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Paul Gauguin, Auto-retrato com o Cristo amarelo

 

Poemas de Nicolau Saião

 

O cão

O pão

O prato

Paul Gauguin

Braque

Georges La Tour

Composição

Poema

Poema (sonata)

A Schubert

Espanhola

Parábola

O penico

Sem título

 

 

 

O CÃO

 

1

 

Um cão é por vezes

uma parábola, um conto, uma quimera

diferente do gato por ter a mais

o latido   negro e o olhar raiado

de anos

de sangue e de histórias pavorosas.

 

Tanto cansaço

por um cão! Porque o dia

desfaz-se em pedaços

e subjuga-nos

e já nada é lonjura

limite, precaução

na memória.

 

Lovecraft

teria tido um cão?

E o cão de Rilke

forma desenhada

exercitando o estro

do seu dono ausente?

Qual o nome

do cão de Diana caçadora?

Não o preferido, o outro

que falhava perdizes e raposas

se adregava de quedar-se

no bosque prematuro

a mijar na caruma, contemplando

lá no alto uma brusca ameaça de luz.

 

Cão - recorte

de muitas linhas

que se confundem

estranhamente

na ardósia efémera

uma e outra vez

- nada nos dirá nunca

com seu focinho liberto

e sonolento.

 

 

2

 

“Ninguém para mim morre. Sempre haverá

o movimento que foram e não foram

os homens, as flores, o infinito.

 

Celebro

não apenas o instante

mas o véu que nos dá

obras e paixões.

 

Inscrição sobre um muro

que se impõe, silenciosa

como se nela entrasse

o perene sussurro

da mais pura tristeza.

 

Unindo eternamente

olhos, vozes, planetas”.

 

 

(in “Os objectos inquietantes”)

 

 

 

 

O PÃO

 

1.

 

Eis o pão sobre a toalha:

não se agita, não grita

- está ali,  simplesmente

como uma ilha a descobrir

pelo sabor e o cheiro.

 

Um pão morto, um pão vivo

o cortado ou o inteiro?

 

O pão por vezes geme

como uma égua louca

e cresce, cresce ardendo

no sangrento e lavrado

triste e desabitado

nevoento, esfomeado

céu da boca.

 

O pão é a substância

dum bicho transformado:

o tempo   e a terra

onde foi criado.

 

 

2.

 

Tronco de paz, tronco de escuridão

erguendo o cadafalso para todos

 

Suavíssimo, cercado de claridade

um avião gelou o sonho e a aurora

 

Uma flor crepuscular desafia o delírio

litania de fome destruindo o desejo

 

e uma cidade, angustiada, afoga-se

na sua própria imagem

sem que lembrada seja

 

como o sabor do pão

para ninguém.

 

 

 

 

O PRATO

 

Que experiência

levar com ele na cara!

 

Filósofo ou poeta

marinheiro ou pastor

ou doutra profissão

em que o físico tenha o principal papel

o prato é sempre prestável

excepto quando há circunstâncias

atenuantes. Então

não dá tréguas nem descanso: que se amanhe

quem nele come!

 

As flores são num prato

normalmente decoração. Pois que nele

têm os legumes a carta de nobreza: o azeite

é um rio de frescura, atravessando

saiba-se lá que inóspitas planuras

de justíssima gula.

 

Nele repousam os peixes

os capões

os arrotos dos convivas. Má educação seria

deixá-lo cheio.

 

Do prato à boca

se ganham insuspeitadas malícias e sabedorias.

 

 

 

 

PAUL GAUGUIN

 

Calemo-nos, vizinhos

bem calados

detrás da cortina, à noitinha

na ilha, na neve, esperando

o crucificado amarelo.

 

Uma canoa indígena lá vai

navegando na sétima tela exterior

ora por tristeza ora por alegria.

 

Sífilis,   só de graça.

Tuberculose,  a que bastar.

Sangue,  o que as armas forneçam

de juntura com o azul da Prússia

bem francesa. Ou então

 

por piedade

o louco branco cobalto.

 

A orelha não serve a ninguém

a não ser por modelo ao vivo

colonial.

 

Mette Gad, Mette Gad

onde escondeste o teu rosto lilás apodrecido?

