes
e as forças malignamente concentradas do novo mundo. A própria luz
se tornou inimiga e tirânica jorrando violentamente, o negrume dos
domos e peristilos sombrios era como a pancada esmagadora de um
milhar de maças silenciosas, brandidas pelos zangados, cruéis e
silenciosos anaquins. As grandes lentes sobre o pavimento, rodopiando,
refulgiam para o alto como os olhos de ciclopes boreais, assestando
seus raios paralisadores contra os gigantes. A intervalos, o céu
resplandecia entre clarões brancos e ardentes, como o reflexo de um
milhão de fornalhas remotas; e chegavam até Chandon, por toda
parte através do ar palpitante, clangores ásperos, graves, como
sinos batendo ou tambores ribombando tão alto como se mundos
explodissem.
As
grandes colunas ao redor pareceram escurecer, como se tivessem
acumulado em si algum negrume mais positivo e maligno e o estivessem
irradiando para entorpecer os sentidos. Mas, para além disso, para
além de toda percepção física, Chandon sentiu o magnetismo negro
que aflorava em ondas incessantes, as quais intentavam romper as
barreiras de sua vontade, procurando usurpar sua mente para subjugar e
moldar seus pensamentos em formas de monstruosa escravidão.
Inexprimíveis
e envoltos por um atropelo de imagens de uma terrível estranheza,
chegavam a ele os apelos de uma malignidade inumana, de um ódio
trans-estelar. Até mesmo as pedras dos colossais edifícios
pareciam juntar-se aos cérebros daquela gente exótica num esforço
para retomar o controle sobre Chandon e os três Atemporais!
Obscuramente,
o homem da Terra compreendeu. Ele devia não somente se submeter aos
seres prateados, como também obedecer em tudo à sua vontade. Ele e
seus companheiros foram trazidos da eternidade com um propósito único:
ajudar os seus captores em alguma guerra estupenda contra uma gente
rival do mesmo mundo. Tal como a humanidade emprega na guerra
explosivos de potência titânica, as criaturas prateadas tinham
pretendido empregar as energias não-temporais dos Eternos para
desequilibrar o poder dos inimigos! Tinham descoberto a rota que
leva, através de dimensões secretas, do tempo à intemporalidade.
Com audácia quase demoníaca, tinham planejado e executado a
inaudita abdução, supondo que Chandon fosse uma das entidades
eternas, a concentrar um imenso élan e um poder quase divino.
As
ondas de maléfica cooptação elevaram-se ainda mais. Chandon
sentiu-se inundado, alagado. Com uma clareza assombrosa, surgiu em
sua mente a imagem do inimigo contra o qual fora aliciado. Viu os
panoramas aberrantes de lugares remotos, não-terrenos, os
ajuntamentos imensuráveis de cidades inumanas, a estender-se sob um
sol incandescente e mais vasto que Antares. Por um momento, sentiu
brotar em si o ódio contra essas terras e cidades, mesclado a um
rancor indescritível de psicologia alienígena.
Então,
como se tivesse sido elevado muito acima dele pelo gigante sobre
cujo ombro viajava, Chandon reconheceu que o mar negro já não o
fustigava. Estava livre do mesmerismo viscoso e não mais lhe
ocorriam as imagens e emoções que tinham invadido sua mente. Um
bem-estar milagroso e uma segurança sublime o envolveram: ele era o
centro de uma esfera de força resistente e resiliente, que nada
podia sobrepujar ou penetrar.
Como
se sentado num trono no alto de uma montanha, viu que a tríade demiúrgica,
desdenhando e desafiando os pigmeus lá embaixo, tinha retomado seu
crescimento mágico, continuando a subir até ultrapassar o nível
dos mais altos torreões. Um momento mais, e ele podia enxergar
através das fileiras babélicas de pedra, cheias de gente prateada,
e ver as avenidas exteriores de uma metrópole titânica,
entrevendo, mais além, os horizontes profundíssimos do planeta sem
nome.
Pareceu-lhe
conhecer os pensamentos dos Atemporais, quando olharam adiante para
esse mundo cujo povo impiedoso sonhara escravizar a sua essência
ilimitada. Soube que eles tudo viram e compreenderam num lance.
