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Camille Pissarro

 

SEIS FOTOGRAFIAS DE PABLO NERUDA

 

(Nicolau Saião)

 

Primeira foto: Neruda com o pai, aos três anos. A mãe tinha ido a Cochabamba comprar figos. No rosto da criança lê-se uma expressão ansiosa. Nessa manhã o seu primo Felipe, dois anos mais velho, oferecera-lhe um gaio. A mão do pequeno Ricardo (chamava-se então apenas Ricardo Reys Basualdo) parece um pouco enclavinhada na fímbria do casaco do seu progenitor.

 

Segunda foto: Neruda no terreiro junto da casa familiar. Os olhos assustados. Vira nessa manhã uma cobra junto a um muro. Podemos imaginar como à criança de seis anos essa visão inusitada perturbara. Traz uma camisita branca de folhos. O cabelo é um pouco revolto, como se lhe tivesse dado uma brisa indiscreta e prazenteira.

 

Terceira foto: Neruda na sala de aulas. Percebe-se que olha com alguma inquietação o professor, como se este lhe tivesse comunicado coisas inomináveis. Na carteira em frente da sua, uma mocita sensivelmente da sua idade deixa ver meio-perfil. A sua expressão é de clara expectativa.

 

Quarta-foto: Neruda numa praça de Santiago. Tem um pouco mais de vinte e três anos. Um ar de intensa concentração. Olha a direito, com seriedade e decisão. Os passantes nota-se que reparam atentamente neste jovem a quem as musas decerto têm sorrido. Entende-se que o autor de “Residência na Terra” possui mil razões para permanecer tanto no mar como na terra dos silêncios e das buscas.

 

Quinta foto: Neruda junto de César Vallejo. Um ricto intraduzível paira-lhe no rosto. Vallejo, que mais tarde iria morrer de uma doença desconhecida, com os ombros erguidos mostra ao amigo a força de quem tem por si o génio e a esperança. É sabido quanto Neruda o admirava, ainda que não o soubesse ou pudesse demonstrá-lo.

 

Sexta foto: Neruda numa sala, intensamente concentrado, ouvindo a telefonia. Transmitem o relatório Kruscheff, cujas revelações iriam espantar intelectuais em todo o mundo. A expressão do poeta de “Canto geral” é de claro sofrimento. Um dia mais tarde, na Isla Negra, Pablo Neruda irá relembrar as conversas com Vallejo e uma dor muito funda atravessar-lhe-á o coração. As recordações da guerra de Espanha afinal permaneceram na sua memória até ao momento devastador da morte.

 

 

Sobre o poema acima, de NS, a professora Cecília Zokner (Brasil) escreveu o seguinte comentário, publicado no jornal O Estado do Paraná (6-8-2005):

 

Para além das imagens

Num breve e denso artigo, “A recepção literária de Neruda em Portugal”, Manuel G. Simões historia a presença de Pablo Neruda em Portugal, desde 1946 – possivelmente o ano em que, pela primeira vez, um poema seu, “Farewel”, traduzido por Jorge Emilio, aparece na Antologia Confronto –, até 2004, quando alguns textos registram, sobretudo, o centenário de seu nascimento. Na verdade, uma presença que só tardiamente irá se enriquecer o que, sem dúvida, nada tem a ver com a qualidade da obra, mas com as orientações ideológicas que determinaram as edições portuguesas e as importações de livros durante os muitos anos da ditadura fascista em Portugal. A esse cuidadoso estudo, que reúne valiosas informações sobre as relações de poetas portugueses com Pablo Neruda e sobre seus livros publicados em Portugal, sobretudo nas últimas décadas, seguem se a tradução de “A lâmpada marinha” e de “Saudade”, feitas por Manuel G. Simões, a lista das principais edições em Portugal das obras do poeta chileno, compreendidas entre 1969 e 2004, um estudo de Eugênio Lisboa, “Pablo Neruda e o Livro”. E a antologia organizada por Cristino Cortes, sob a rubrica “Neruda, cem anos  depois” que, também, dá o título à obra, publicada em 2004, pela Universitária Editora, de Lisboa. Os setenta e sete poetas portugueses que dela fazem parte, na sua maioria, nascidos nas décadas de 20,30 e 40, homenageiam, não apenas o homem comprometido com as causas sociais e a sua voz que é, também a voz de um homem amoroso, mas a beleza e o fascínio de sua expressão.

 

Entre os poemas, “Seis fotografias de Pablo Neruda”, de Nicolau Saião, surpreende pelo inusitado ao descrever, aparentemente em prosa, fotos do Poeta. São frases curtas que, em seis tempos, traçam uma biografia feita de emoções, presumidas por aquele que tem diante de si as fotos que imagina. Assim, embora haja um registro de tempo (o Poeta aos três anos e aos seis, já adolescente, aos vinte e três anos, depois, adulto), e de espaço (sala de aula, uma praça de Santiago, uma sala) e a menção às pessoas com as quais ele está ou que o rodeiam (o pai, o professor, uma jovem colega, os passantes, César Vallejo), e a um detalhe de seu traje (“veste uma camisa branca de pregas”) ou de seu cabelo (“o cabelo é um pouco revolto, como se lhe tivesse dado um brisa indiscreta e prazenteira”) a comporem a imagem, o que Nicolau Saião quer fixar é o sentir do Poeta na sua relação com o mundo. Um sentir vislumbrando no olhar ou num gesto, numa expressão. Na “Primeira foto”, a “expressão ansiosa” do menino de três anos, sua mão como que “enclavinhada na fímbria do casaco de seu progenitor”. Nas demais, presentes, no olhar, o susto, algo de inquietação, “serenidade e decisão”. Já adulto, mostra no rosto uma “ricto intraduzível”, um “claro sofrimento”. Como o narrador ficcional que tudo conhece de seu personagem, Nicolau Saião ou sabe ou presume saber mais do que a foto deixa ver. Então, os limites da realidade e da invenção se esbatem. Há nomes de pessoas, de lugares e de livros; há suposições e dados improváveis nas afirmações desse falante, presente no texto, que se deixa ver na autoridade de uma primeira pessoa do plural (“podemos imaginar”) e no ater-se ao que, em princípio, pode ser do conhecimento de todos (“entende-se”, “percebe-se”) ou ao que ninguém ignora (“é sabido”) para, nessa cumplicidade, delinear o poeta chileno, menos na sua imagem do que nos seus momentos vividos.

 

E’ quando se mostra irrelevante rastrear o falso e o verdadeiro nesse dizer poético de Nicolau Saião.

 

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