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RETRATOS
DE FANTASMAS NÍTIDOS (fragmento)
(Nicolau
Saião)
Por
entre muros imaginários, ei-los que chegam.
Minutos
que sobrecarregam a memória mas que, paradoxalmente, a tornam mais
leve, dão-lhes a cor e o perfil que lhes é próprio: de rostos ora
serenos ora convulsos, arrepanhados, têm já a silhueta definitiva
que os tempos arremessaram sobre as suas trajectórias e os tornam
em visões simultaneamente bem próximas e longínquas.
Nos
cafés, nas ruas e largos da minha adolescência, dentro das casas
que necessariamente habitaram e onde num lampejo os imagino como
figuras recortadas ou esculturas plasmadas em posições singulares,
certos da sua pessoa ou humildemente à espera do tempo e por isso
admiráveis de humanidade, eis que os busco com as mãos a tremer de
ternura e inquietação. Eis que os procuro como restos sobrados de
uma aventura por vezes comovedora, por vezes insuportável, mas
sempre contemplada como algo que um dia irá fenecer mas que é também
imarcescível e se relembra quando as vozes dos que partiram são
mais nítidas e ecoam nas ombreiras do coração. Ou, pesadas de
discrição e de silêncio, soam ao ouvido como uma ária em pianíssimo,
tal qual um piar de pássaro nocturno no pinheiral da minha infância.
Nomes,
agora, têm tão-só os que lhes dei, os que inventei para lhes dar.
Já dispõem, digamos, da verdadeira liberdade civil, que é
directamente proporcional ao privilégio de os evocar sem peias: com
amor ou desagrado, dupla face da diversa gente que se apreciou ou
abominou. Mas nunca com indiferença.
Desfilarão
em barquinhos de papel pela “ribeira
da Lixosa”(*) os que não souberam (mortos ou vivos que
estejam) erguer a sua estatura para além da fasquia mínima. E,
como num corolário de pacto mefistofélico, chegou para eles a
altura da expiação, a hora de verem exposto o seu interior
nebuloso. Tal ser feito no plano da escrita confere-lhes entretanto
algum significado uma vez que, além do mais, me ajudaram por antítese
a conhecer melhor o verdadeiro rosto da dignidade e da qualidade
reais.
Os
outros, os meus santos civis
ou simplesmente humanos admiráveis
que comigo se cruzaram na aventura de viver, creio que dispõem da
verdadeira imortalidade, a saber: aquela que, mesmo anónima e solitária,
gera um campo de forças de tal ordem que pelos anos fora faz um
percurso como a elipse dum planeta, tocando aqui e acolá e forjando
sinais de aproximação e de fulgurante realidade – mesmo se os
que lhe sofrem o apelo de tal não se apercebem conscientemente. A
esses comigo os levo na “volta
à Serra”(*), a volta aqui imaginária da maravilha e da
pureza temporal. Eles vivem em mim como flores perenes. Como humilíssimas
flores de tocante recorte. E talvez vivam noutros também.
***
O Homem das Malas – Dormia num quartito emprestado e comia nas
tabernas, a princípio ora aqui ora ali. Depois passou a comer,
vinda a democracia, num sítio fixo pelo interesse de um benemérito.
Um
olho sem vida, bola de carne vítrea de garoto mal-nascido que,
todavia, a meu ver não inquietava os adultos nem assustava as crianças,
mas curiosamente lhe dava um ar terra-a-terra de actor sem filme.
Barba mal feita, casaco de clown
bissexto ou de padre despadrado, pitando o seu cigarrinho
irreparavelmente. Um estilo natural de quem sabia que nunca iria
para um paraíso ou para o Café dos ricos sem um recado a entregar.
Voz um pouco rouca como convém aos santos civis a quem quase se não
liga em cidades distraídas ou constipadas. Mãos de carregador ao
sol e à chuva. Trabalhando, trabalhando sempre como onagro estafado
de solar ou de quinta das redondezas: como rapaz-de-mandados,
levando embrulhos para este e aquele comerciante, com um
carrinho-de-mão transportando malas e malões e um sorriso ingénuo
de pássaro mal-amanhado.
