Home Poesia Prosa Traduções Colaborações Arquivo Contatos

Bem-vindo à homepage de Renato Suttana.

Henri Matisse, Interior com harmônio

 

SCHUBERT, A DUZENTOS ANOS DE DISTÂNCIA

 

As últimas leituras e a última carta de Schubert

 

(Nicolau Saião)

 

Em qualquer pessoa que à música se entregue sem preconceitos sempre ecoará uma melodia de Franz Schubert – o Schubert “pequeno, rude e mal ataviado" que numa manhã de Setembro, ante o gáudio de uma vintena de alunos e cultores do bel-canto, se apresentou no Conservatório de Viena para mostrar o que valia, num desses eventos que usam apelidar-se “exames de Estado" das Academias (1). Mas igualmente um outro Schubert, o de óculos luzindo nas trevas sociais duma Europa que a breve trecho se veria mergulhada em convulsões que aparentemente nada fazia adivinhar, o rapaz “de coração fagueiro" que amava os campos floridos e os bosques olorosos – esses lugares onde, em potência, palpitava a imaginação a que os altos espíritos sabem ser sensíveis e onde se viaja na direcção certa, sob as madrugadas de feliz boémia criadora. E, também, o Schubert dos tempos do fim, pouco a pouco desfeito pela miséria económica e os farrapos dum sonho que não cabia nos estreitos limites duma sociedade espartilhada por regras desajustadas – esse Franz Schubert que a "indústria cultural", mesmo  que o tente, não conseguirá nunca devorar nem escurecer, o "pobre rapaz de olhar ingénuo" no fim da doença que iria levá-lo, lendo custosamente, mas com todo o prazer de um homem que entendia, as páginas exaltantes de liberdade dum James Fenimore Cooper habitante do lado de lá do Oceano. Esse outro lado onde sabia bem viver e onde as planícies abertas eram percorridas por um grande hausto de ar novo e de aventura.

 

É Alexander Woolcott quem nos conta: ”Certo dia de Novembro de 1828, Franz Schubert morria de febre tifóide, em casa dum irmão, nos subúrbios de Viena. Apenas um ano antes, empunhando archotes, um grupo de amigos acompanhara o grande Beethoven à sua sepultura em Wahring e, na volta, fora Schubert de entre eles quem, erguendo o copo, propusera um brinde àquele que iria a seguir. Chegara a sua vez e o inditoso e acanhado rapaz, de corpo cansado e desajeitado, olhos míopes e coração faminto, não daria mais canções ao mundo. Jamais, até então, havia aparecido alguém dotado de tanto talento para a melodia. Foi uma fonte inexaurível de música, e nunca tão fértil como nos últimos anos da sua curta vida. (…) E qual foi a última coisa que Schubert escreveu? Uma carta – uma carta ao seu amigo Schober, com quem no princípio do ano tinha morado na estalagem do 'Porco Espinho Azul', até que se mudou por não poder pagar a metade do aluguer que lhe cabia: 11 de Novembro de 1828 – Caro amigo: Estou doente e há 11 dias que quase não como nem bebo. Estou tão cansado e prostrado que mal me posso mover da cama para a cadeira e vice-versa. Rinna é que cuida de mim. Qualquer alimento que tome, lanço-o logo fora. Nesta situação aflitiva, poderia V. mandar-me alguns livros que me animassem? De Fenimore Cooper já li 'O último Mohicano', 'O piloto', 'O espião' e 'Os pioneiros'. Se tiver mais algum livro seu, agradecia que o deixasse no Café da Srª Gogner. O meu irmão, que é a consciência em pessoa, mo fará chegar às mãos da melhor forma. Do amigo, Schubert."

 

E conclui Woolcott: “Quando pensamos em Franz Schubert, comovido no seu leito de morte ao escutar o ruído de um galho estalando sob o passo de um índio nas florestas à beira do rio Mohawk – que pena não ter, nessa altura, sido ainda escrito 'O caçador de veados'! – de certo modo os anos entre 1828 e o presente momento ficam como que riscados do calendário. Não somente a distância entre Cooperstown e Viena se encurta: o espaço de permeio também desaparece. E, de repente, achamo-nos tão perto do jardim de Schubert que podemos ver o vôo dum pardal, e de tal modo próximo da sua cabeceira que chegamos a ouvir o pulsar dum nobre coração”.

 

A despeito dessa nobreza interior, foi ele sujeito de parcos amores consumados (uma Teresa Grob, uma Karolin von Estherazy pertenceram mais ao plano das vivências do coração forçadas pela miséria do tempo), substituídos por muitas horas empregues a trabalhar nos Cafés de uma Viena dada à alegria e aos folguedos, de conversas com amigos pelos atalhos e caminhos vicinais dos arredores. Schubert, que nunca pertenceu a qualquer ordem iniciática, deu-se contudo com gente diversa, incluindo alguns frater e era sensível à música mais hermética de Mozart como “A flauta mágica”. Mas o seu universo, tão povoado de seres de outro plano mais profundo, reconduzia-se à terra, ao quotidiano citadino ou campestre, transfigurava-se na existência que ele sonhara um dia alcançar mas que a dura realidade societária acerbamente desmentiu. Nessa Viena que pouco depois da sua morte sentiria os abalos dos novos tempos, o destino que lhe coube foi o de incessante tangedor das esferas da Natureza, pois este mourejador musical era um cativante companheiro de pacatos festins e de largos passeios, amando como bom andarilho o sol e o cantar dos pássaros, as merendas e os banhos nas ribeiras campestres (2).

 

Pode afirmar-se sem margem sensível de erro que só na sua “Viagem de Inverno” palpitam amargamente os fantasmas da nostalgia e do desespero melancólico, a plena certeza da proximidade da morte.

 

Notas

 

(1) Principalmente depois do filme “Amadeus” de Milos Forman, Salieri viu colada a si uma lenda absolutamente injusta de mediocridade. Aquilate-se do valor dessa lenda pela sua atitude quando foi presidente do júri que examinou Schubert: ao terminar a prova, ajoelhou-se perante ele e beijou-lhe as mãos. Mais: com Rueziezka, completou-lhe a educação artística e protegeu-o sempre que pôde.

 

(2) Schubert tinha muitos amigos, que devotadamente o acompanhavam nas famosas “schubertíadas” e em excursões pelas estalagens dos arredores que faziam jus à estima que lhe devotavam e à sua maneira de ser aberta e comunicativa. Pois logo a maldade dos bons burgueses de Viena tentou, caluniosamente, ver nisso uma característica de teor sexual em geral mal encarada pelos hipócritas pseudo-moralistas.

 

Retorna ao topo

Outros escritos de Nicolau Saião