A SOLIDÃO DO
ARTISTA ANTES DO CARNAVAL
(Nicolau Saião)
O Arantes telefonou-me ainda não era
meio-dia. Chovia de mansinho. Ele estava alegre, como sempre (vodka
"Kamikaze"). "Congemino de que irás logo tu mascarado!",
disse-me mostrando saber como iria ser no baile das Saavedras. "Aposto
que vais de urso!", atirou gargalhando em stacato. Não
lhe disse que sim nem que não. E ele, lampeiro: "Adeus, meu
malandro! Daqui a bocado passo aí por casa para que me emprestes o
sobretudo que a nena te ofereceu".
Estava nisto quando tocaram à campainha.
Claro, era o Avelino. "Tou cá a pensar...", afirmou antes que
eu respirasse fundo "Logo no baile das Reboredos... Sou capaz de
jurar que vais de guarda-republicano!". Foi direito à garrafeira
e, todo lampeiro, abalou-me com o "Queen Margot"! Ainda não se
extinguira o estrépito na escada e já me repenicava o telelé.
Naturalmente, era o Simões, o gorducho com o seu pigarro enervante.
"Olha lá, parceiro do teu parceiro! Já pensei que logo irás de
bispo à funçanata das Castro Henriques...", pespegou-me com
vivacidade. "É ou não é, meu chapa?" E antes de me deixar
reagir já me cravara a promessa firme de 50 euros sem caroço...
Despediu-se velozmente e quem vejo aparecer no e-mail do meu
portátil como sempre ligado? Evidentemente, o Belisário. "Meu
garanhão", li na janela do sinistro aparelhómetro "Já cá se
sabe que ao baile das Avintes tu irás de bombeiro. Faz-te de
novas...E não te esqueças de me devolver aquela primeira edição que
me surripiaste do Fernando Arrabal".
Suspirando, fui até à secretária. Nem
tinha tido tempo de ler o correio do dia anterior. Uma carta. Hum,
hum... Da fôfa, a Leopoldina. "Matulão, calculo que logo ao baile
da Filarmónica não te sustenhas de ir de criada-para-todo-o-serviço.
Sempre gostaste de meias pretas, eheh...". E dava-me logo o
recado: "Não te esqueças de me levar a tua pulseira de ouro que
eu depois devolvo-ta...".
A chuva parara. Olhei pela janela, com
certa melancolia, as árvores que, muito quietas, estavam como sempre
no enfiamento das ruas onde se cruzavam transeuntes com um ar algo
abatido. Sentia-me meio patusco.
Respirei fundo.
Despi-me nas calmas. Pausadamente. Com
prazer, com decisão. Pus-me mesmo sem cuecas, fui até à porta da
entrada, fechei-a à chave e, voltando para o quarto, atirei-a lá
para a gaveta de baixo do armário por uma fenda entreaberta que,
depois, cerrei com esmero.
Desatei a rir de mansinho. Num estilo
muito meu. Abri o ar condicionado, coloquei-o no quentinho, apanhei
um exemplar do Boris Vian e estendi-me confortavelmente na doce
cama.
Eles nunca tinham pensado que neste
Carnaval eu iria ficar no leito mascarado de nudista...
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