ELOGIO
DO CRETINO
(Nicolau
Saião)
Devo
dizer
que
gosto de cretinos. Não, garanto que não é por piedade
mas
por apreço convicto. Talvez com uma pontinha de malícia
mas
sem acinte nem ferrete. Uma (como dizer?) maneira
de
tímida ternura.
Afinal
– não é verdade? – o cretino
é
uma espécie humanóide altamente meritória
e
multifacetada: vive conosco à mão de semear, conhecemo-lo
das
ruas, vemo-lo
na
TV, lemo-lo nos jornais… Ele acompanhou sempre
nos
mais expressos lugares
a
rude humanidade
desde
o fundo dos tempos, desde os primórdios
da
vida. À roda da fogueira
lá
nas épocas longínquas do período quaternário
quando
ainda não havia cretinices modernas (televisão, rádio
parlamento…)
podeis crer que já havia, embora hirsuto
um
ou outro cretinus sapiens. E pelos
tempos fora
na
idade dos ancestros da pré-história
que
seria dos inícios adequados
da
social organização
sem
um par de cretinos a adorná-la?
Seja
na arte ou na literatura
nos
ramos do saber que o mundo louva
ou
demais regras e ofícios
como
poderiam os cretinos dispensar-se? Cretino foi, ao acaso
o
tolo do Caim, ou o pobre do Job
ou
– na quadra das letras – o bom do Pinheiro Chagas
que
teve a parvoíce de ser contemporâneo
do
Eça magricelas.
E
nos domínios vicejantes da pintura
o
tremendo Bouguereau, que dizia de Cézanne
que
este só fazia borradelas.
Ou
nos salões do espírito
sagrado
o
magistral Bossuet, a águia de Mons
que
Deus tenha bem guardado.
Enfim,
nobres exemplos
de
douta cretinice. Pois o cretino é plural
e
em todo o lado sabe imiscuir-se.
(Aqui
um aparte
para
os estudiosos de gabinete: não deve confundir-se
o
propriamente cretino, cretinus boçalis, com o
pedaço-de-asno
que,
sendo semelhante – a olhares sem estética –
claramente
pertence
a
outra espécie cinegética.)
Na
boa sociedade, naquilo a que se chama
a
melhor sociedade, a tal que se pauta por livros de etiqueta
escritos
em geral por excelentes senhoras – às vezes excelentes cretinas
–
o
patarata é um valor seguro: já pensaram
que
seria das páginas sociais de afidalgados
ou
mesmo só de notáveis burgueses agregados
sem
um ror de cretinos e cretinas interessados
em
lhes saber da folha, em lhes saber dos fados?
A
vida sem cretinos
é
como um lar sem pão, teatro sem enredo, jardim
sem
flores ou passarinhos (olha que imagem cretina!),
como
dizem as poetisas de arrabalde
com
vaporosa graça
quase
divina.
Numa
recepção de Estado, no salão duma autarquia,
numa
cerimónia de homenagem a um que nada fez mas morreu tarde
ou
demasiado cedo, co’os diabos do talento
seja
na capital ou na feliz província
a
presença de cretinos é uma jóia sem preço:
são
os que convictamente
mais
aplaudem, sem maldade
nem
cálculo traiçoeiro
ou
gritam apoiado
criando
felicidade
no
elenco inteiro
ou
mais valia, nas forças vivas da cidade.
(E
em geral,
por
ironia do destino
o
orador habitual
é
que costuma ser, por sinal
o
maior cretino!)
Sim.
Gosto de palonços. Ei-los que desfilam: na política,
no
professorado
na
res publica (que, como se
sabe, significa coisa pública
–
dou o esclarecimento
não
esteja algum cretino a ler-me) o palonço
é
fundamental.
Quem
diz palonço diz palonça (explico já
não
vá
alguma
feminista cretina
pensar
que o meu poema a discrimina).
A
cretinice pura
é
algo de adorável como tudo o que é puro:
um
puro mel, um puro amor, uma pura
doidice,
uma pura miséria…
Mas
para que o cretino seja esplêndido
necessita
de ambiente a condizer: bons ares e boas águas, está claro
mas
também uma família recheada de atenções e de cuidados,
ao
velho estilo patriarcal, cultivando modelarmente
os
sãos e pacientes
cretinos
valores.
Não
precisa, todavia
de
ser fundamentalista praticante
desses
conceitos sem jaça: ele há tanto cretino oriundo
de
meios inconvencionais. Como o cacto, o cretino
adapta-se
a qualquer terreno, por mais adusto que seja!
Façamos-lhe
justiça: o cretino, digamos, é como
um
livro aberto – o que ali está
não
engana. Por isso tantos cretinos, por serem senhores
graves
e concentrados
até
chegam a ministros,
a
assessores,
a
deputados.
(Também
sucede que alguns
no
entanto
nunca
passam de criados…)
O
cretino estimula as próprias artes, as próprias letras. Até a
filosofia!
Lembremos
as
expressões fenomenal cretino, cretino
piramidal, cretino apimentado,
cretino
até dizer
basta. Enfim, altos jogos verbais como
tudo
o que o humano engenho inventa. Já houve quem dissesse
que
ele é como as castanhas: nem sempre
as
maiores são as mais saborosas!
Os
cretinos rurais…
Os
cretinos citadinos…
Os
cretinos intermédios
sociais,
profissionais…
Os
viandantes cretinos…
Enfim,
não divaguemos!
Vou,
então, terminar.
Meter
um ponto final
antes
que, impaciente
o
leitor inteligente
me
apode gentilmente
de
redundante ou, até,
de
chatarrão
–
espécie de parente
maganão
que
também merece versos!
(in
“Poemas Omnívoros”)
|