O
CÃO
1
Um
cão é por vezes
uma
parábola, um conto, uma quimera
diferente
do gato por ter a mais
o
latido negro e o
olhar raiado
de
anos
de
sangue e de histórias pavorosas.
Tanto
cansaço
por
um cão! Porque o dia
desfaz-se
em pedaços
e
subjuga-nos
e
já nada é lonjura
limite,
precaução
na
memória.
Lovecraft
teria
tido um cão?
E
o cão de Rilke
forma
desenhada
exercitando
o estro
do
seu dono ausente?
Qual
o nome
do
cão de Diana caçadora?
Não
o preferido, o outro
que
falhava perdizes e raposas
se
adregava de quedar-se
no
bosque prematuro
a
mijar na caruma, contemplando
lá
no alto uma brusca ameaça de luz.
Cão
- recorte
de
muitas linhas
que
se confundem
estranhamente
na
ardósia efémera
uma
e outra vez
-
nada nos dirá nunca
com
seu focinho liberto
e
sonolento.
2
“Ninguém
para mim morre. Sempre haverá
o
movimento que foram e não foram
os
homens, as flores, o infinito.
Celebro
não
apenas o instante
mas
o véu que nos dá
obras
e paixões.
Inscrição
sobre um muro
que
se impõe, silenciosa
como
se nela entrasse
o
perene sussurro
da
mais pura tristeza.
Unindo
eternamente
olhos,
vozes, planetas”.
(in “Os
objectos inquietantes”)
O
PÃO
1.
Eis
o pão sobre a toalha:
não
se agita, não grita
-
está ali, simplesmente
como
uma ilha a descobrir
pelo
sabor e o cheiro.
Um
pão morto, um pão vivo
o
cortado ou o inteiro?
O
pão por vezes geme
como
uma égua louca
e
cresce, cresce ardendo
no
sangrento e lavrado
triste
e desabitado
nevoento,
esfomeado
céu
da boca.
O
pão é a substância
dum
bicho transformado:
o
tempo e a terra
onde
foi criado.
2.
Tronco
de paz, tronco de escuridão
erguendo
o cadafalso para todos
Suavíssimo,
cercado de claridade
um
avião gelou o sonho e a aurora
Uma
flor crepuscular desafia o delírio
litania
de fome destruindo o desejo
e
uma cidade, angustiada, afoga-se
na
sua própria imagem
sem
que lembrada seja
como
o sabor do pão
para
ninguém.
O
PRATO
Que
experiência
levar
com ele na cara!
Filósofo
ou poeta
marinheiro
ou pastor
ou
doutra profissão
em
que o físico tenha o principal papel
o
prato é sempre prestável
excepto
quando há circunstâncias
atenuantes.
Então
não
dá tréguas nem descanso: que se amanhe
quem
nele come!
As
flores são num prato
normalmente
decoração. Pois que nele
têm
os legumes a carta de nobreza: o azeite
é
um rio de frescura, atravessando
saiba-se
lá que inóspitas planuras
de
justíssima gula.
Nele
repousam os peixes
os
capões
os
arrotos dos convivas. Má educação seria
deixá-lo
cheio.
Do
prato à boca
se
ganham insuspeitadas malícias e sabedorias.
PAUL
GAUGUIN
Calemo-nos,
vizinhos
bem
calados
detrás
da cortina, à noitinha
na
ilha, na neve, esperando
o
crucificado amarelo.
Uma
canoa indígena lá vai
navegando
na sétima tela exterior
ora
por tristeza ora por alegria.
Sífilis,
só de graça.
Tuberculose,
a que bastar.
Sangue,
o que as armas forneçam
de
juntura com o azul da Prússia
bem
francesa. Ou então
por
piedade
o
louco branco cobalto.
A
orelha não serve a ninguém
a
não ser por modelo ao vivo
colonial.
Mette
Gad, Mette Gad
onde
escondeste o teu rosto lilás apodrecido?
Na
Bretanha, muito doce,
ao crepúsculo
cai
uma pinga de sangue no chão
e
o azeite sobe no ar
e
a casa é tão pequena
lúgubre,
idiota.
Nas
ruas ainda vai restar
um
sopro de vento dos mares do Sul.