Sentiu que se detinham com momentânea curiosidade e sentiu a ira rápida
e implacável, a decisão irrevogável que se seguiu.
Logo,
deliberada e experimentalmente, como se testassem seus poderes ainda
não exercitados, os três seres começaram a destruir a cidade. Da
cabeça daquele que transportava Chandon emanou um círculo de chama
carmesim, que se interrompeu por um instante, que rodopiou e cresceu
num grande redemoinho enquanto vergava para baixo e atingia um dos
edifícios mais altos. Sob aquela coroa flamejante, os domos
sobrenaturalmente oblíquos e as pirâmides invertidas estremeceram
e pareceram expandir-se como um nevoeiro negro. Perderam seus
contornos sólidos, brilharam, adquiriram o aspecto de areia em
movimento, subiram para o céu em círculos rítmicos de irisações
sombrias e mortiças, apagando-se e desaparecendo com o fulgor
intolerável.
Dos
Atemporais emanavam os agentes visíveis e invisíveis da aniquilação
– lentamente, a princípio, e depois com uma aceleração de
ciclone, como se sua raiva aumentasse ou como se estivessem cada vez
mais absorvidos naquele jogo aterrador e semidivino.
De
seus corpos celestiais, como de altos penhascos, jorravam rios vivos
e furiosas cataratas de energia, despencavam raios, globos, carretéis
elipsóides de fogo branco ou multicor, caindo sobre a cidade
condenada como uma chuva de meteoros devastadores. Os cumes dos edifícios
se derretiam numa lava disforme, as colunas e os terraços se
dissolviam em vapor, colhidos pela tempestade candente. A cidade
escorria em torrentes de lava, desaparecia em espirais de poeira
espectral, elevava-se para o ar em chamas negras, em auroras
tenebrosas.
Os
Atemporais avançavam sobre as ruínas, abrindo passagem com
facilidade. Às suas costas, sobre os descampados negros que iam
deixando, focos de dissolução apareciam e mesmo o solo e as pedras
se dissolviam em vórtices velozes, espiralados, que devoravam a
superfície do planeta e escavavam sua crosta. Como se absorvessem
em sua própria substância as moléculas e os elétrons de tudo o
que destruíam, os Atemporais se tornavam mais altos e mais
volumosos.
Com
sobrenatural distanciamento e isenção, Chandon a tudo assistia do
seu fantástico observatório. Numa zona móvel de paz inviolada,
ele assistia à chuva demoníaca que consumia aquela Sodoma ultragalática,
via os cinturões de devastação que se espraiavam e irradiavam,
alargando-se por todos os quadrantes. De uma altura cada vez maior,
espiava para vastos horizontes, que fugiam como se num terror
desvairado frente aos gigantes atemporais.
Cada
vez mais rápido agiam os globos e raios letais. Multiplicando-se em
pleno ar, geravam outros, incontáveis, sendo lançados a toda
parte, como os dentes do dragão da fábula, para alcançar todas as
longitudes do grande planeta até os pólos. A cidade abatida foi
logo deixada para trás, e os gigantes marcharam sobre mares e
desertos monstruosos, sobre largas planícies e altos paredões, do
topo dos quais outras cidades eram vistas a reluzir como punhados de seixos.
Vagalhões
de fogo atômico seguiam adiante, varrendo os Alpes prodigiosos.
Globos alados, implacáveis, evaporavam num átimo mares inteiros,
transformando desertos em oceanos de lava encapelada. Surgiam arcos,
círculos, quadriláteros de aniquilação, crescendo sempre, os
quais afundavam depois nas entranhas da terra.
Um
negrume caótico embaciava o fulgor do meio-dia. Como um ciclope
sangrento, um Laocoonte vermelho a pelejar contra serpentes de
nuvens e sombra, o poderoso sol parecia vacilar em pleno céu,
oscilando de um lado para o outro enquanto o mundo embaixo
turbilhonava sob aquele tropel de macrocósmicos titãs. Fumaradas
mefíticas velavam as paisagens, erguendo-se por um instante para
revelar o naufrágio de continentes ofegantes.