Ainda
de bibe, creio que o vi pela primeira vez junto ao lago da
Corredoura onde meu pai me fora mostrar os patos navegadores, atracção
ao tempo da criançada portalegrense. Saudou respeitosamente “o
senhor comandante” e afagou-me o rosto de passagem. Mal
vestido, decerto mal alimentado, os chuis
tinham-no por semi-beberrão e nem o incomodavam. Apenas de quando
em quando lhe atiravam uma que outra palavra como por desfastio,
serenos na sua imponência de servidores desvelados do regime. Com,
ponhamos assim, condescendência de pequenos sobas mirando fraca
fruta para um apetite de omnívoros bem treinados. Aqui e ali o fui
encontrando ao acaso da passagem dos meses e dos horários da Escola
e do Liceu, dos bilhares, dominós e jogatanas a doer (cartas bem
batidas e que às vezes nos deixavam sem cheta) e das deambulações
à cata de namoricos tirocinando amores precários nas ruas das
beldades operárias para os lados do Terreirinho e no bairro da
gente fina, com suas pequenas madonas tafuis e distantes, sopeiras
incluídas. E nas fitas do Cine-Parque hoje defunto. Muitas vezes
lhe cravei, porque ele era
generoso, belos exemplares da sua marca preferida, o apreciado “Três
Vintes” já passado à história, uma saudade no seu invólucro
amarelo-torrado que até parecia guloseima para fumadores fartamente
abonados. E nunca, coração, um cigarrito me soube tão bem,
tirante os “kentuckys”
de mestre Gervásio, o carpinteiro que eu observava durante horas no
seu labor de fino construtor de carroças.
Chamar-se-ia,
de seu nome funcional, José, Armando, Zacarias? Simão, Joaquim ou
António? A malta e toda a cidade lhe chamava “ó
Sério” e não era por pirueta. Joaquim Sério não lhe
ficaria mal, mas nunca o soube na verdade. Ou, se o soube,
fragmentou-se, evolou-se enquanto designação identificada. Muito
poucas letras tinha, poucas coisas devia saber. Mas era democrata,
mais que isso socialista e uma vez no fim dum comício em que
levantei os corações arrebatados com sete frases libertárias,
veio estreitar-me a mão e disse-me com enlevo militante: “Conheci-o
desde pequeno…” e cerrou-me revolucionariamente o punho
musculado no braço direito.
O
que guardo para valer em pé de página, digamos, é a sua figura
curvada, já quase nos tempos do fim, sempre com o ingénuo sorriso
de vagabundo filósofo pastoreando as ruas da cidade, suas
companheiras de vida interior e exterior. Um São Bento Labre
alentejano e sem exageros, que ele já estava reformado e trazia o
fato limpo pelas senhoras da Misericórdia.
Na
última vez que o vi a senhora dona morte, com a esperteza que se
lhe conhece, deve-o ter aconselhado a ofertar-me um abraço. E eu
regressei, talvez, um pouco depressa de mais ao carro, para que ele
não me visse as lágrimas. Que ele não gostaria, decerto, de ter
que dizer a São Pedro que o companheiro de revolução, de cigarrêtes
e de fitas se fizera um pachelgas.
Deve
concerteza, neste momento, levar pacotes ou recados de um santo
qualquer para outro colega de merecimento. Ou, numa artéria
celestial, sorver o seu cigarrinho com serenidade convicta. E, se
calhar, já com os dois olhos emparelhados para passeios remansosos
e segredos intemporais.
À
esquerda de deus pai.
O Político Truncado – Iria ter linda carreira, mas a bernarda
abrilina modificou-lhe a trajectória. Deixou-o meio em seco e
ligado a uma formação partidária dessas que balançam com o vento
do Oeste ou, vegetando, concedem escassos réditos para tão grandes
apetites.
Quando
no tempo da outra senhora passeava
de mãos a dar-a-dar, solene e pimpão, acompanhando os raciocínios
e as confidências dum corifeu da situação passo a passo junto à
esplanada do café “Tarro” – era belo de ver. Imponente,
tostadinho e bem penteado como um galã de bairro de média
estatura. Ficou lívido com o colapso do regime das conversas em família.
