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O LABIRINTO

 

(Renato Suttana)

 

Uma parte é o labirinto, e a outra parte desconheço. Uma parte permanece visível, aparentemente estável, e a outra parte parece oscilar numa claridade difusa, como se o que nela fosse visível não fizesse parte dela, de maneira alguma. E a parte visível, isto é, a parte que penso ser o labirinto, é extremamente insatisfatória; enquanto a outra, que também é visível, mas de uma visibilidade pouco confiável, parece ser a parte onde eu deveria estar – aquela para a qual eu fugiria, se pudesse ou se houvesse em mim qualquer disposição para fugir. A parte que chamo de labirinto é a parte onde estou, embora não deseje estar nela e embora, de fato, não me diga nenhum respeito. É nítida, lenta, clara e estável até o último grau da insatisfação, e estar nela é estar – constato agora – infinitamente insatisfeito. Percorro-a, cansado, oprimido pelo tédio que me causa, e penso na outra parte, que talvez não exista senão no pensamento que tenho dela e que em nada se fundamenta senão na simples idéia de que eu poderia saltar daqui para lá.

 

A parte luminosa, apetecível, não é mais que um reflexo da parte visível (que também é luminosa, mas que me causa fastio), e a diferença que há entre elas é a simples idéia de que eu poderia transitar de uma para a outra, fazendo com que uma se convertesse na outra e vice-versa de repente. Ou me encontro de fato nas duas partes ao mesmo tempo? A ser assim, haveria uma terceira parte, onde eu gostaria de estar, mas de cuja existência não posso me certificar. Assim, contento-me com a idéia de que há­ esta parte, que denomino de labirinto, e que dentro dela eu sou aquele que não gostaria de estar nela e que, se pudesse, saltaria para a outra parte, que provavelmente é aqui mesmo, mas que, só por ser outra, me parece enormemente preferível à monotonia viscosa desta parte onde estou e onde não posso senão estar a pensar numa outra parte onde não posso estar.

 

Penso, e ao pensar me deparo com o absurdo do que penso. Olho à minha volta e vejo o labirinto, constituído de paredes brancas e lisas, e de uma infinidade de portas e corredores cuja extensão não vale a pena medir. Um cachorro passa correndo bem diante do meu campo visual. Será mesmo um cachorro? Terei visto um cachorro? Por um momento, sinto-me vagaroso demais para conceber essa idéia – vagaroso demais, em pensamento, para conceber essa idéia de um cachorro correndo. Mas um cachorro passa correndo diante de meus olhos, e eu me aquieto ao pensar nisso, até porque não posso me certificar (tão veloz é o movimento) de que se trate mesmo de um cachorro. Ponho-me a tatear pelas paredes, em busca de nada, ou de uma reentrância, ou de um sinal, e logo me apercebo de que não há sentido no que faço. Se um labirinto se estende de fato à minha frente, então não há sentido em tatear pelas paredes, pois num labirinto é certo que tudo seja labirinto. Acalmo-me, ao pensar nisso. Penso numa outra coisa, como se quisesse distrair-me, e então me dou conta de que a outra coisa em que penso é aquela parte luminosa onde não estou mas onde, talvez, gostaria de estar. Essa oscilação, que se mistura à surpresa, paralisa-me por um instante. E no instante em que me paralisa torna mais clara para mim a noção de que o que está à minha volta é um labirinto, e de que eu estou perdido nele como uma criancinha numa floresta.