Uma
vez libertas, as energias do mundo condenado se somavam àquele caos
estupendo. Nuvens que eram negros Himalaias recortados por raios
colossais seguiam o rastro dos destruidores. O solo partia-se,
deixando vazar os fogos internos em gêisers vulcânicos, em
catadupas que subiam até o céu. O nível dos mares baixava,
revelando picos e ruínas há muito submersas, enquanto as águas
bramiam em seus canais inferiores e eram sugadas por fendas abertas
pelo terremoto para alimentar os caldeirões ferventes de uma irrupção
infernal.
Como
se Tifão se libertasse de seu cárcere subterrâneo, o ar
enlouqueceu de trovões, de bramidos que eram como se espirais de
chamas saltassem das profundezas rubras de um inferno em derrocada,
de gemidos e vagidos como se gênios fossem aprisionados pelo
desmoronamento de montanhas em algum abismo imensurável, de uivos
como o de demônios frenéticos libertados de seus túmulos primevos.
Por
sobre o tumulto, subindo cada vez mais, Chandon pairava, até que
viu tudo da calma altitude do éter, até que olhou para baixo, de
um mirante que era como o sol, para um orbe fervente e despedaçado
e viu de frente o próprio sol nas alturas do espaço. O gemido
cataclísmico, o trovão furioso pareceu esmorecer. Os mares de ruína
catastrófica turbilhonavam como um remanso raso aos pés dos
Atemporais. Os maelstroms furiosos e devoradores nada mais
eram que um jorro efêmero de pó levantado pela passada casual de
um transeunte.
Então,
embaixo, não havia mais a ruína nebulosa de um mundo. O ser sobre
cujo ombro ele repousava, como um átomo sobre uma amurada planetária,
caminhava através do vazio cósmico; e, impulsionado pela sua
partida, o globo ruinoso foi arremessado para o abismo, seguindo o
sol agonizante em torno do qual havia girado com todos os seus
enigmas mortos de vida e civilização alienígena.
Vagamente,
o homem da Terra viu a vastidão inconcebível que os Eternos haviam
alcançado. Distinguiu o seus contornos luminescentes, as massas
imprecisas de suas formas, com as estrelas por detrás, vistas como
a cauda luminosa dos cometas. Estava pousado sobre uma espécie de nebulosa, imensa como a órbita dos sistemas, que se movia com
velocidade superior à da luz, atravessando galáxias desconhecidas
e dimensões jamais sondadas do espaço e do tempo. Sentiu o
torvelinho imensurável do éter, viu o rodopio labiríntico das
estrelas, que se formavam e desapareciam e eram substituídas pelos
padrões fugidios de outros labirintos estelares. Numa segurança
sublime, dentro de sua esfera de conforto e movimento onírico,
Chandon foi carregado sem saber por que nem para onde e, como o
participante de um sonho prodigioso, sem sequer se colocar questões
como essas.
Após
infinitos de luz moribunda, de vazios a rodopiar e a desmoronar, após
a travessia de muitos céus, de inumeráveis sistemas, veio-lhe a
sensação de uma parada súbita. Por um momento, do abismo
silencioso, avistou um pequenino sol com seu cortejo de nove
planetas, e se perguntou vagamente se não seria algum corpo
astronômico familiar.
Depois,
com velocidade e leveza inefáveis, sentiu-se caindo em direção a
um dos mundos mais próximos. As massas imprecisas e cada vez
maiores de seus mares e continentes vieram ao seu encontro. Era como
se ele descesse, meteoricamente, para uma região de montanhas
escarpadas, cujos cumes nevados se elevavam em meio às agulhas dos
pinheirais.
Ali,
como se tivesse sido depositado por uma mão todo-poderosa, o
cilindro pousou, e Chandon olhou para fora com o espanto e o susto
de um sonhador que desperta, para ver ao seu redor as paredes de seu
próprio laboratório nas Sierras! Os Atemporais, oniscientes, por
algum benevolente capricho, tinham-no trazido de volta ao seu próprio
lugar no tempo e no espaço e então partiram, talvez para a
conquista de outros universos, talvez para encontrar de novo o mundo
branco e eterno de sua origem e para se encasular outra vez no pálido
nirvana da contemplação imutável.
(Tradução
de Renato Suttana
– dedicada
a Alberto da Cunha Melo)
modificado
em 1-6-2005
|