Durante uns tempos esteve confinado aos seus botões, decerto atónito
com o furacão que lhe desabava sobre as certezas e lhe cirandava em
roda das dúvidas. Ele, que sempre olhara para dentro numa imitação
de meditação profunda, ganhou uma espécie de melancolia que
pareceu assentar-lhe como uma luva. Depois, espertou. Apreciador de
homens providenciais, ainda é solene de ademanes e parco de
conversas, excepto quando através de um líder a valer a pátria
parece pedir. Um dia o maroto do mundo deixar-se-á desse bocejo de
liberdades para todos e mudará para o que convém: e ele terá
finalmente um cadeirão à altura da sua fidelidade perdigueira. Mas
que não seja tarde de mais, que os anos passam e aos roncões de
pequeno porte o tempo costuma pregar partidas desagradáveis.
A Velhota das Estrelas – Vendia-as, estrelas
de farinha e açúcar com ervas de cheiro a condimentar, em loja
modesta de frutas e legumes num recanto escuso duma rua improvável.
É que se apanhava com o aroma das laranjas, queijos, nabiças, de
repente – pois a lojeca ficava numa curva onde não se esperava
que estivesse. Para mim, contudo, cheiros compensadores, penso que límpidos
para gente que goste de bosques, quintas e hortejos. Hoje a loja
desapareceu, engolida pelos quotidianos desesperados. E, para minha
maior mágoa e ligeira fúria, nem sequer lhe deram sumiço mediante
um bar finório ou uma taberna manhosa – limitaram-se a fechar a
grossa porta pintada de castanho. Já entenderam o porquê da fúria:
é que me ficou ali como um cadáver requentado, absolutamente
cegueta e mudo. E, clarete, nem valeria a pena rebentar a porta à
patada para, ao entrar-se, apanhar a adolescência evolada numa das
prateleiras vazias.
Mulher
de preto, a cara era como se diz um pergaminho. Não faria êxito
num moderno supermercado. Lenço na cabeça, as mãos grosseiras de
quem sabe dosear o doce nos caminhos da vida e nos bolos de canela,
de arroz e nas leves boleimas ou, como em outros lugares se crismam, enxovalhadas.
Muito calada, um ar grave de pessoa que tivera ou passara mundo.
Passara, não passara – quem lho iria perguntar?
Desapareceu
andava eu no fim das secundárias, que nas primárias a filava manhã
sim manhã sim, com os meus tostões prontos para amendoins e as
tais estrelitas, bolo de canela que ainda hoje move a minha gula saudosa.
Escrupulosa nos trocos, duvido que alguma vez tivesse enganado algum
petiz ou graúdo mesmo com distracções pelo meio. Fiquei-lhe
devendo muitos minutos de gozo mastigador. E a não menor delícia
daquele ar bondoso de aia exilada. E um resto impalpável, um não-sei-quê
de desventura ou íntima tristeza. Cá para mim aquilo não era comércio,
era puro destino fixado em dias ora melancólicos ora decididamente
alegres oferecidos de graça, nos dias ensolarados, aos passantes
fixos e descontínuos. E como deixar em escrita aquele silêncio
interior, aquele perfume de realidade real que, agora, sei que
gozei nos meridianos da doçaria humilde mediante esses contactos
matinais, pensava eu que fortuitos e já perdidos no tempo?
Hoje
já não há por aqui lojas daquelas. A última que naquele estilo
conheci foi uma taberna na rua do Mercado, transformada ao presente
em quitanda com luzes e balcão moderno. Curiosamente, também
gerida nesses outroras por uma velhota parecida no pormenor, de
perna arrastada e trajando de escuro.
Coincidências
temporais, quero crer, numa cidade com viúvas para dar e vender.
O Santo de Pau Carunchoso – Metafisicamente, um peso leve. Ao que
parece Deus manda-lhe lembretes adequados e ele, com gravidade mas
sem cerimónia, com a naturalidade dos que se sabem escolhidos (sem
vaidade!) distribui-os caritativamente como cumpre aos ungidos pela
graça. É humilde, bem falante, ama os pobrezinhos e até
compreende os ateus, esses desnaturados. Na sua santa compreensão
sabe que o são apenas (não é verdade?) por desorientação. Que
um dia voltarão ao redil – mas mesmo que não voltem merecem uma
oportunidade. Assim como assim não são todos filhos do (seu)
Senhor?
