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OLHO DE TURISTA
(Renato Suttana)
Quem gosta de fazer turismo não tem
tempo para reflexões do gênero “Kant nunca saiu de sua cidade natal”. O apreciador não se detém, e fazer turismo implica
mobilidade, sobretudo agilidade. Fazer turismo é passar de um ponto
para o outro, sabendo-se que no instante seguinte se deverá passar
para um terceiro. Deter-se, hesitar, não saber o que fazer em
seguida é perder instantes preciosos que deveriam ser aproveitados
com – fazer turismo!, e quem se detém acaba ultrapassado. Um bom
turista é uma pessoa que sabe dominar o movimento e, sobretudo, sabe
lidar com a inércia natural de todas as coisas. Quando desenvolve
certas habilidades, pode até se tornar um profissional: aquele que, mais
do que isso, descobriu um modo de se colocar em movimento perpétuo.
Jamais parando para ver em detalhes o que quer que seja que apareça
em seu caminho para ser visto, o turista profissional exerce a sua
arte (caso possamos falar em arte) com uma destreza de mestre: saber
ver apenas o essencial, o que importa ao momento, é que faz dele um
especialista e lhe permite manter em dia a sua coleção de
recordações.
Para entender isso, basta folhear o seu álbum de fotografias
ou dar uma olhadela naquelas que ele emoldurou num quadro e pendurou no corredor, a fim de
patentear às visitas que ele não está mentindo quando diz que
visitou todos esses lugares. Visitar e ser visitado, eis os dois
extremos da sua vaidade. Mas pode ser que o injusticemos, chamando-o
de vaidoso. O turista profissional atingiu um estágio de interesse
(ou talvez, digamos, desinteresse) pelas coisas que o coloca acima
da vaidade. Ele não viaja apenas para ostentar, e pensar assim seria
subestimá-lo, principalmente em se sabendo que há no seu interesse
por lugares (e talvez pelas coisas que há nesses lugares) algo como
um sentimento de missão – o sentimento de que não se viaja
inutilmente e, muito menos, impunemente. Viajar é, mais do que o
melancólico “perder países” de Fernando Pessoa, enriquecer o acervo
de imagens da memória, quando não for o dos assuntos de que se
pode tratar numa conversa entre amigos; mas ainda seria injustiçá-lo
dizer que ele viaja só para ter o que contar. Viajando, ele
cumpre a missão de viajar, escavando um veio de riqueza com o
qual os que ficaram em casa só podem mesmo sonhar.
A riqueza de que se abastece o turista
profissional está, de certo modo, patenteada não no álbum de
fotos em si, no fato de que tenha um, mas em certos detalhes que se vêem
lá e que a olhos inexpertos podem passar despercebidos. Longe de nós
dizer que somos nós mesmos especialistas em tais assuntos. Mas como
não reconhecer que naquela foto em que o turista aparece acocorado
ao pé do monumento, ou abraçado à imagem de bronze do poeta, ou
mesmo sentado nos braços de algum herói ou imperador (quem nunca
teve o desejo de se deitar na cama da princesa Isabel?) se dá uma
sutil tomada de posse, um movimento discreto mas resoluto de
apropriação do mundo, que aqueles que não estiveram lá não
podem avaliar senão com despeito e, por que não dizer, certo
sentimento de culpa? Pois quem negará o fato de que o ter ido lá
do turista profissional nos ensina não somente que alguém deveria
ter ido, como também que a nossa preguiça e a nossa recusa em irmos
tendem a deixar o mundo entregue a si mesmo, sendo isso muito mau
para o mundo e para a nossa consciência? Alguém teria de ir, é o que
nos dizem as fotografias. E aquela tomada de posse, e aquele beijo
que se dá ao busto do poeta são a prova de que, não importando a
nossa indolência, sempre existe gente disposta a fazê-lo.
Porém não é gratuitamente que o turista
profissional cumpre a sua missão. Ele exigirá um preço pelo
trabalho, e esse preço se expressa tanto nos gestos de posse que ele
ensaia nas fotografias, quanto nos julgamentos que tende a produzir
a respeito dos lugares visitados – julgamentos cuja severidade
deveríamos temer. O lugar que o turista visita é o lugar que adquire
existência, pelo menos para ele, no instante em que o clique (ou o
clarão) da câmera fotográfica o efetiva e consagra. Mas nem todos
alcançam essa graça. Mesmo em situações que o turista não hesitará
em registrar (e os registros mais essenciais – quaisquer que sejam
eles – ficarão gravados em sua memória), o lugar em si pode
falhar, isto é, o turista produzirá sobre ele um julgamento
severo, que talvez não o abençoe a ponto de lhe conceder o direito à
existência. O movimento é mais sutil ainda do que o outro, mas não
menos importante, pois é aqui que certas estranhezas aparecem na
experiência do turista profissional, estranhezas que têm a ver com
lembranças e esquecimentos, posses e reprovações, enlevos e fastios
e que não se poderia descrever com a clareza desejável. Cidades
inteiras deixaram de existir apenas porque o turista as visitou e
emitiu sobre elas um parecer desfavorável? A natureza deveria ter se
esmerado um pouco mais na fabricação daquela praia, daquela
montanha, daquele vale, ou ainda falta muito para se chegar à
paisagem perfeita, capaz de proporcionar satisfação verdadeira – e
não apenas suscitar um franzir de sobrancelha ou um muxoxo – ao
julgador exigente?
Que a natureza esteja aí para ser
apreciada em termos de sim e de não ou para que
digamos a seu respeito que nos agradou ou deixou de nos agradar
(mesmo o mais vertiginoso dos abismos ou o deserto mais desolador) –
tudo isso é coisa para admirar. Houve um tempo em que uma praia era
apenas uma praia e em que um rochedo à beira-mar era apenas um
rochedo à beira-mar. Essa época passou, e hoje em dia mal podemos
olhar para um braço de mar sem imaginá-lo enquadrado num cartão
postal ou percorrido por um barco repleto de fotógrafos ávidos. Não
é preciso mencionar os museus, porque estes costumam oferecer apenas
oportunidades para o turista exercitar o seu enfado. É nos lugares,
é nas paisagens que sua fome encontra alimento – como se
velhas cidades tivessem sobrevivido a milênios de uso, intempéries e
devastações apenas para que uma viúva passe por lá e as considere
mesquinhas, feias e desconfortáveis. Foi ali que Alexandre venceu
sua batalha mais sangrenta? Provavelmente alguém dirá que o lugar é
inóspito, e que o clima é ruim e as estalagens são péssimas, e
quanto a isso não há o que fazer.
Percorrendo o mundo numa casca de noz, o
turista profissional vai a todos os lugares, abre todas as portas e
mete o nariz nos sarcófagos das múmias. Não lhe custa nada, ou lhe
custa apenas o preço do bilhete ou do “pacote”, incluso o direito
de fazer com que o próprio nariz encubra na fotografia o detalhe
mais importante do monumento. Neste ponto, ele está bem à vontade,
tal como está à vontade equilibrando-se sobre um peitoril na beira
do precipício. Para nós pode parecer arriscado, mas para ele é
apenas um esporte. E é o que importa. Se lhe vendessem o bilhete de
passagem, ele
viajaria até Marte e traria de lá um punhado de terra. E voltaria
dizendo que, embora penosa, a aventura da viagem valeu a pena,
mas teria sido mais divertida se alguém aparecesse para lhe vender uma
cerveja.
janeiro/2007
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