PORTALEGRE (Alentejo)
(Nicolau Saião)
A cidade, com o tamanho
que lhe é próprio, cresce na noite até ao alvorecer. Os sonhos dos
habitantes das casas imersas na escuridão que pouco a pouco se
desvanece, vão apanhar o dia pela sua cabeleira de claridade. As
cidades têm nome. Secreto ou simbólico, ele é contudo o nome que as
caracteriza, dado pelos séculos ou pela inspiração do Mundo.
A cidade... Como um
pássaro numa árvore da aba da Serra a vejo agora, a podemos ver
agora. Cidade de ruas estreitas onde os desejos e os sentimentos, as
amarguras e os dias felizes, os antigos passos cadenciados de
carruagens desaparecidas, hábitos desaparecidos, rostos e figuras
desaparecidas, deixaram uma sombra de nostalgia. Cidade de coisas
novas envolta em passado e ruídos novos, cidade de monumentos onde o
espírito cruzou o espírito, onde a grandeza se fixou em pedra, em
madeira, em arabescos, em cores indistintas. Cidade que roda como um
rosto amado num espelho de casas e nuvens rumorosas. Cidade de
torres, cidade de vistas largas onde por vezes a paisagem alarga as
vistas curtas. Por estas ruas és feita de passos cadenciados, estas
ruas que circundam o teu corpo cravejado de portas, de lugares
fecundos, de ausências, de desejos e espantos, de naturalidade e fé,
de bondade e de maldade, do sereno existir duma cidade.
Povoação de telhados
confusos, cruzados, de chaminés com seus fumos, com seus lutos, com
seu adivinhar de varandas e ninhos de gente. Cidade das ruas velhas
e sonolentas, ásperas, doces e pérfidas, ruas quotidianas sempre
diferentes, sempre abertas aos ventos, ao sol, ao revoar das
lembranças daqueles que te sentiram com eles dando a volta ao mundo
em que existes e te perpetuas. A velha rua dos Potes, do Comércio, a
Corredoura, a rua dos Canastreiros, os teus largos diversos - numa
só casa se podem adivinhar.
Perene regra de vida que
é esta em que me é definido o teu povo anónimo e mulheril, viril e
pobre, rico de semelhanças com o povo de outrora, de outras terras,
da terra mãe que é a terra do homem do dia-a-dia, eterno no seu
rumorejar cordial e absorto, com bocas abertas para o riso e a
maledicência, para os nomes da ironia e da piedade. Cidade de
árvores citadinas, civilizadas, mas que não perderam ainda o seu ar
de mistério natural. Cidade de portas vermelhas, de gaiolas e
engaiolados, de roupas e gente pendurada, de frutos e de tostões, de
igrejas e misericórdias, de impiedade e destino certo, cidade audaz
e nobre, loquaz e linguareira, cidade de nomes de gente que a gente
inventou, cidade onde os quartéis se entrecruzam com a memória do
passado, heroicidade e frustres vivências. Cidade de santos e cruzes
para os sete reinos de santidade e perdão, cidade que ao trabalho
consagra os dias da sua viagem rotineira, cidade de brasões, de
motas, de carroças no mercado, de automóveis e operários, de arte e
de artistas, de pessoas que comem e que procuram comer, cidade de
contrastes e proibições, cidade melancólica, soturna, alegre,
robusta e mercantil, de cabritos e veterinários, de coisas de barro
e do barro das coisas que se multiplicam, cidade de brinhol e café,
de poeira e polícias, de legumes dentro do desejo incompleto dos
nostálgicos do Oceano, pois a fauna do mar das cidades é
inconfessável. Se dos teus monumentos me aparto à realidade os
concedo: cidade de palácios e azulejos, cidade de pedra e cal onde
as fontes iluminadas de figuras e estátuas, de relevos e volutas, de
tradição e lenda desenham nas casas senhoriais um segmento de
realidade temporal. Cidade das janelas e dos longes do além, a voz
que de ti me chega é dolente como o ruído das praças por onde se
expande a vida dos que te habitam e te visitam. Cidade de jardins
onde o amor se acolhe e surge. Cidade de jardins suspensa no fremir
dos cafés, dos cantinhos da má-língua, da gente que toda a gente
conhece, da gente que não se sabe se é realidade ou hábito, gente de
nomes sonoros, de tradição sabida, nomes que estalam na língua como
um pregão, cidade justa e injusta, atenta e desastrada, nobre cidade
onde por vezes os homens não se medem aos palmos. Cidade prenhe de
velhos, vasos a caminho de outra vida cidadã, plantas que o tempo
vai lançar noutra floresta, cidade de árvores e arbustos sob as
estrelas e a lua, no suor dos Verões, no pó da velhice que é humana
e perdura. Cidade onde à juventude se pode dizer que um lugar será
diferente se o olharmos com olhos intactos, generosos. Cidade de
lagos domesticados e serenos, cidade que se vê e se apalpa, se
passeia e se canta, cidade sentada no jardim e sobre os seus
pensamentos. Cidade onde há sempre uma flor à entrada dos sonhos dos
poetas de bronze e de carne palpitante, onde as flores podem ser de
ferro para as estátuas amarguradas. Cidade dos castelos entre
entontecidos e maravilhados, cidade que agrada às crianças, cidade
da chuva e das vielas, das serras azuladas ao crepúsculo do cantar
dos campos, do casario, dos miradouros e das sombras, cidade de
linhas trémulas na noite que se expande contra o seu rosto pouco a
pouco diluído, pouco a pouco sumindo-se numa outra viagem para o
sono dos homens, do mundo, das cidades onde a frescura corre já
anoitecida, inocente e imutável, cidade que se conserva desenhada,
fantástica, harmoniosa e prudente no coração das casas e dos que a
habitam com o seu indistinto e saudoso aceno de despedida.
in “Flauta de Pan”
Nota - Portalegre é a
cidade onde NS reside desde os 3 anos e onde nasceram todos os seus
filhos e neta.
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