A
tal ponto humano, delicado e escorreitamente uma alma de eleição,
este Bossuet de pacotilha, este S.Tomás de trazer por casa fez
sempre a minha admiração estupefacta: disseram-me com verdade que
teve duas criadas anciãs e que no estado de moribundas lhes pegou
na mão até darem o salto para a eternidade. Questionado sobre o
facto, referiu que era para as auxiliar no momento derradeiro. E não
ter uma delas voltado – ou até mesmo as duas – por um minuto à
vida para lhe escarrarem na cara a verdade básica de que naquele
momento um ser humano deve ser deixado em paz, porque cada um tem
direito à sua morte, sem que ao lado esteja a bondade de um patrão.
Tão
dedicado, serviçal e esclarecido nos quereres da Providência –
que faz perceber aos mais lúcidos ou versados nos assuntos da Dogmática
e da Patrística que decerto o sinal do demo não lhe anda longe. Ou
seja: vai ter uma grande surpresa quando chegar o último suspiro e
o Criador – em que ele crê com os quatro lombos –
previsivelmente o atirar com um gentil mas decidido pontapé no
traseiro para o purgatório, que gente como ele nem inferno merece.
Mas talvez, ó céus, isso seja ainda matéria de júbilo, porque
para estes semprempés místicos tudo é matéria de comprazimento e
auto-consolação, tudo é magnífica ocasião de ascenderem, como
ele vai ascendendo pouco a pouco, ao seio da mais celestial e
gratificante santa abominação.
O
Tio Pequenino – Homem do campo dos seus quarentas/cinquentas,
topava a sua figura pequena e escorreita em todas as Feiras (das
cebolas, das cerejas) e em tudo o que era festa ou romaria (do
Bonfim, do Reguengo, da Sant’Ana, da Ribeira de Nisa, do Senhor
dos Aflitos) onde eu me deslocava canonicamente acompanhando os pais
e vizinhos com quem se fraternizava. Correctamente vestido, muito
direito e asseado, notava-se que tinha nos ombros e nas mãos fortes
e calejadas os sóis e os trabalhos da quinta ou da horta, do romper
do dia ao cair da noitinha. Era proverbial, a certa altura, na
barraca dos comes-e-bebes escorripichando com denodo e aprumo o
seu tintol acompanhado de viandas delicadas como o costado, a
isca, o peixe frito…
Nunca
com ele troquei palavra ou aceno que fôsse. Nunca soube a sua graça
ou a quem pertenceria e em que courelas granjearia o seu pão. Até
um dia, mas já lá vamos. Para mim era apenas, com toda a velada
simpatia interior, o “tio Pequenino” e bastava-me esta alcunha
p’ra meus internos usos. Muito cordial e respeitador, tratava com
cortesia, numa voz suave e campesina, os convivas avulsos. E a sua
cara escanhoada e seca abria-se às vezes num leve sorriso de
singeleza. A partir de certa altura, enquanto eu crescia e passava
de infante a adolescente e de adolescente a adulto, como que deixou
de fazer anos. Imutável, sentia-o deslocar-se através dos tempos
como uma presença pacífica e serena. E que alegria eu senti,
depois de ter voltado da loucura da guerra com a inocência feita em
fanicos, quando um dia na Festa dos Aventais topei encostado ao balcão
de tábua duma barraca bendita o meu “tio Pequenino”, que com
grisalha convicção atirava a terra uma sandes de lombo de lindo
recorte!