(in
“Caixa
de cores”)
BRAQUE
Olha
o Georges
diziam
os colegas
a
andar de bicicleta
Mas
isso era muitos anos depois
e
na infância não se sabia como
embora
estivesse em relevo essa figura
entre
peixe e cavalo.
Georges
passava tranquilamente
de
uma sala para um quarto
de
cabelos eriçados
enquanto
as flores e os frutos
se
multiplicavam
na
madrugada
Mas
Georges não sabia nada disso
um
prato de legumes lhe bastava
Havia
uma grande e silencioso alegria
uma
palpável tranquilidade
na
casa onde o Verão caíra
sem
que ninguém se desse conta.
Mas
Georges ainda nada sabia
de
jarras e de janelas
Limitava-se
a deixar que até ele
chegassem
silhuetas de animais
que
sobre as suas mãos de criança
deixariam
talvez mistérios de outrora.
Georges
sabia, afinal, o necessário
para
traçar a unidade da luz
ângulos
e
maravilhas abandonadas.
(in
“Caixa
de cores”)
GEORGES
LA TOUR
I
É
preciso que a rima acerte
no
centro do espanto do tempo
como
uma luz, como um segredo
nas
paredes brancas e ausentes
Como
inexistentes fulgores
de
segundos, minutos, horas
retalhos
coloridos, vistos
em
recantos e ruas
Tecidos,
ou papéis, ou pedaços
de
estuque guardando do sol
apenas
um detalhe invisível
insuspeitado
e sombrio
Cabeças
que tombam sobre as mãos
a
água e a cera, a mancha crua
-
é forçoso que tudo se incline
e
persista na sua existência
Carne
e em socalcos, por debaixo
de
tudo, como no cinema
as
lembranças negras dos lugares
onde
o Homem deixou um vestígio
de
lume ou escuridão iniciais
II
Este
rosto: um pedaço
de
carvão, uma lousa onde se escreve
como
na infância. Tão doce
a
ama com o menino nos braços. Tão
verdadeiro
e terrível. Moradias
exactas
para gentes inúmeras
vivendo
para sempre ao lusco-fusco.
(in
“Caixa
de cores”)
COMPOSIÇÃO
ao
Abel Teixeira
I
O
poema tem o seu ritmo próprio:
começa-se
por exemplo pela folha de papel
-
se alguma dobra na geografia da sua
estrutura
(digamos: como um rio
em
miniatura) perturba a
superfície que
as
idéias já conceberam
como
perfeita (perfeição: lembrança
ou
esquecimento do que virá a seguir) é
necessário
saber
recusar
tudo: os enleios, mesmo a voz
que
desponta. E poderemos nós adivinhar
os
funestos ruídos que sem aviso
nos
entram na cabeça (pela janela, pelo
quarto
mais longínquo da casa, pelo
ouvido
direito) e criar
movimentos que
mais
que estorvar desfazem? Depois
há
as palavras. Ou nem bem palavras, antes
suposições
virtuais de significados
simples
- jardim, óculos, uma preposição
de
acaso, um barulho que junta um porquê
a
um verbo desirmanado, que é como quem diz
velozes
interrogações. Assim é a poesia
menos
e mais que remorso, que
trémula
projecção, lentidão
pressentida,
imagem
através
duma ausência. E ainda há
que
coligir pontos acesos no interior
das
regras gerais: fogos à
luz do Sol
escadas
sem nome e sem regresso, sinais
enfim
desaparecidos.
II
Daqui
vamos tirar o minuto que sobrou
Dacolá
uma cor que o tempo já esqueceu
Desta
parte a figura eternamente traçada
e
de nós mesmos as vozes que em nós sempre existiram.
Existiram,
ou seja - ficaram alguns anos
como
casas construídas junto a bosques tenebrosos
A
memória dum grito, a lembrança duma frase
que
ajudou a tornar inesquecível a angústia.
O
som que se repete, incessante, monótono
crescendo
pouco a pouco enquanto a noite aflora
devemos
abandoná-lo, desfazê-lo, mostrar
a
sua dura polpa no momento que se escoa?