 

Na Bretanha,  muito doce,  ao crepúsculo

cai uma pinga de sangue no chão

e o azeite sobe no ar

e a casa é tão pequena

lúgubre, idiota.

 

Nas ruas ainda vai restar

um sopro de vento dos mares do Sul.

 

 

(inCaixa de cores”)

 

 

 

 

BRAQUE

 

Olha o Georges

diziam os colegas

a andar de bicicleta

 

Mas isso era muitos anos depois

e na infância não se sabia como

embora estivesse em relevo essa figura

entre peixe e cavalo.

 

Georges passava tranquilamente

de uma sala para um quarto

de cabelos eriçados

enquanto as flores e os frutos

se multiplicavam

na madrugada

 

Mas Georges não sabia nada disso

um prato de legumes lhe bastava

 

Havia uma grande e silencioso alegria

uma palpável tranquilidade

na casa onde o Verão caíra

sem que ninguém se desse conta.

 

Mas Georges ainda nada sabia

de jarras e de janelas

 

Limitava-se a deixar que até ele

chegassem silhuetas de animais

 

que sobre as suas mãos de criança

deixariam talvez mistérios de outrora.

 

Georges sabia, afinal, o necessário

para traçar a unidade da luz

ângulos

 

e maravilhas abandonadas.

 

 

(inCaixa de cores”)

 

 

 

 

GEORGES LA TOUR

 

I

 

É preciso que a rima acerte

no centro do espanto do tempo

como uma luz, como um segredo

nas paredes brancas e ausentes

 

Como inexistentes fulgores

de segundos, minutos, horas

retalhos coloridos, vistos

em recantos e ruas

 

Tecidos, ou papéis, ou pedaços

de estuque guardando do sol

apenas um detalhe invisível

insuspeitado e sombrio

 

Cabeças que tombam sobre as mãos

a água e a cera, a mancha crua

- é forçoso que tudo se incline

e persista na sua existência

 

Carne   e em socalcos, por debaixo

de tudo, como no cinema

as lembranças negras dos lugares

onde o Homem deixou um vestígio

de lume ou escuridão iniciais

 

 

II

 

Este rosto: um pedaço

de carvão, uma lousa onde se escreve

como na infância. Tão doce

a ama com o menino nos braços. Tão

verdadeiro e terrível. Moradias

exactas para gentes inúmeras

 

vivendo para sempre ao lusco-fusco.

 

 

(inCaixa de cores”)

 

 

 

 

COMPOSIÇÃO

 

ao Abel Teixeira

 

I

 

O poema tem o seu ritmo próprio:

começa-se por exemplo pela folha de papel

- se alguma dobra na geografia da sua

estrutura (digamos:  como um rio

em miniatura)  perturba a superfície que

as idéias já conceberam

como perfeita (perfeição:  lembrança

ou esquecimento do que virá a seguir) é

necessário saber

recusar tudo: os enleios, mesmo a voz

que desponta. E poderemos nós adivinhar

os funestos ruídos que sem aviso

nos entram na cabeça (pela janela, pelo

quarto mais longínquo da casa, pelo

ouvido direito)  e criar movimentos que

mais que estorvar desfazem?  Depois

há as palavras. Ou nem bem palavras, antes

suposições virtuais de significados

simples - jardim, óculos, uma preposição

de acaso, um barulho que junta um porquê

a um verbo desirmanado, que é como quem diz

velozes interrogações. Assim é a poesia

menos e mais que remorso, que

trémula projecção, lentidão

pressentida, imagem

através duma ausência. E ainda há

que coligir pontos acesos no interior

das regras gerais:  fogos à luz do Sol

escadas sem nome e sem regresso, sinais

enfim desaparecidos.

 

 

II

 

Daqui vamos tirar o minuto que sobrou

Dacolá uma cor que o tempo já esqueceu

Desta parte a figura eternamente traçada

e de nós mesmos as vozes que em nós sempre existiram.

Existiram, ou seja - ficaram alguns anos

como casas construídas junto a bosques tenebrosos

A memória dum grito, a lembrança duma frase

que ajudou a tornar inesquecível a angústia.