Se
a festa era na cidade, digamos a do Senhor dos Passos, “tio
Pequenino” deslocava-se ao Largo da Sé a mercar o seu torrão
de Alicante e a sua boa ervilhana na barraquita posta rés-vés ao
edifício dos Paços do Conselho. Sempre composto, sempre urbano e
solitário nas suas andanças todavia comparticipativas. Também o
via às vezes no mercado municipal (um dos meus locais sagrados)
falando com este-aquele hortelão seu companheiro de labutas –
mirando este figo, relanceando aquela meloa, apreciando esta
couve…Eu era visto e achado, principalmente nos sábados, a
deambular circulando o edifício da Praça. Coisa que ainda hoje,
que já vivo por bandas vitais muito distantes, é um dos meus
grandes gostos. E – cabeçorra distraída – também era meu
colega na ida à massa-frita, ao santo brinhol
acompanhado pelas canecas de café de cafeteira, fracote mas com
um sabor que nunca mais, minha mágoa, terei na vida…
Ora
um dia, passeando de carro (emprestado) com a família, teria eu uns
dezanove anos, o meu primo que guiava fez-nos ir ter a um lugar que
não conhecíamos bem, em busca de um outro parente de raspão,
desses em sétimo grau mas que são indispensáveis. O meu pai
desceu do automóvel e abeirou-se de um murozito de pedra em cujo
lado de lá um hortelãozito, tapado com um velho chapeirão,
mourejava ali à beira e perguntou-lhe sobre a morada do tal
parente. O trabucador aprochegou-se, descobriu-se…e era o “tio
Pequenino”, que em frases curtas e apropriadas iluminou a informação.
Soube então que era dali
que ele partia para as suas incursões festivas! E sem me dirigir
palavra, num diálogo mudo, percebi nos seus olhos plácidos que
também me reconhecera. Foi, durante um segundo, uma espécie de
cumplicidade. Senti que ele pensara: “Olha…este
é o tal…”. Que eu, para ele, devia ser o que ele era para
mim – presença sentida aqui e acolá de seres que passam quase ao
mesmo tempo pela Terra irmanados num destino comum de jamais
trocarem palavra. Coisas da sociedade e dos acasos, diria eu.
Mais
tarde – já ele começava a transformar-se numa presença esfumada
– desapareceu-me do horizonte. Soube depois, ao folhear um periódico
com a data já requentada, que morrera. A foto lá estava, era o
“tio Pequenino” dos meus tempos de criança transfigurado em
eternidade pela necrologia noticiosa. Ficou-me um nó na garganta,
que a morte tem destes desembaraços: traz de súbito à nossa comoção
uma figura de outrora, como se o olhar se irmanasse com a saudade
dos tempos idos. Como, afinal, cumpre a quem vive, mesmo que
virtualmente, como retrato perpétuo e inesquecível.
O
Polícia de Papelão – Diziam-no um bom sacanola,
pachorrentamente no giro como um buda ambulante de segurança pública.
Suspeitavam mesmo alguns, cochichando-o aos correligionários, que
fornecesse os arquivos secretos com material bom e fresco. Nunca
tirei isso a limpo, se acaso se verificava, de resto ele era para
mim muito mais uma gravura típica que propriamente um cívico.
Barrigudinho, como se usava na época frequentemente nas agências
de autoridade, tinha um carão avermelhado denotador – para além
da estrutura biológica – do seu algum apreço por Baco. Com má
consciência? Provavelmente, pois ainda não chegara o tempo da boa
liberdade em que os mantenedores da ordem (do regime, quer-se dizer)
têm largueza para frequentar os lugares onde escorre o sumo-de-uva
com, talvez, excessiva frequência. Mas vão outros os tempos,
dantes até se dizia à boca pequena que quando um cívico ia à
tasquinha era para executar trabalho,
verbi gratia espetando a orelha para conversas de gente que
escavava ardilosamente na obra do homem de Santa Comba.
Quando
à paisana, quase nunca o reconhecia: ficava como que transfigurado,
mas um tique o denunciava – as manápulas atrás das costas e o
passo cadenciado de quem tinha muitos metros de rua para desbastar
ao correr das horas de serviço, por acaso de folga. Fazia voz
grossa, que um dia bem lha ouvi num raspanete a um colega de estudos
liceais. Devia ter seus azeites, mas ainda não incomodavam
tecnocraticamente, em estilo gestapo, chegados que ainda não tinham
sido os tempos caceteantes de mestre Cavaco. No fundo um pobre diabo
diligente quanto bastasse para chegar à reforma. Um pobre homem,
afinal, de certezinha camponês despejado na profissão, exilado na
cidade e de certo picado pelos do topo. Teria alguma vez, na
verdade, prejudicado ou feito mal a alguém? A mim parece-me que não,
pois não teria do esbirro mais que a figura caricatural. Um azar,
digamos. Como nas fitas, o físico do papel. E querem maior desculpa
para um sujeito que, se calhar, nem via filmes policiais?
