EM
TORNO DE JULHO
(Nicolau
Saião)
Julho
é o mês da sétima lunação. No céu desafogado de Verão os
planetas de mais larga translação quase se palpam no azul sedento
do crepúsculo ou ao entrar da noitinha. Há no ar sons distantes de
sinos, sons esparsos de aves e de animais enquanto os minutos correm
como ecos longínquos no arfar da ramaria, no silencio fremente das
casas.
Em
Julho o campo e o mar são como um grande segredo inolvidável.
Julho
é um mês ardente e mágico, palpitante e solitário que ainda
guarda nas suas horas lentas o prestígio dos tempos idos em que não
se sobrepunha o signo à coisa significada, os tempos quase
inocentes em que a brutalidade e a manha não eram apenas uma nótula
ou um excerto assinalando sem estranheza que este Mundo vai andando
de cabeça e coração como se fossem objectos postiços de cartão
ou madeira negra. Noutro contexto civilizacional, Julho era o mês
em que os egípcios glorificavam Osíris e a sua corte de divindades
menores, em que os gregos mais visitavam a pitonisa de Delfos, em
que os dogons do Sudão se juntavam nos bosques à entrada da noite
soberana para falarem na sua linguagem secreta, tão misteriosa e
interdita que só aos iniciados e aos arcanos se podia dirigir. Era
em Julho que nos montes de Palenque os ferozes deuses mexicanos se
apaziguavam: virados para a constelação das Plêiades, coroados de
penas de condor e de flores zapotecas, os sacerdotes quíchuas
soltavam o seu intermitente grito de saudação misturado com o
trilo das flautas.
Era
em Julho que na Lusitânia, nas pedras de granito talhado dos campos
de carvalhos, nas arribanas e nos casais, tudo se começava a
preparar para receber depois a uva sangrenta geradora de maravilhas.
Mas
Julho é também, a par do calor que o fundamenta, um mês claro e
alegre, pleno de tranquilidade e gentilezas: a fruta é em Julho
sumarenta e refrescante, viva e generosa como a própria poesia da
natureza em volta. Há o figo e a melancia, o pêssego e o abrunho
– que são frutos amáveis e solidários: o seu mistério se
dissipa nas tardes de gula, posto que o mistério persista, porque
no coração vegetal há sempre um minuto filho da terra trabalhada
por muitas mãos calejadas, regada por muitos suores, cerzida por
muitas linhas de cansaço e solidão. Mas quem humanamente se detém
no gosto de devorar um figo luminoso numa fresca manhã campestre?
Em
Julho a noite cresce como a tranquilidade no coração dos justos. E
talvez, também, como o remorso, como o travo azedo duma acerba
incomodidade no estômago dos que têm ou terão contas a prestar ao
mundo e à consciência dos homens.
Mas
Julho é igualmente o mês dos sonhos longos e dos amores mortos e
renascidos: a própria memória das coisas é como um bicho
entontecido num bosque, olhando febrilmente a penumbra rente ao mar
e à montanha, correndo como uma raposa acossada nos caminhos pela
trompa dos senhores de casaca vermelha que, na “pérfida Albion”,
se dedicam a estes mansos desportos que felizmente entre nós não
existem.
Em
Julho a alegria é azul e a tristeza cinzenta. E às vezes mudam
devido ao rumor persistente das recordações.
Diz-nos
o “Almanaque do Pensamento Astrológico-Literário” que em Julho
os luminares estão a vinte e seis graus de Cancer, na terceira
casa, o que prenuncia período favorável para a agricultura, os negócios
(da China?) e as representações nacionais no estrangeiro. Os trígonos
de Neptuno e Saturno indicam, não obstante os bons presságios
anteriores, dissensão nos meios políticos e administrativos e a
conjunção de Marte com Júpiter augura aumento de renda nas
repartições arrecadadoras do Governo, bem como desenvolvimentos
peculiares nas autarquias, no comércio e na indústria com benéficos
reflexos no exterior...
E
por tudo isto se vê que Julho é também um mês cheio de senso de
humor, de ironia astrológica e de mansuetude literária. E de
perspicaz anotação política...
Por
isso, agora que ele vai iniciar a sua corrida ascendente, louvemos
com galhardia o mês de Baco e de Quetzalcoatl, o mês límpido dos
grandes calores e das altas esperanças humanas e universais – que
quase nunca, infelizmente, se realizam.
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