O som que se repete, incessante, monótono

crescendo pouco a pouco enquanto a noite aflora

devemos abandoná-lo, desfazê-lo, mostrar

a sua dura polpa no momento que se escoa?

Assim como se as horas se erguessem como árvores

no caminho tomado ao raiar da manhã

como se um morto revelasse as cores insuspeitadas

- crivo, rumor, fantasma ou palavra perdida

Era Dante que dizia que os malditos conhecem

além dos sons do piano as salas sem cortinas

onde Deus nunca entrou, onde as imagens são

como um pretexto mais para existir em silêncio

(Dos bolsos, afinal, saiem dedos e mãos

que bem melhor seria jamais lá terem estado).

Schubert, coitado dele, poderia demonstrar

que a melodia é mais do que tudo uma incógnita

como recordação achada por acaso

e oculta na penumbra ou pairando no lugar

que tantas vezes vimos quando éramos crianças.

 

Porque o segredo, afinal, não é mais que reflexo

que se acende e se apaga como faróis ao longe

Perfis que nos ofertam, sem que aliás o saibam

horizontes vazios de cidade alucinadas.

 

 

III

 

Sete horas, sete

e meia: é quando ( como ao abrir

da primeira ou da nona, quadragésima

página)  a surpresa se sente    Alguém

que uns anos antes escrevera porque lhe dera

na vontade “sobre a nossa cabeça  sopra

um vento sem sentido” digo    como se nós

tivéssemos tirando a coisa a limpo a fotocópia

sem saber sem sentir verso empedrado muito

batido antes de entrar na primeira

estrada - que é como quem diz   caminho

para palavras que se empregam   vá lá

umas cinquenta vezes    e vai-se a ver lá

estão nas folhas do outro   na  voz

do outro   tal qual uma água que

passa no rio mais que uma vez   então isso

acontece de repente e são apenas

dezasseis e quarenta numa tarde

de pequeno sol   a surpresa

foi demonstrada desmembrada entendida

é assim que se compõem universos   digo

é assim que afinal as coisas se passam   dizes

e pronto   somos nós que enfim concebemos

como um planeta gira sem pedir licença   diabos

dizemos  (em voz sumida)  levem a escrita. Se tudo

 

não é novo sob o firmamento  (há  outra

versão para ingleses românticos) quem de nós

deixará fruto ou bebida   ou resquício

- em todo o caso vestígio para ser contado -

deixará   dizia   pégada perfeitamente envolta

em papel  (já não de livro)  embrulho

para séculos e séculos de possível memória?

 

 

(inFlauta de Pan”)

 

 

 

 

POEMA

 

Senti a coisa assim:  estava a olhar

a estante grande

onde as obras infantis do Pequenu, por um holandês

estão antes de Joseph Conrad, depois de Alejo

Carpentier, Sinclair Lewis   (primeira

dificuldade:  como revelar o que de estranho, exacto

sugestivo   existe nisto - direitos e limpos, com sua

repousada claridade, com sua serena

dimensão

estes livros têm parados num espaço

que é a sua figura permanente, a distância

precisa de tábua a tábua)

 

e de repente apercebi-me (a Mãe  trouxera-me  café)

de que não perderei só

as recordações,  os momentos palpáveis,  o retrato

(começara a chover; o vapor cobrira levemente

os vidros por dentro)  de seres e gentes

mas que   ao mesmo tempo

perco as memórias que os outros tiveram

ou que resolveram inventar.  (Palavras

 

horizontais e verticais:  medronho,  copázio

desenho rabiscado como se fosse

um esboço). E uma certa América

em alguns fins de tarde - alguém que diz

“uma semana sem um cigarro!”   em qualquer

quarto esconso de Los Angeles - (na cozinha

comiam-se carapaus fritos, de molho

de cebola  para refrescar a sua carne branca)

por entre

oliveiras e telhados.

 

Chegar a testa, lentamente

ao reposteiro de grossa mescla castanha clara

e saber

que tudo está disperso

e que outros terão outras memórias

que serão

as mesmas

como se de repente a nossa cabeça

fosse não só a sua verdade

mas ainda mais

o seu momento

desaparecido antes de haver

 

silêncio e luz.