Assim
como se as horas se erguessem como árvores
no
caminho tomado ao raiar da manhã
como
se um morto revelasse as cores insuspeitadas
-
crivo, rumor, fantasma ou palavra perdida
Era
Dante que dizia que os malditos conhecem
além
dos sons do piano as salas sem cortinas
onde
Deus nunca entrou, onde as imagens são
como
um pretexto mais para existir em silêncio
(Dos
bolsos, afinal, saiem dedos e mãos
que
bem melhor seria jamais lá terem estado).
Schubert,
coitado dele, poderia demonstrar
que
a melodia é mais do que tudo uma incógnita
como
recordação achada por acaso
e
oculta na penumbra ou pairando no lugar
que
tantas vezes vimos quando éramos crianças.
Porque
o segredo, afinal, não é mais que reflexo
que
se acende e se apaga como faróis ao longe
Perfis
que nos ofertam, sem que aliás o saibam
horizontes
vazios de cidade alucinadas.
III
Sete
horas, sete
e
meia: é quando ( como ao abrir
da
primeira ou da nona, quadragésima
página)
a surpresa se sente
Alguém
que
uns anos antes escrevera porque lhe dera
na
vontade “sobre a nossa cabeça
sopra
um
vento sem sentido” digo
como se nós
tivéssemos
tirando a coisa a limpo a fotocópia
sem
saber sem sentir verso empedrado muito
batido
antes de entrar na primeira
estrada
- que é como quem diz caminho
para
palavras que se empregam
vá lá
umas
cinquenta vezes e
vai-se a ver lá
estão
nas folhas do outro na
voz
do
outro tal qual
uma água que
passa
no rio mais que uma vez então
isso
acontece
de repente e são apenas
dezasseis
e quarenta numa tarde
de
pequeno sol a
surpresa
foi
demonstrada desmembrada entendida
é
assim que se compõem universos
digo
é
assim que afinal as coisas se passam dizes
e
pronto somos nós
que enfim concebemos
como
um planeta gira sem pedir licença diabos
dizemos
(em voz sumida) levem
a escrita. Se tudo
não
é novo sob o firmamento (há
outra
versão
para ingleses românticos) quem de nós
deixará
fruto ou bebida ou
resquício
-
em todo o caso vestígio para ser contado -
deixará
dizia pégada
perfeitamente envolta
em
papel (já não de
livro) embrulho
para
séculos e séculos de possível memória?
(in
“Flauta
de Pan”)
POEMA
Senti
a coisa assim: estava a
olhar
a
estante grande
onde
as obras infantis do Pequenu, por um holandês
estão
antes de Joseph Conrad, depois de Alejo
Carpentier,
Sinclair Lewis (primeira
dificuldade:
como revelar o que de estranho, exacto
sugestivo
existe nisto - direitos e limpos, com sua
repousada
claridade, com sua serena
dimensão
estes
livros têm parados num espaço
que
é a sua figura permanente, a distância
precisa
de tábua a tábua)
e
de repente apercebi-me (a Mãe
trouxera-me café)
de
que não perderei só
as
recordações, os
momentos palpáveis, o
retrato
(começara
a chover; o vapor cobrira levemente
os
vidros por dentro) de
seres e gentes
mas
que ao mesmo
tempo
perco
as memórias que os outros tiveram
ou
que resolveram inventar. (Palavras
horizontais
e verticais: medronho,
copázio
desenho
rabiscado como se fosse
um
esboço). E uma certa América
em
alguns fins de tarde - alguém que diz
“uma
semana sem um cigarro!”
em qualquer
quarto
esconso de Los Angeles - (na cozinha
comiam-se
carapaus fritos, de molho
de
cebola para refrescar a
sua carne branca)
por
entre
oliveiras
e telhados.
Chegar
a testa, lentamente
ao
reposteiro de grossa mescla castanha clara
e
saber
que
tudo está disperso
e
que outros terão outras memórias
que
serão
as
mesmas
como
se de repente a nossa cabeça
fosse
não só a sua verdade
mas
ainda mais
o
seu momento
desaparecido
antes de haver
silêncio
e luz.