A
Rosa de Todo o Ano – Não se chamava Rosa, ‘tá de ver, mas eu
chamava-lhe assim. Criada de todo o serviço duma família de teres,
ia à praça, varria as escadas do prédio de seus patrões, lavava
janelas e batia tapetes, lá para dentro certamente se dava a
misteriosas tarefas de cosimentos e cozinhados, habituada a alombar,
percebia-se, com tudo o que requisitasse suor. Quando eu morava na
parte velha da cidade, nos meus tempos de gaiato, encontrava-a
frequentemente numa loja de tecidos a mercar carrinhos de linha e a
buscar a caixa das amostras de botões, aparelho misterioso e
encantado com encaixes sobrepostos como jardins suspensos que também
eu transportava para minha tia, que cosia para fora como
franco-atiradora de linhas e agulhas.
Sempre
jovial, dava-se bem com vizinhos e lojistas. Quarentona, ainda
denotava que fora linda cachopa. Mas, retirada das lides do coração,
ficava-se perceptivelmente pela existência de mourejadoura a todo o
pano. Constava que tinha um filho lá para os longes de uma mirífica
Lisboa, marçano ou manga-de-alpaca de pequeno porte em lugares mais
ou menos lendários. Portalegre naquela altura ficava longíssimo da
capital, daí o desapego aparente. Um dia, ia eu nos meus catorzes/quinzes,
perguntou-me onde comprara uma capelinha de macela que por esses
dias de S.João eu levava nas mãos (todos os anos as compro,
rendido às flores secas da tradição).”Foi
ali na do senhor Xis, senhora Rosa…”, disse-lhe eu deixando
escapar a boca para a crisma que lhe dera. “Eu
não me chamo Rosa, menino! Sou …” e lá me disse o nome que
agora omito a vosselências. E daí em diante, sempre que nos cruzávamos,
cumprimentávamo-nos como velhos conhecidos. Sabia lá ela quanto eu
apreciava a sua lhaneza natural, a sua inocente bondade de burrinha
de trabalho e que eu somente deixava transparecer na minha saudação
respeitosa!
Como
outros de outros mesteres, perdi-lhe depois o rasto ao mudar de casa
para lugares mais centrais. Ainda estará viva? Se assim for deve
decerto trabalhar para os netos, nessas paragens lisboetas onde
talvez se tenha juntado ao filho por reforma bem suada. Deverá,
concerteza, continuar anciã de boa catadura: os pequenos lojistas e
os vizinhos devem apreciá-la, num relacionamento fácil e contente
com este saintéxupery feminino e anónimo cruzando a terra dos
homens do quotidiano esvoaçante.
O
Ti’Mané Vítima – Ou só o Vítima, que os anos abreviam até
as alcunhas inventadas. Era carvoeiro e quando apregoava “Olh‘ó
picão, picãããão!” o seu grito publicitário era uma
queixa rouca e desgarradora que fazia pena e riso em simultâneo.
Como uma acusação feita ao destino, quase no género dum Pamplinas
sonoro. Daí o nome de Vítima que de pronto lhe colei para gastos
internos.
Todos
as tardinhas, com o jerico liberalmente carregado, passava o “Vítima”
perto da minha casa. Às vezes um bocado aos trancos, que Ti’Mané
gostava da sua pinga e não devia ser peco a servir-se da caneca. E
sendo o burrico o seu meio de transporte, não corria o risco de ter
de soprar no balão ou ser
autuado, com vilania, pelos pasmas.