 

 

(inFlauta de Pan”)

 

 

 

 

POEMA (Sonata)

 

Saint-Éxupery desejava

algo que se derramasse sobre o Homem

como um canto gregoriano,  tão puro

como as vozes fluindo num claustro ou numa

sala abacial. Saint-Éxupery

 

no seu avião, entre o reflexo das estrelas

atravessando o deserto de Al-Aifa ou Djamila

sentia para além do odor do couro

persistentemente colado à sua figura

de pássaro desaparecido

na cabina que era a sua catedral

lunar e terrena

a luz das vozes como numa

manhã de Novembro: os vultos encapuçados

cruzando timbres, os tenores e os baixos

trocando o seu jogo simultaneamente

pesado e leve

que faz comunicar céu e terra

pela mesma escada sonora

(o mundo de baixo e o de cima

ligam-se pelas colcheias e semifusas)

que mais tarde iria fascinar Mozart

Haydn, Pierre-Henry, Johann Sebastian Bach.

 

Mas é fácil multiplicar os exemplos: José

ou Pedro, João ou António ou Gaspar, simples

cidadãos dos diferentes países dos continentes

onde a araucária ondula contra o vento

ou a oliveira tremula sob a chuva

numa vereda da montanha

num quarto ou numa sala ou pela rua

ligam serenamente um botão

distraidamente   enquanto voltam as folhas dum livro

ou acendem um cigarro

e coçam um qualquer recanto do corpo

e levam copo ou chávena aos lábios

que antes murmuraram para alguém

“repara” ou “queres ouvir?”

ou simplesmente nada disseram

presos ao silêncio envolvente

da noite de Primavera

- e a grande onda salta através dos anos

singelamente

e rodeia os humildes objectos em torno

e flui delicadamente e consagra

ouvidos, olhos, mãos que repousam

subitamente serenas. O canto

cumprindo os mistérios que perpetuam

tardes e madrugadas

é junto de nós uma entidade que palpita

que ilumina como a brusca chama dum fósforo

e nos diz    nos diz  veladamente

 

os séculos e os momentos    incomensuráveis.

 

 

(inFlauta de Pan”)

 

 

 

 

A SCHUBERT

 

Não em Viena   claro   não em Lisboa

nesse edifício  “tristíssimo, de pedra

acinzentada, com péssimas retretes”  aonde um lieder

seria fadinho    ou então habitual melopeia dum

Goethe estúpido genial companheiro de reis   andando

por sítios tais que não lhe era dado compreender o génio

em translação    Não em Lisboa   digo   ou seja em Portalegre

lugar atentamente imóvel em retratos em húmidos

quartos de casa    em cozinhas onde retumbam cançonetas

onde as mãos ou melhor onde uma certa mão procura

adejante dar o mais belo travo ao arroz-doce   florir

as manhãs de Grillparzer  (“Algum

de vocês tem um pedaço de papel, de preferência

de música”, perguntavas tu um pouco aborrecido e infeliz

no caminho da floresta)  Ou seja: não era nesses tempos possível

andar três horas a pé de bicicleta e ir até ao fim da

Rua de Lichstenthal    ou até São Mamede e cantar humildemente

um trecho da “Viagem de Inverno”  com o coração estalando de

amargura de desprezo como futebolista saindo dum campo em que

a luz do crepúsculo retocada a lápis ad majorem Dei gloriam

fora invadida por holofotes como luzes de cena, ou seja

ópera sem golos sem dribles junto à baliza contrária

para que possíveis fossem o solfejo sonhado o violino e outras

noções elementares provisórias para estranhos vascos gêéme

- sempre eles! - tal como Schiller fazendo o ninho atrás da

orelha a Holderlin   Espertalhões que naturalmente encontram

a música como simples violeta,  cruz de ouro num bolso de colete

num espaço de estrofe provavelmente interior  (“Não havia

janela que não tivesse vasos com flores   plantas trepadeiras

gaiolas de pássaros canoros, mas isto não era a Natureza”)