(in
“Flauta
de Pan”)
POEMA
(Sonata)
Saint-Éxupery
desejava
algo
que se derramasse sobre o Homem
como
um canto gregoriano, tão
puro
como
as vozes fluindo num claustro ou numa
sala
abacial. Saint-Éxupery
no
seu avião, entre o reflexo das estrelas
atravessando
o deserto de Al-Aifa ou Djamila
sentia
para além do odor do couro
persistentemente
colado à sua figura
de
pássaro desaparecido
na
cabina que era a sua catedral
lunar
e terrena
a
luz das vozes como numa
manhã
de Novembro: os vultos encapuçados
cruzando
timbres, os tenores e os baixos
trocando
o seu jogo simultaneamente
pesado
e leve
que
faz comunicar céu e terra
pela
mesma escada sonora
(o
mundo de baixo e o de cima
ligam-se
pelas colcheias e semifusas)
que
mais tarde iria fascinar Mozart
Haydn,
Pierre-Henry, Johann Sebastian Bach.
Mas
é fácil multiplicar os exemplos: José
ou
Pedro, João ou António ou Gaspar, simples
cidadãos
dos diferentes países dos continentes
onde
a araucária ondula contra o vento
ou
a oliveira tremula sob a chuva
numa
vereda da montanha
num
quarto ou numa sala ou pela rua
ligam
serenamente um botão
distraidamente
enquanto voltam as folhas dum livro
ou
acendem um cigarro
e
coçam um qualquer recanto do corpo
e
levam copo ou chávena aos lábios
que
antes murmuraram para alguém
“repara”
ou “queres ouvir?”
ou
simplesmente nada disseram
presos
ao silêncio envolvente
da
noite de Primavera
-
e a grande onda salta através dos anos
singelamente
e
rodeia os humildes objectos em torno
e
flui delicadamente e consagra
ouvidos,
olhos, mãos que repousam
subitamente
serenas. O canto
cumprindo
os mistérios que perpetuam
tardes
e madrugadas
é
junto de nós uma entidade que palpita
que
ilumina como a brusca chama dum fósforo
e
nos diz nos
diz veladamente
os
séculos e os momentos
incomensuráveis.
(in
“Flauta
de Pan”)
A
SCHUBERT
Não
em Viena claro não
em Lisboa
nesse
edifício “tristíssimo, de pedra
acinzentada,
com péssimas retretes” aonde
um lieder
seria
fadinho ou então habitual melopeia dum
Goethe
estúpido genial companheiro de reis
andando
por
sítios tais que não lhe era dado compreender o génio
em
translação Não em Lisboa
digo ou
seja em Portalegre
lugar
atentamente imóvel em retratos em húmidos
quartos
de casa em cozinhas onde retumbam cançonetas
onde
as mãos ou melhor onde uma certa mão procura
adejante
dar o mais belo travo ao arroz-doce
florir
as
manhãs de Grillparzer (“Algum
de
vocês tem um pedaço de papel, de preferência
de
música”, perguntavas tu um pouco aborrecido e infeliz
no
caminho da floresta) Ou
seja: não era nesses tempos possível
andar
três horas a pé de bicicleta e ir até ao fim da
Rua
de Lichstenthal ou até São Mamede e cantar humildemente
um
trecho da “Viagem de Inverno”
com o coração estalando de
amargura
de desprezo como futebolista saindo dum campo em que
a
luz do crepúsculo retocada a lápis ad majorem Dei gloriam
fora
invadida por holofotes como luzes de cena, ou seja
ópera
sem golos sem dribles junto à baliza contrária
para
que possíveis fossem o solfejo sonhado o violino e outras
noções
elementares provisórias para estranhos vascos gêéme
-
sempre eles! - tal como Schiller fazendo o ninho atrás da
orelha
a Holderlin Espertalhões que naturalmente encontram
a
música como simples violeta, cruz
de ouro num bolso de colete
num
espaço de estrofe provavelmente interior
(“Não havia
janela
que não tivesse vasos com flores
plantas trepadeiras
gaiolas
de pássaros canoros, mas isto não era a Natureza”)
provavelmente
alheio ao vento que sopra e sopra
incessante
no
parque do palácio Estherazy. E -
amigos meus -
como é negra
a
água desta ribeira
ou à noitinha em Cascais,
lugar
onde
vi pela primeira vez ao vivo essa
tal
ave, assim o confirmavam Salieri
ou Ruezieska como
uma
história em velhos álbuns de família, século dezoito
para