Daí, concerteza, a sua solitária e serena reincidência que lhe
desatava a língua e o punha em conversas íntimas, com perguntas e
respostas só lá p’ra ele, num tom algo entaramelado mas
convicto. Que filosofias de mágoa ou espanto lhe percorreriam as
meninges? O “Vítima” jogava nos diálogos a uma voz, visitando
lugares inacessíveis aos outros nos continentes dum discurso próprio
e, confesso, isso fazia a minha admiração juvenil. Pela evidente
constância, decerto dirigida aos manes.
Às
vezes acompanhava-o um filho ainda novito mas que ele já dera às
artes ígneas da carvoaria. Tinha uns olhos duma tristeza infinita.
Mas, como eu o conhecia da escola, sabia que isso se devia mais ao
enfarruscado do rosto – marca inevitável em que praticava
semelhante tarefa. Calado, sobre o magro mas rijote, conhecia como
seu pai as lides do fogo, o largo espelhado das chamas e, depois, o
fumo acre e oloroso sobre os campos. Daí, talvez, o seu algum
afastamento da malta colegial, rapaz-homem que já era. Mas pacífico
– e com uma humildade comovente de pobre. Um dia, um peralta
qualquer ofendeu-o e, ameaçador, colocou-se em posição ante os
olhos algo acossados do jovem carvoeiro. Impante, bruto como as
casas, humilhou-o com desfaçatez. Ou seja, teve azar. Com a minha
delicadeza de orangotango fui-me a ele e deixei-o feito em cacos: e
que isso conte a meu favor, essa zaragata de que me orgulho, nas
contas a efectuar com os anjos guardiões do senhor deus dos exércitos.
E nem sei se ele me olhou com os seus lúzios de labutador sem
usura.
Há
uns anos, andando eu a passear numa das vilas-dormitórios da grande
Lisboa, dei com ele – com um filhote à ilharga – a entrar num
cafézito de bairro. Fiz-me também entrado e tomei anonimamente
qualquer coisa enquanto o nosso herói desbaratava uma sandes
acompanhada a cervejola. Não era, portanto, um adepto do tintol
como o senhor seu pai, já falecido.
Paguei
o não sei quê que bebera. Saí, com o coração a bambolear como o
Ti’Mané fazia. E na rua, enquanto ia respirando o ar proletário
daquele bairro de operários, só me apetecia gritar baixinho “Olh’ó
picão, picããããooo!”. Como uma queixa, digamos. Ou uma
saudação daqui para o além, burrico incluído.
A
Protagonista em Pessoa – Aí pelos meus doze anos, estando o
meu pai como funcionário de confiança no stand
da Peugeot de meu padrinho – que eu frequentava depois das aulas
para ler livros e selecções do Readers Digest acantonados num armário
do pequeno armazém – disse-me em certa ocasião, talvez tarde
talvez manhã:” Vai levar esta encomenda ali a casa da D.Rosa”. Era mesmo em
frente, nos altos do Café Facha que esta senhora D.Rosa Maria, viúva
dum professor de Liceu e sobrinha (quase da mesma idade!) de meu
padrinho, morava acompanhada de sua criada Clementina. Casara algo
sobre o tarde, parece que por gosto de seus tios. E meu padrinho era
o sr. João Vinte-e-um – um dos nomes, talvez pelo inusitado, mais
conhecidos na cidade, tanto mais que a família, pela operosidade da
famosa D.Rosalina, era a dona da pensão-hotel onde estacionava José
Régio e, também, toda a gente de estatuto que visitava Portalegre.
A
D.Rosa (Fernandes de Carvalho) já eu conhecia de vista. Era senhora
de cinquenta e picos, bem vestida, a quem a idade mediana ainda não
retirara uma certa elegância e, claro, uns olhos negros e
pestanudos de portuguesa de lei.
Foi
a aia Clementina quem veio abrir. Também a esta a conhecia e ela
tratava-me cordialmente quando nos cruzávamos na rua do pé da
porta. Disse em voz alta lá para dentro, com a sua voz beiroa, quem
era e ao que vinha. E lá de dentro uma voz educada retorquiu que
mandasse esperar. Depois a senhora da casa apareceu – e trazia uma
espécie de quimono de seda sobre as roupas habituais, o que
bastante me admirou, pouco avezado que estava a tais elegâncias
senhoris.