provavelmente alheio ao vento que sopra e sopra   incessante

no parque do palácio Estherazy. E -  amigos meus  - como é negra

a água desta ribeira    ou à noitinha em Cascais,  lugar

onde vi pela primeira vez ao vivo essa

tal ave, assim o confirmavam Salieri  ou Ruezieska   como

uma história em velhos álbuns de família, século dezoito

para ali virado, Janeiro por extenso de 97. O mar

entrava pela terra dentro,  passava

sob uma ponte  (palácio de gente de muitas

posses, não sei se me entendem)  e a melodia chegou - “Variações

para Piano” - atravessando a manhã dentro de mim   como Bergier

em Bergen-Belsen criando recordando concertos de cinco

minutos   deixava

a suficiente certeza naquele alto silêncio. Observando mais

atentamente as minuciosas imaginadas fotos, os pequenos

truques dos sábios - as tintas, as poções

as colcheias e as chaves por onde principiavas o mundo

sentia-se que valera bem a pena o pobre braço devastado, a anca

frágil,  o suor de ternura nunca oferecido a Carolina

e a Teresa (“Lembras-te   Karolin   daquelas tardes no jardim

quando te revelei que todas elas te eram dedicadas?”) sendo

bem verdade que uma Estherazy ou uma Grob jamais poderiam

murmurar o doce francês   muito baixinho   fosse por elas mesmas

fosse pela outra voz    nocturna,  um pouco atroz    mas sempre

o justo compasso que imaginavas,  o primeiro

timbre para que algo afinal fosse esquecido

para que algo    ficasse adormecido

sobre uma mesa   ao lado dum jarrão    “num quarto

pobre, solitário,  um pouco sujo”.

 

 

II

 

É pois contudo assim que mais eu te amo

“pequeno, rude e mal ataviado”, ou antes   sombra

difusa compondo quartetos frases sobre um aparador

de pinho nessa terra em que era possível ver

oliveiras e árvores sem nome através do ar

Goethe - sempre ele - não respondeu

demasiado em cima que estava de    pequenos poemas

e outras coisas nobres    velharias

e por isso    Harrison descobriu como achar a longitude    pouco tempo

depois nas tabernas de Viena  (“Oh!  Como canta o meu coração!”) as

moças trauteavam refrões viam televisão davam  o tudo

um resíduo cuspido de velhos cânticos    mas era ali

que ele teimava em chamar o lá,  o dó,  o só-lá-si

pequenas sombras   pequenos vultos sobre a parede escura

- oh !  como cantava o meu coração - e os carros

passavam incessantemente

Em frente duma igreja alguns turistas fotografam-se

não há, digo eu, sinfonias incompletas, escutai

vede aqui o nosso junho e o companheiro novembro    escutai

tudo tem   o estrófico e o desenvolvido Cães e pombos e crianças

trauteiam sem sequer pensar durante o longo Domingo    uma cantiga

breve e triste   Escutai   Durante minutos uma ambulância passa

foi alguém    teve talvez a grande revelação

como tu se calhar  “de corpo cansado e desajeitado, de olhos míopes”

Por seu turno - a chuva cai agora duramente - Beethoven percebeu

bem que em Schubert havia  “uma centelha divina”, havia

 provavelmente um momento como numa sala uma visita   fecunda

fraternal    como um Verão que se aguarda.   AgorA

 

a chuva parou    em volta

do jardim sentiu-se uma pequena pausa

alguns ruídos de alguém que passa,  um simulacro se quiserdes

de solenidade,  uma canção

algo perdida,  a melodia que alguém

ouviu pela primeira vez     num quarto muito às escuras    calmo

um quarto inteiramente em silêncio

como uma voz que se escoa

numa casa

 

vazia e    abandonada.

 

 

 

 

ESPANHOLA

 

Ela trazia nas mãos um objecto que desconhecia

Um garfo, um maço de tabaco, três pincéis

E um retrato inacabado e seis nozes esmigalhadas

E duas meias por coser e trinta farrapos de algodão

Que umas vezes levantava no ar outras escondia num bolso

Como um osso no primeiro verso   mas já reconfigurado

 

Trazia uma profunda nostalgia mas isso era apenas engano

E não havia ali por perto papéis rasgados    trapos velhos

Tudo aquilo era não mais que ilusão logro ansiedade

Como se no segundo verso houvesse ternura e terror

E tudo em volta dançasse  cantasse  apodrecesse

 

Ela era uma espécie de ave a quem ninguém pedia contas

Era, digamos assim, um sinal que alguém compreendia

Qualquer coisa realmente absolutamente material

 

Que se raspava da parede    colocava num belo frasco vazio

Como se tudo fosse desaparecer a qualquer momento

 

Como se por trás de tudo estivesse apenas um soluço.