ali virado, Janeiro por extenso de 97. O mar
entrava
pela terra dentro, passava
sob
uma ponte (palácio de gente de muitas
posses,
não sei se me entendem) e
a melodia chegou - “Variações
para
Piano” - atravessando a manhã dentro de mim
como Bergier
em
Bergen-Belsen criando recordando concertos de cinco
minutos
deixava
a
suficiente certeza naquele alto silêncio. Observando mais
atentamente
as minuciosas imaginadas fotos, os pequenos
truques
dos sábios - as tintas, as poções
as
colcheias e as chaves por onde principiavas o mundo
sentia-se
que valera bem a pena o pobre braço devastado, a anca
frágil,
o suor de ternura nunca oferecido a Carolina
e
a Teresa (“Lembras-te Karolin
daquelas tardes no jardim
quando
te revelei que todas elas te eram dedicadas?”) sendo
bem
verdade que uma Estherazy ou uma Grob jamais poderiam
murmurar
o doce francês muito
baixinho fosse por elas mesmas
fosse
pela outra voz nocturna,
um pouco atroz
mas sempre
o
justo compasso que imaginavas,
o primeiro
timbre
para que algo afinal fosse esquecido
para
que algo ficasse adormecido
sobre
uma mesa ao lado dum jarrão
“num quarto
pobre,
solitário, um pouco sujo”.
II
É
pois contudo assim que mais eu te amo
“pequeno,
rude e mal ataviado”, ou antes
sombra
difusa
compondo quartetos frases sobre um aparador
de
pinho nessa terra em que era possível ver
oliveiras
e árvores sem nome através do ar
Goethe
- sempre ele - não respondeu
demasiado
em cima que estava de
pequenos poemas
e
outras coisas nobres
velharias
e
por isso Harrison
descobriu como achar a longitude pouco tempo
depois
nas tabernas de Viena (“Oh!
Como canta o meu coração!”) as
moças
trauteavam refrões viam televisão davam
o tudo
um
resíduo cuspido de velhos cânticos
mas era ali
que
ele teimava em chamar o lá, o
dó, o só-lá-si
pequenas
sombras pequenos vultos sobre a parede escura
-
oh ! como cantava o meu
coração - e os carros
passavam
incessantemente
Em
frente duma igreja alguns turistas fotografam-se
não
há, digo eu, sinfonias incompletas, escutai
vede
aqui o nosso junho e o companheiro novembro
escutai
tudo
tem o estrófico
e o desenvolvido Cães e pombos e crianças
trauteiam
sem sequer pensar durante o longo Domingo
uma cantiga
breve
e triste Escutai Durante
minutos uma ambulância passa
foi
alguém teve
talvez a grande revelação
como
tu se calhar “de corpo cansado e desajeitado, de olhos míopes”
Por
seu turno - a chuva cai agora duramente - Beethoven percebeu
bem
que em Schubert havia “uma
centelha divina”, havia
provavelmente um momento como numa sala uma visita
fecunda
fraternal
como um Verão que se aguarda.
AgorA
a
chuva parou em volta
do
jardim sentiu-se uma pequena pausa
alguns
ruídos de alguém que passa, um
simulacro se quiserdes
de
solenidade, uma canção
algo
perdida, a melodia que alguém
ouviu
pela primeira vez
num quarto muito às escuras
calmo
um
quarto inteiramente em silêncio
como
uma voz que se escoa
numa
casa
vazia
e abandonada.
ESPANHOLA
Ela
trazia nas mãos um objecto que desconhecia
Um
garfo, um maço de tabaco, três pincéis
E
um retrato inacabado e seis nozes esmigalhadas
E
duas meias por coser e trinta farrapos de algodão
Que
umas vezes levantava no ar outras escondia num bolso
Como
um osso no primeiro verso
mas já reconfigurado
Trazia
uma profunda nostalgia mas isso era apenas engano
E
não havia ali por perto papéis rasgados
trapos velhos
Tudo
aquilo era não mais que ilusão logro ansiedade
Como
se no segundo verso houvesse ternura e terror
E
tudo em volta dançasse cantasse
apodrecesse
Ela
era uma espécie de ave a quem ninguém pedia contas
Era,
digamos assim, um sinal que alguém compreendia
Qualquer
coisa realmente absolutamente material
Que
se raspava da parede
colocava num belo frasco vazio
Como
se tudo fosse desaparecer a qualquer momento
Como
se por trás de tudo estivesse apenas um soluço.
