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Edward Hopper

 

MORRER SIM, MAS DEVAGAR…

 

(Nicolau Saião)

 

No falecimento de Mário Cesariny (1923 – 2006)

 

No triste jet set das letras (melhor seria dizer trocaletras) da nossa praça, para além daqueles que o estimaram e o souberam ler e ver havia dois grupos de fabianos sempre de goela aberta para melhor devorarem (tentar devorar) o universo conceptual que o norteara, de que se reivindicava e onde se inventava mesmo velho e doente: o surrealismo.

 

Esses dois grupos, pequenos jogadores das escritas e das pinturações, eram ou são: os que lhe exaltavam a pintura para melhor lhe rebaixarem a poesia e os que lhe elevavam a escrita para mais eficazmente lhe escaqueirarem o mundo plástico. Mas – e o truque nefando consiste nisto – no fundo não era a ele que visavam, tanto mais que a manobra já não colhia por ele lhes ter escapado para outros olimpos mais específicos. O que essa gente tentava e tenta era impedir que companheiros mais novos e com outras soluções de continuidade não ficassem sem voz, tão submersos como nos tempos da ditadura que ele detestava, como detestou todas as outras.

 

Essa gente, permitindo-lhe agora existir sem peias depois de durante os princípios da sua vida o buscarem liquidar e emudecer, queriam que ele se tornasse um refém dos que em Portugal põem e dispõem através da mentira cultural que vê a escrita e a literatura como aparelhagens para fazer “fins de meses” ou carreiras que eles mesmos controlam…

 

Hoje como ontem, num país onde a realidade já está mais que apodrecida, o surrealismo continua a perturbar porque não é um álibi para mercadores de carne assassinada. Por isso o acatitavam, fingindo que o amavam, visando transformá-lo numa espécie de faraó que caucionasse melhor as tentativas de extinção de um pensamento que é existência em todas as direcções e que ele sempre perfilhou.

 

Durou 83 anos. Fez o que pôde e como pôde para exemplificar que as palavras que de facto contam passam pelos continentes da liberdade, do amor humano e do espírito sem algemas.

 

E, apesar dos zoilos e dos medíocres continuarem a tentar queimar o “castelo encantado”, que para eles tem a forma de literatice ou de convenção imagética seja neste país, seja nos outros onde vivem e actuam muitos companheiros de sonho e de vigília, a busca da maravilha continua.

 

 

 

Dois poemas de Cesariny

 

 

Discurso ao Príncipe Epaminondas, mancebo de futuro

 

Despe-te de verdades
das grandes primeiro que das pequenas
das tuas antes que de quaisquer outras
abre uma cova e enterra-as
a teu lado
primeiro as que te impuseram eras ainda imbele
e não possuías mácula senão a de um nome estranho
depois as que crescendo penosamente vestiste
a verdade do pão a verdade das lágrimas
pois não és flor nem luto nem acalento nem estrela
depois as que ganhaste com o teu sémen
onde a manhã ergue um espelho vazio
e uma criança chora entre nuvens e abismos
depois as que hão-de pôr em cima do teu retrato
quando lhes forneceres a grande recordação
que todos esperam tanto porque a esperam de ti
Nada depois, só tu e o teu silêncio
e veias de coral rasgando-nos os pulsos
Então, meu senhor, poderemos passar
pela planície nua
o teu corpo com nuvens pelos ombros
as minhas mãos cheias de barbas brancas
Aí não haverá demora nem abrigo nem chegada
mas um quadrado de fogo sobre as nossas cabeças
e uma estrada de pedra até ao fim das luzes
e um silêncio de morte à nossa passagem.

 

 

You are welcome to Elsinore

 

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam


e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

(…) Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor

E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o
amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto

 

 

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