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RELANCE
SOBRE A PINTURA DE JOSÉ RÉGIO
(Nicolau Saião)
Desenhar era, para Régio, uma naturalidade.
Importa logo de início epigrafar esta naturalidade, que cultivara
desde muito novo – quando ele e seu irmão Julio (como Joaquim
Pacheco Neves assinala no seu livro Os
desenhos de Régio) pintavam lado a lado nesse tempo de Natal
colorido pelos prestígios da memória.
Independentemente de ser uma naturalidade
era uma faculdade que ia bem para além do gosto inato de qualquer
ser votado aos mundos onde o fulgor das coisas espirituais nos faz
andar atentos à Arte. O mínimo que se poderá dizer de Régio é
que era um bom desenhador – mesmo um excelente desenhador. Pintor
de domingo? Bom – só se a maior atenção dada às letras e aos
seus duros caminhos de concretização (para encher a célebre página
branca é preciso muito esforço, muito suor, para além do talento,
o que não está ao alcance dos zoilos) o remete para essa qualificação,
aliás inadequada e frequentemente pacóvia. Claro que para um indivíduo
como Régio não há hobbies
deste cariz – são algo de demasiado fundo e grave, com a
gravidade sagrada da vida e da mirada que sobre ela lança um ser de
excepção como Régio foi.
Assentemos portanto que nele o interesse
pela pintura e o acto de desenhar/pintar era um dos aspectos da sua
rica vida de relação com os mistérios da arte entendida por
extenso. Depois, se nos debruçarmos sobre o seu traço, os seus
temas (a sua maneira ou,
para utilizarmos a expressão do grande crítico
português de artes plásticas, o arqtº Mário de Oliveira, a sua intenção)
verificaremos que não andava longe do que se fazia naquele tempo:
um figurativismo lírico em tons ora mansos ora adustos jogando com
as cores complementares.
A visitação da figura humana é uma das
constantes a que recorria, fossem essas figuras de entalhe sagrado
ou profano. E, neste caso, haveria também que perguntar: onde fica
traçada a linha que absolutamente separa o profano do sagrado?
Pergunta que já a propósito de obras de diversos pintores autóctones
ou estrangeiros – pense-se em Beckman, por exemplo, ou em Chagall
ou, entre nós, em Mário Botas – se tem colocado, visto que uma
figura de mulher é frequentemente a figura da Virgem (e vice-versa)
e a figura de um mendigo pode ser a figura de Cristo, noutra encarnação,
noutro místico enquadramento, noutra dimensão real ou onírica.
Régio revela-se inteiramente nessas
silhuetas contorcidas, nesses rostos arrepanhados, nessas expressões
de êxtase, de fúria, de inconcreta estupefacção – de interrogação,
de medo, de alguma esperança. E, estranhamente, nalguma súbita
frescura de um rosto, de um olhar, de um movimento, de uma feição
secreta. Como Claude Roy, poder-se-ia perguntar: “Essa frescura será uma ilusão do nosso olhar ou a expressão da
unanimidade das origens?”.
Na sua singeleza, há que ver os desenhos de
Régio como os irmãos
daqueles que Julio executava. Não é difícil, não
é mesmo possível, não se ver nos de Régio
a versão como num espelho trágico daquilo que em Julio é
calma e lirismo, mas uma calma e um lirismo bafejados pelo sopro dum
surrealismo metafórico, carregado de significados poéticos e de
serenidade duramente conquistada. Julio (Saúl Dias), que tenho como
um dos maiores poetas do século vinte português (a minha participação
na homenagem que lhe foi feita em livro organizado por Valter Hugo Mãe
não foi um act gratuit da
minha parte, pois não escrevo textos de circunstância – e sim
uma atitude de puro apreço), foi igualmente o protagonista central
duma incursão da maravilha pictórica no mundo por vezes contraditório
da pintura portuguesa. Régio, votado a outros mesteres mais
instantes, que lhe carregavam o quotidiano de tarefas que à escrita
iam desaguar, teve o seu percurso de diferente recorte. Mas o que
fez brilha e distingue-se, porque pelos seus próprios meios se
tinha – mais uma vez parafraseando Roy – humanizado,
enriquecido, metamorfoseado.
E isto, repare-se, ante os mundos do alto e
os do baixo: os da carne e os da alma, para tudo dizer.
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