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Kurt Schwitters, Formas no espaço

 

CARTA DE SAMYAZA RAFACALE AO SEU AMIGO AZAZELO EYQUEM DE REICHNAU, DUAS SEMANAS APÓS TEREM POUSADO NO PLANETA NÚMERO TRÊS A QUE CHAMARAM EUROBOROS E ANTES DA MUDANÇA DE ESTAÇÕES A QUE DEPOIS SE IRIA CHAMAR INVERNO/PRIMAVERA

 

(Nicolau Saião)

 

Caríssimo:

 

Não é preciso dizer-te que isto a princípio foi monótono: amarração, desprendimento, notação de azimutes, um pouco da Teoria dos Contínuos, muita indecisão entre ficarmos mesmo na ilha ou irmos até ao continente que se divisava, horas altas, para além das montanhas com as suas cúpulas de neves eternas que pareciam sair da neblina que a certas alturas do dia cobria o mar.

 

O comandante Theos Gallipoli (tu sabes, o tal que depois foi nomeado pelo Conselho logo a seguir ao conflitozinho com os de Inergaum o que se calhar até foi por cunhas mas não vamos agora por aí) deu ordem para que a princípio ninguém saísse, o que constituiu uma estucha que tu nem calculas. No entanto, a breve trecho teve de se deixar de coisas, até porque depois de tanto tempo de navegação a malta estava realmente atormentada. Um dia vi materializar-se, mesmo na minha frente, a figura de meu tio Asmodeu, como sempre com um copo de boa pinga na dextra enquanto recitava pausadamente a partir dum velho manuscrito que balançava na sinistra: “A vós, os embusteiros, que o infinito passou a provérbio / direi apenas que havereis de ver / num canto do jardim e às escondidas / uma simples cadeira / um artefacto / para as mais formosas, aquelas / que melhor irão dançar. Nos anos a vir / vos serão revelados / os certos e justos condimentos sobre as mesas: / só sangue numas / só terra noutras mais / E por isso havereis de as mãos passar / sobre as colchas das alheias camas / em quartos serenos e alegres. Havereis de saber / que a vossa imagem está por detrás / só de branco ou de negro vestida / Como vosso pai venerável / num outono ou num verão / sem intervalos nem sonhos.” Pareceram-me palavras proféticas, mas não o vou jurar. Em todo o caso posso garantir que não se tratou dum holograma nem mesmo duma projecção mental daquelas que o velho Mummu Tiamat, disfarçado de deus do Caos, nos propiciou para nos chatear aquando da nossa viagem a Bifrons, quando eu ainda era tenente e tu um oficial geómetra. (Belos momentos ali passámos, lembras-te meu colhudo, cala-te já!) Jamais te mostrarei, asseguro-te, a fealdade do mal, falam-me em que há por aqui uns cabelos negros um pouco encaracolados e é verdade, uns olhos assim deste tamanho, ai ai, dizendo com o espírito que encontramos nos melhores momentos, em resumo traduzo-te sem querer ter graça e é garantido: o Samael está a perder as penas da asa direita, mas adiante. Ia eu dizendo que as Obras do Tempo nos fizeram passar de um plano a outro, então eu fui ter com o comandante e resolvêmos que iria eu e vinte e seis outros, a princípio, apalpar o ambiente. Tudo gente de gabarito, estupenda tripulação, o Lucy à última da hora também se propôs ir connosco, eu tinha entrado no vaivém, e lá foi ele num ápice a buscar o escafandro e o capacete de esmeralda, afinal não iria fazer falta a aragem engole-se que é um regalo. Era já noite entrada quando aterrámos. Uma lua de intensos raios iluminava tudo. Ouviam-se risos para noroeste. Um som de flauta, um zumbido intraduzível que te posso apenas sugerir, falta-me jeito para profeta de certos mesteres triviais, mas crê que era tudo uma nova volúpia. No écran da esquerda nada se via. O da direita ficara iluminado a valer. Como sabes sempre enjoei um bocado a altas velocidades, mas o que se divisava era duma beleza inigualável: jornadas de trinta mil quilómetros, upa, sou capaz de me aguentar daqui até lá sem beber água, quando deixámos de pairar sobre as vagas as flores vieram todas, como doidas, pousar-nos nos cabelos e de repente achei-me sem ar, sem negrume, sem apetite, rodava como uma bola de vidro, entrava na velhice, coçava-me sem dar por isso e de repente tudo acabou. Tínhamos chegado.

 

Eram tendas, tendas e cabanas de tijolo. Perto, um ribeiro repleto de canaviais, salsa e hortelã, outras ervas banais e benignas, ovelhas e cabras, um ou outro cavalo, meia dúzia de burros. E seres a que depois chamámos homens.

 

De modo que cá estamos vai já para três semanas e, crê no que te digo, ainda nem sequer apresentei relatório. Como, bebo, até me parece que engordei um bocado. Das sete às nove leio sobre a teoria das coisas plásticas. Eles acreditam em feitiçarias, banham-se de manhã nas águas mais profundas, uma das morenas até me vai ensinar a pescar. Pelo meu lado, ensino-lhe a ciência dos cosméticos. É taful, mexe-se que é um regalo e gosta de me ouvir contar-lhe balelas. O pai é cameleiro e nunca viu mais mundo que o que termina no horizonte. O seu antepassado, um tal Enkidu, ensinou-lhe a fazer vinho e a tecer a lã, eu já lhe dei umas noções de ourivesaria e creio que dará um bom ferreiro. Vamos a ver.

 

O Beemoth vi-o ontem: ia de braço dado com uma garina esbelta mas de boa peida, olhos rinchões, tás a ver. Veremos o que isto dá. Logo comunico com o lar pelas ondas alfa, dá certo conforto ver o pontinho de luz lá no alto, mesmo sendo um sacripanta o comandante irá gostar disto aqui, insisti com ele para que descesse. Há por estes sítios gente com interesse, têm muitas virtualidades fora a inocência, não sei ainda se daqui a uma semana iremos passar para as terras do lado de lá do deserto.

 

Há bocado ofereceram-me um assado de pavão real. Acompanhei-o com um moscatel que não te digo nada. Sinto-me cheio de genica, o Iblis vai retransmitir isto em diferido.

 

Abraça-te sem sofrimento, mesmo levando em conta a ausência, o teu velho

 

                                                                                                 Samyaza, o língua ágil

 

 

(a Sephi Alter, com apreço)

 

 

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