“Olá,
Chico – atirou-me sem detenças – entra
aqui para a sala” E perscrutando-me: “Disse-me
a Josefa que gostas muito de ler...”. Josefa era a minha
professora de Português, drª Josefa Morgado, que me facultava
todos os livros que me apeteciam nas aulas em que se escolhia
livralhada para ler em casa, hábito que não sei se inda existe na
comunidade colegial. E drª Josefa era membro da família por mor
dos da outra banda, também oriundos do norte.
Confirmei.
E ela disse-me então mais ou menos o que segue: “Se
quiseres, no Domingo passa por cá. Vais cá lanchar. E depois vês
ali os meus livros e poderás levar algum que te agrade”.
Assim
o fiz – e foi o começo duma amizade que durou vários anos em
directo e, em indirecto, toda a vida.
Num
domingo por mês, lá ia eu a casa da D.Rosa Maria. Lanchava, lia Séculos
Ilustrados, a revista Eva, exemplares do Bugs Bunny (crismado por cá
de Pernalonga) e, à medida que fui crescendo no corpo e na sua
estima, passei a ir-me embora só depois do jantar, sempre servido a
preceito pela operosa Clementina. Interessava-se pelos progressos
nos meus estudos, num dia achou que já era tempo de eu ouvir
Mozart, Schubert e outros da confraria. E o primeiro livro policial
que li, o “Crime na Mesopotâmia” da Agatha Christie,
acompanhado de “A cidade dos estranhos” do grande Sherwood
Anderson, foi ela quem mos emprestou.
De vez em quando, apareciam outros familiares, entre os quais uma
moçita loira quase da minha idade – e eu punha-me a pensar como
é se podia ter uma cor de cabelo assim, tão estranha e como que
doce... Sei que mais tarde casou com um cidadão sul-americano e foi
brutamente infeliz. Coisas da vida, pois então, que uma simples côr
de cabelo não pode, que pena, resolver.
Num
dia, pesquisando nas prateleiras dos dois altos armários da sala
onde guardava os livros, peguei num que pus de parte para levar.
Tinha uma dedicatória do autor e rezava assim: “Para
a D.Rosa Maria, que me forneceu o nome e o perfil. A muita estima do
José Régio”. Quando pus sobre a camilha os três livros que
seleccionara, a minha amiga pegou nele e disse-me: “Chico,
não leves este. Pode estragar-se, apesar de seres cuidadoso e eu não
queria ficar sem ele”. Anuí, sem fazer alarde.
E
foi tempos mais tarde, ao lê-lo nas instâncias escolares, que
comecei a juntar A mais B.
Quando
fui para a tropa e depois para a Guiné, D.Rosa deu-me um grande
abraço e uns beijinhos repenicados. Estava, via-se, comovida. E
findo o meu exílio prematura, na volta, fui visitá-la e
agradecer-lhe frente a frente os aerogramas que me mandara com
palavras de conforto e umas notazitas de banco para animar a rota.
E
lá segui meu caminho...
Um
dia, já os anos estavam maduros – e as visitas espaçadas –
encontrei-me com ela ao pé da Farmácia Romba. A Clementina
morrera, ela vivia agora com uma prima lá no bairro dos ricos, no
extremo da cidade. Estava quase cega. Perguntou-me pela família,
pelos filhos, pela vida. “Já
pouco tempo cá hei-de andar, Chico. O tempo é que nos leva...”.
E levou. Finou-se, segundo me disse um seu sobrinho professor, daí
a semanas, durante a noite e parece que serenamente.
“Belos
passeios tinha Portalegre para dar. Rosa Maria, já mais calma,
pensava no que ia ser a sua vida, naquela sua futura grande solidão
em que o destino a lançara”. Cito de memória o Régio, que
nem tenho coragem de ir buscar o livro para citar correctamente.
(*)
A ribeira da Lixosa era o
curso de água para onde naqueles anos se canalizavam os detritos da
cidade. A volta à Serra
é a estrada que rodeia Portalegre num anel que parte e que chega
frente à Casa-Museu José Régio.
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