UM CHEIRINHO DE MISTÉRIO
(Nicolau Saião)
1. A grande caçada
Hão-de os homens passar
para lá de Plutão, penetrando no grande vazio tão estelarmente cheio
e levarão talvez na bolsa, a amenizar-lhes a jornada, um trecho de
Vivaldi. Ou de Schubert, de Bach, de Pierre Henry...
Numa das gavetas, numa
das sacolas da nave, para os momentos de grande nostalgia ou de fome
de encantamento, livros a granel. Resmas de livros...
Acredito nisto. Se não
acreditasse mais me valia arrumar já as botas. Esses nossos
descendentes deverão ser gente sensível – à guisa do tal que, quando
esteve lá em cima, ao contemplar o azul da Terra sentiu um nó na
garganta e as lágrimas à beira do olhar.
Aposto que neste ou
naquele vaivém sideral não faltará um exemplar de "Pietr, o letão"
ou de "O falcão de Malta".
Faz agora precisamente
76 anos que Hammet o concebeu. Ano de farta colheita, aliás: Agatha
Christie publicava o primeiro relato de miss Marple – 10 anos antes
surgira a rimeira investigação de Poirot – e Simenon dava à estampa
o primeiro Maigret. Frederick Irving Anderson editava o canónico "O
livro do assassinato" e David Frome, por seu turno, publicava "Os
assassinatos de Hammersmith", o primeiro livro do sr. Pinkerton. Por
sua vez, o grande Francis Beeding... Mas fiquemo-nos por aqui, não
valerá a pena pôr mais na carta.
O que, claro, eu quero
dizer é que estes livros se lêem como se tivessem sido cozinhados
mesmo agora. Por terem ponta de génio? Está de ver, mas
principalmente porque a Literatura Policial (LP, "polar", "giallo",
chame-se-lhe como se quiser) é um dos sinais específicos do nosso
tempo – e o meio-século que foi da década de 20 (anos em que
surgiram também H.C.Bailey, Dorothy L.Sayers, Freeman Wills Croft,
Earl Derr Biggers, S.S.Van Dine e Anthony Berkeley) até aos anos 70,
foram o território de caça dum certo imaginário que reflecte uma
maneira de viver, de ser, de circular pelas veredas da existência.
Logo nos anos a seguir o
caso mudaria de figura: não só a science-fiction se convertia
em vedeta inquestionável como viriam à luz relatos em que o ambiente
político-social seria equacionado, culminando com o aparecimento do
"social-thriller", ficando expressas em cada narrativa a corrupção e
a decadência de esteios do Estado (tribunais, polícias, entidades da
representatividade democrática) doravante sujeitos a um franzir de
olhos desconfiado.
No entanto, apesar da
inocência perdida, poderemos continuar a sonhar um pouco, a ter um
pouco de esperança – enquanto Sam Spade olhar o espectáculo dos
bonzos do poder com um sorriso críptico nos lábios e Marlowe for
andando sob a chuva, seguido pelo som nostálgico e difuso de um
saxofone...
2. Ao vivo é mais
bonito
Mal me sentara na
“Cervejaria da Praça” depois de ter mandado vir um Ice Tea de
pêssego, eis que o vi assomar do lado da “Rua da Cadeia”, onde os
espanhóis vão comprar os “amarelos” que é como quem diz os objectos
de cobre com que se fazem no matrimónio com as carmencitas.
“Lemmy!" – chamei
eu com um gesto o senhor Lemmy Caution, que com o seu metro e
oitenta e quatro e o ar façanhudo à Eddie Constantine fazia um
vistão no centro da cidade de Elvas naquele princípio de tarde
caliente, fronteiriça, enquanto as senhoras na esplanada falavam
das suas idas ao Lidl e ao Pagapouco e cortavam com afecto na casaca
das ausentes, no linguajar cantante que lhes é próprio.
O grande detective
chegou e sentou-se, esparramando os noventa e sete quilos na cadeira
subitamente frágil, lusitanamente dolorida. Ergueu o dedo
displicentemente e o criado acorreu com um copázio já repleto de “bourbon”,
que ele arrebatou com a sua apreciada falta de cortesia. “O
Philip já está lá dentro, informei-o. Está a tomar um
“calvados” à Maigret com o Poirot...”. O Lemmy sorriu, fazendo
com que o coração duma jovem que passava se pusesse a palpitar: “O
Marlowe está a levar p’rá má vida o pobre do belga..., disse com
o seu sotaque duro e arrastado de novaiorquino. Sabes se a miss
Marple vai demorar?”. Não lhe respondi, tanto mais que naquele
momento, dos lados da Igreja da Nossa Senhora da Assunção, bem
equilibradinha nos saltos altos e bamboleando-se como uma leoa,
vinha chegando a Effie Thompson, a mais que competente secretária do
Slim Callaghan e grande ciumeira do Mike Hammer, que como sempre
iria chegar atrasado e com um cheiro a pólvora. Levantei-me
cavalheirescamente e a Effie fez um muchocho na direcção do Lemmy,
que apenas a considerou de alto a baixo com o olhar número seis. Mas
ela pareceu gostar. “Sai uma Sagres!”, clamei para o
empregado magrito e de óculos escuros, vocês sabem, aquele que se
abanica um tanto. E quando a Effie se sentou, cruzando meu deus as
gâmbias envoltas em seda de primeira, chegaram o Marlowe e o Poirot
vindos da sala do bar. O belga desbastando ainda uns restos de
tremoços ou de amendoins.
E foi então que reparei
que o Marlowe tinha um ricto na face. Olhava para o lado da praça, o
cigarro pendente do lábio taciturno e o peito arquejando ao de leve
com alguma preocupação.
Era um carro da Polícia
que vinha a chegar. E que parou em frente da esplanada. Apeou-se um
par de chuis: um deles, de quase pequena estatura, usava o
cabelo airosamente penteado e um bigodinho como uma linha preta
retinta. Sapatinho de tacão alto, o uniforme justo ao cabedal.
Parecia a caricatura de um galã das fitas do Totó.
Energicamente, repuxou
os lábios donairosos e disse para o Lemmy, mas olhando para todos: “Vamos
a circular... Desabelhem já daqui. Dentro de um minuto quero vê-los
na alheta. Vá, ponham-se a andar!”. A Effie ainda tentou uma
frase qualquer. Os outros tal como eu, nem isso. O Poirot, via-se,
engolia em seco. O Lemmy perdera a rijeza. O Marlowe deixou cair o
cigarro do lábio.
Pusemo-nos no andor. Que
remédio! Evidentemente: é o que acontece quando estamos a contas com
um polícia a sério.
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