(in "Escrita
e o seu contrário")
PARÁBOLA
O
verde está ao norte na esplanada da manhã.
O
azul por dentro da camisa do primeiro barítono.
O
castanho debaixo duma carta dum primo distante.
O
preto ficou parado: estendeu-se sob uma laranjeira.
O
anil, por seu turno, nada fez.
O
violeta censurou-lhe a preguiça e agora vão os dois de braço
dado.
O
cinzento mora no sovaco de um cardeal francês e ressona.
O
amarelo foi devagarinho aninhar-se por detrás duma garrafa de
conhaque.
Algumas
outras cores dançam de roda. Duas delas cantam:" naquele
dia
o
meu amor nadou sete quilómetros/ ao longo dum rio caudaloso
e os girassóis
estremeceram/ cheínhos de saudade".
Uma
cor pequena e modesta subiu para cima duma cadeira
e
pediu atenção. "Era uma vez", disse com voz clara e sóbria
-
e todas as cores, sonolentas, desataram a sorrir.
(in
"Escrita
e o seu contrário")
O
PENICO
Perdoa-se
o mal que nos fazem
pela
beleza do que se contempla. Maganão
que
não quis ser caneca ou bilha d’água
preso
ao sonho erótico de ter
outros
horizontes a conhecer: fagulha
imaginária
levemente
odorífera
sempre
provocante
ou
incómoda.
Lumpen-proletário
abismado
num
Universo de águas e fezes lustrais
SEM
TÍTULO
Todos
os livros do Mundo me pertencem
-
disponho de boas mãos e
de olhos
rápidos
a perseguir no escuro
as
palavras ocultas -
porque
é meu o subtil pé-ante-pé
de
números e de nomes, cores diferentes
onde
os livros sua morada encontram
e
de onde nascem.
Nem
cínico nem inocente - apenas deslizante
entre
madeira, pedra, luzes, rastos
que
de fora se chegam (caspité!).
É
necessário possuir o mais extremo cuidado
e
um fato singular ou então de Inverno
-
que o homem calvo à espreita sempre está
a
fim de caçar ora um endereço
ora
uma expressão, ora um botão
-
que teima! - desapertado.
(De
súbito, a imagem dum frasco vazio
em
que um bálsamo contra o acne se verteu
-
são lá coisas dos médicos -
fornece
novas argutas estratégias
e
de terras distantes faz falar
com
seus costumes inviolados
Lugares,
é bem de ver, dos quais o perigo
também
fez sua casa
e
onde os frutos aguardam nas gavetas
que
alguém os retalhe e desfigure)
O
homem calvo ou a moça das doenças
das
confusões, das rendas e dos flirts
aliás
de bom tom e boa fé.
Não
é pequena, entanto, a maldição:
aos
outros ainda é dado contar
dos
ventos, dos desânimos, dos doutores, das fechaduras
A
mim somente me é lícito
dar
por história a sombra de uma busca
rapinanço
mais que tudo legítimo
(sacra
juventude, tão alerta afinal!)
e
o aperto de mão que tudo salva
como
um brasão de inteireza
de
quem está entre comas.
É
então que o Medo às vezes vai connosco
na
nossa caminhada para o
lar
nestoutro
continente simulado.
Todos
os livros do Mundo me pertencem
-
bons sustos me têm custado! -
que
o sistema é só ter a relação
entre
dedos e recordações de nebulosos
pedaços
de matérias negras
vindas
lá do começo de tardes domingueiras
ou
então de nada reconhecível
a
não ser de alguns minutos ao fim da vida.
Todos
meus são
como
por um acaso
-
que todavia transborda
da
rapidez de gestos e palavras.
Quem
não entender que os compre
-
ou que analfabeto fique...
(in “Flauta
de Pan”)
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