 

 

(in "Escrita e o seu contrário")

 

 

 

 

PARÁBOLA

 

O verde está ao norte na esplanada da manhã.

 

O azul por dentro da camisa do primeiro barítono.

 

O castanho debaixo duma carta dum primo distante.

 

O preto ficou parado: estendeu-se sob uma laranjeira.

 

O anil, por seu turno, nada fez.

 

O violeta censurou-lhe a preguiça e agora vão os dois de braço dado.

 

O cinzento mora no sovaco de um cardeal francês e ressona.

 

O amarelo foi devagarinho aninhar-se por detrás duma garrafa de conhaque.

 

Algumas outras cores dançam de roda. Duas delas cantam:" naquele dia

 

o meu amor nadou sete quilómetros/ ao longo dum rio caudaloso

 

e os girassóis estremeceram/ cheínhos de saudade".

 

Uma cor pequena e modesta subiu para cima duma cadeira

 

e pediu atenção. "Era uma vez", disse com voz clara e sóbria

 

- e todas as cores, sonolentas, desataram a sorrir.

 

 

(in "Escrita e o seu contrário")

 

 

 

 

O PENICO

 

Perdoa-se o mal que nos fazem

pela beleza do que se contempla. Maganão

que não quis ser caneca ou bilha d’água

preso ao sonho erótico de ter

outros horizontes a conhecer: fagulha

imaginária

levemente odorífera

sempre provocante

ou incómoda.

 

Lumpen-proletário abismado

num Universo de águas e fezes lustrais

 

 

 

 

SEM TÍTULO

 

Todos os livros do Mundo me pertencem

- disponho de boas mãos  e de olhos

rápidos a perseguir no escuro

as palavras ocultas -

porque é meu o subtil pé-ante-pé

de números e de nomes, cores diferentes

onde os livros sua morada encontram

e de onde nascem.

 

Nem cínico nem inocente - apenas deslizante

entre madeira, pedra, luzes, rastos

que de fora se chegam  (caspité!).

 

É necessário possuir o mais extremo cuidado

e um fato singular ou então de Inverno

- que o homem calvo à espreita sempre está

a fim de caçar ora um endereço

ora uma expressão, ora um botão

- que teima! - desapertado.

 

(De súbito, a imagem dum frasco vazio

em que um bálsamo contra o acne se verteu

- são lá coisas dos médicos -

fornece novas argutas estratégias

e de terras distantes faz falar

com seus costumes inviolados

Lugares, é bem de ver, dos quais o perigo

também fez sua casa

e onde os frutos aguardam nas gavetas

que alguém os retalhe e desfigure)

 

O homem calvo ou a moça das doenças

das confusões, das rendas e dos flirts

aliás de bom tom e boa fé.

 

Não é pequena, entanto, a maldição:

aos outros ainda é dado contar

dos ventos, dos desânimos, dos doutores, das fechaduras

A mim somente me é lícito

dar por história a sombra de uma busca

rapinanço mais que tudo legítimo

(sacra juventude, tão alerta afinal!)

e o aperto de mão que tudo salva

como um brasão de inteireza

de quem está entre comas.

 

É então que o Medo às vezes vai connosco

na nossa caminhada para  o lar

nestoutro continente simulado.

 

Todos os livros do Mundo me pertencem

- bons sustos me têm custado! -

que o sistema é só ter a relação

entre dedos e recordações de nebulosos

 pedaços de matérias negras

vindas lá do começo de tardes domingueiras

ou então de nada reconhecível

a não ser de alguns minutos ao fim da vida.

 

Todos meus são

como por um acaso

- que todavia transborda

da rapidez de gestos e palavras.

 

Quem não entender que os compre

- ou que analfabeto fique...

 

 

(inFlauta de Pan”)

 

 

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