 

Dou alguns passos a esmo, na certeza de que nada está à minha espera. A certeza de que nada está à minha espera me parece mais razoável do que a suposição de que possa haver alguma coisa à minha espera – e de que essa coisa preencha o futuro. A idéia do futuro é, para mim, tão consistente quanto a idéia de que, tateando a esmo pelos corredores, encontrarei qualquer coisa como uma saída. Ao pensar nela, ao saber que ela se imiscuiu entre meus pensamentos, um grande cansaço, misturado ao desânimo, me abate de cima, como uma avalanche de neve. Mas é preciso caminhar, alguma coisa me diz que é preciso continuar, percorrendo estes corredores, porque até a idéia de percorrer estes corredores é melhor do que a idéia, contrária, de permanecer parado aqui para sempre. Penso nisso com certa surpresa. Não sei o que é “permanecer aqui para sempre”, não faço a menor idéia de como isso poderia acontecer, e assim só me resta mesmo o tatear, o avançar às cegas, que me dá uma noção do tempo que estar parado não me daria. Estar parado complicaria minha idéia de tempo – me confundiria com minhas próprias impressões interiores e provavelmente me conduziria ao equívoco. “Não quero estar parado”, digo a mim mesmo, sem dispor de um argumento convincente para provar a mim mesmo que meu desejo é, realmente, de continuar. Tateio apenas e continuo tateando, indefinidamente, através de corredores brancos que, sucedendo-se monótonos numa profusão infinita, confundem meus pensamentos e me deixam como que atordoado. Não há dificuldade de avançar, porque nada me impede de avançar, e os corredores se sucedem uns aos outros numa profusão estonteante, como se fosse necessário sucederem-se profusamente, e isso, de certo modo, garante a continuidade do movimento de avançar.

 

Um certo cansaço se forma na região de meus joelhos, mas nem assim eu paro para descansar. Uma espécie de premonição absurda me invade, misturada ao pensamento de que parar me atrasaria, tornaria mais exíguo o tempo de que disponho não tanto para encontrar a saída (nenhuma idéia de saída se coloca para mim neste momento), mas para continuar tateando e fugindo sempre à possibilidade de parar. Parar, nem que fosse por um instante, é um pensamento que me vem carregado de conotações nefastas – algo como uma possibilidade negativa a que devo me esquivar enquanto possa, enquanto haja forças para tatear. Eis a razão para que eu continue: para que eu me lance impetuosamente para diante, evitando qualquer possibilidade de parar ou de olhar para trás, porque isso atrasaria o movimento e, por certo, comprometeria minha única e pouco segura noção de tempo e de continuidade. Continuo, simplesmente, com uma lucidez que é semelhante à cegueira, e me convenço de que ter visto ou não um cachorro não tem a menor importância, porque uma e outra noção se equivalem na confusão do avançar, que só tem de simples a certeza de que não se interrompe (o movimento de avançar) em ponto nenhum. Isso me alivia um pouco. Pensar que não se detém em ponto algum me alivia um pouco, porque é, de certo modo, uma garantia. E me aliviará no futuro? Não sei dizer. Ou melhor: não devo empregar a palavra futuro, porque o futuro aqui só diz respeito ao movimento, à continuidade do avançar, no futuro, contra a qual até agora nada encontrei que pudesse depor. Se há o movimento agora, raciocino, deverá havê-lo no futuro, e isso basta para me acalmar, embora se possa perceber facilmente a precariedade das bases em que se funda o raciocínio.

 

Há a parte visível – viscosa, progressiva, contínua e persistente – e há a outra parte, que só vejo em pensamento e que tenho de imaginar como dessemelhante a esta, que é tudo o que tenho e posso ver. Mas na outra parte não estou, não posso estar, nem há nada por aqui que a indicie, de modo que sou obrigado a me satisfazer com o que tenho, avançando às apalpadelas através de corredores brancos cujo termo e limite não posso colocar em discussão. Estou, simplesmente, arrebatado pelo movimento de avançar. E avançar me concede uma idéia de tempo, que coisa alguma, fora do avançar, é capaz de me conceder por agora. Vazio de certeza e de futuro, atravesso os corredores em direção ao infinito, rumo a um infinito que me escapa e que, sempre que tento concebê-lo, se converte na idéia de corredores brancos (o que chamo de labirinto) cuja extensão e limite não tenho condições de medir.

 

Existo, existo, existo, e esgoto nisso minhas possibilidades.

 

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