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Max Ernst, O festim dos deuses

 

OLHO DE TURISTA

 

(Renato Suttana)

 

Quem gosta de fazer turismo não tem tempo para reflexões do gênero “Kant nunca saiu de sua cidade natal”. O apreciador não se detém, e fazer turismo implica mobilidade, sobretudo agilidade. Fazer turismo é passar de um ponto para o outro, sabendo-se que no instante seguinte se deverá passar para um terceiro. Deter-se, hesitar, não saber o que fazer em seguida é perder instantes preciosos que deveriam ser aproveitados com – fazer turismo!, e quem se detém acaba ultrapassado. Um bom turista é uma pessoa que sabe dominar o movimento e, sobretudo, sabe lidar com a inércia natural de todas as coisas. Quando desenvolve certas habilidades, pode até se tornar um profissional: aquele que, mais do que isso, descobriu um modo de se colocar em movimento perpétuo. Jamais parando para ver em detalhes o que quer que seja que apareça em seu caminho para ser visto, o turista profissional exerce a sua arte (caso possamos falar em arte) com uma destreza de mestre: saber ver apenas o essencial, o que importa ao momento, é que faz dele um especialista e lhe permite manter em dia a sua coleção de recordações.

 

Para entender isso, basta folhear o seu álbum de fotografias ou dar uma olhadela naquelas que ele emoldurou num quadro e pendurou no corredor, a fim de patentear às visitas que ele não está mentindo quando diz que visitou todos esses lugares. Visitar e ser visitado, eis os dois extremos da sua vaidade. Mas pode ser que o injusticemos, chamando-o de vaidoso. O turista profissional atingiu um estágio de interesse (ou talvez, digamos, desinteresse) pelas coisas que o coloca acima da vaidade. Ele não viaja apenas para ostentar, e pensar assim seria subestimá-lo, principalmente em se sabendo que há no seu interesse por lugares (e talvez pelas coisas que há nesses lugares) algo como um sentimento de missão – o sentimento de que não se viaja inutilmente e, muito menos, impunemente. Viajar é, mais do que o melancólico “perder países” de Fernando Pessoa, enriquecer o acervo de imagens da memória, quando não for o dos assuntos de que se pode tratar numa conversa entre amigos; mas ainda seria injustiçá-lo dizer que ele viaja só para ter o que contar. Viajando, ele cumpre a missão de viajar, escavando um veio de riqueza com o qual os que ficaram em casa só podem mesmo sonhar.

 

A riqueza de que se abastece o turista profissional está, de certo modo, patenteada não no álbum de fotos em si, no fato de que tenha um, mas em certos detalhes que se vêem lá e que a olhos inexpertos podem passar despercebidos. Longe de nós dizer que somos nós mesmos especialistas em tais assuntos. Mas como não reconhecer que naquela foto em que o turista aparece acocorado ao pé do monumento, ou abraçado à imagem de bronze do poeta, ou mesmo sentado nos braços de algum herói ou imperador (quem nunca teve o desejo de se deitar na cama da princesa Isabel?) se dá uma sutil tomada de posse, um movimento discreto mas resoluto de apropriação do mundo, que aqueles que não estiveram lá não podem avaliar senão com despeito e, por que não dizer, certo sentimento de culpa? Pois quem negará o fato de que o ter ido lá do turista profissional nos ensina não somente que alguém deveria ter ido, como também que a nossa preguiça e a nossa recusa em irmos tendem a deixar o mundo entregue a si mesmo, sendo isso muito mau para o mundo e para a nossa consciência? Alguém teria de ir, é o que nos dizem as fotografias. E aquela tomada de posse, e aquele beijo que se dá ao busto do poeta são a prova de que, não importando a nossa indolência, sempre existe gente disposta a fazê-lo.

 

Porém não é gratuitamente que o turista profissional cumpre a sua missão. Ele exigirá um preço pelo trabalho, e esse preço se expressa tanto nos gestos de posse que ele ensaia nas fotografias, quanto nos julgamentos que tende a produzir a respeito dos lugares visitados – julgamentos cuja severidade deveríamos temer. O lugar que o turista visita é o lugar que adquire existência, pelo menos para ele, no instante em que o clique (ou o clarão) da câmera fotográfica o efetiva e consagra. Mas nem todos alcançam essa graça. Mesmo em situações que o turista não hesitará em registrar (e os registros mais essenciais – quaisquer que sejam eles – ficarão gravados em sua memória), o lugar em si pode falhar, isto é, o turista produzirá sobre ele um julgamento severo, que talvez não o abençoe a ponto de lhe conceder o direito à existência. O movimento é mais sutil ainda do que o outro, mas não menos importante, pois é aqui que certas estranhezas aparecem na experiência do turista profissional, estranhezas que têm a ver com lembranças e esquecimentos, posses e reprovações, enlevos e fastios e que não se poderia descrever com a clareza desejável. Cidades inteiras deixaram de existir apenas porque o turista as visitou e emitiu sobre elas um parecer desfavorável? A natureza deveria ter se esmerado um pouco mais na fabricação daquela praia, daquela montanha, daquele vale, ou ainda falta muito para se chegar à paisagem perfeita, capaz de proporcionar satisfação verdadeira – e não apenas suscitar um franzir de sobrancelha ou um muxoxo – ao julgador exigente?

 

Que a natureza esteja aí para ser apreciada em termos de sim e de não ou para que digamos a seu respeito que nos agradou ou deixou de nos agradar (mesmo o mais vertiginoso dos abismos ou o deserto mais desolador) – tudo isso é coisa para admirar. Houve um tempo em que uma praia era apenas uma praia e em que um rochedo à beira-mar era apenas um rochedo à beira-mar. Essa época passou, e hoje em dia mal podemos olhar para um braço de mar sem imaginá-lo enquadrado num cartão postal ou percorrido por um barco repleto de fotógrafos ávidos. Não é preciso mencionar os museus, porque estes costumam oferecer apenas oportunidades para o turista exercitar o seu enfado. É nos lugares, é nas paisagens que sua fome encontra alimento – como se velhas cidades tivessem sobrevivido a milênios de uso, intempéries e devastações apenas para que uma viúva passe por lá e as considere mesquinhas, feias e desconfortáveis. Foi ali que Alexandre venceu sua batalha mais sangrenta? Provavelmente alguém dirá que o lugar é inóspito, e que o clima é ruim e as estalagens são péssimas, e quanto a isso não há o que fazer.

 

Percorrendo o mundo numa casca de noz, o turista profissional vai a todos os lugares, abre todas as portas e mete o nariz nos sarcófagos das múmias. Não lhe custa nada, ou lhe custa apenas o preço do bilhete ou do “pacote”, incluso o direito de fazer com que o próprio nariz encubra na fotografia o detalhe mais importante do monumento. Neste ponto, ele está bem à vontade, tal como está à vontade equilibrando-se sobre um peitoril na beira do precipício. Para nós pode parecer arriscado, mas para ele é apenas um esporte. E é o que importa. Se lhe vendessem o bilhete de passagem, ele viajaria até Marte e traria de lá um punhado de terra. E voltaria dizendo que, embora penosa, a aventura da viagem valeu a pena, mas teria sido mais divertida se alguém aparecesse para lhe vender uma cerveja.

 

janeiro/2007

 

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